Dulce María Loynaz e Orides Fontela: um discurso poético entre a violência e o autoritarismo

Dulce María Loynaz e Orides Fontela: um discurso poético entre a violência e o autoritarismo

Yoanky Cordero Gómez[*]

[*] Doutor em Letras pelo Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Unesp “Júlio de Mesquita Filho” (IBILCE). Pesquisador do Grupo de Estudos de Poesia e Cultura (GEPOC/ CNPq- UFSCar).


RESUMO:

Dulce María Loynaz (Cuba, 1902-1997) e Orides Fontela (Brasil, 1940-1998), construíram sua obra sob contextos desfavoráveis, marcados por algum tipo de censura, por uma experiência histórica definida pela violência e o autoritarismo. Desde esse ponto de vista, tentamos tecer algumas considerações sobre a poesia das autoras, a relação que ela estabelece com o contexto de produção e as estratégias utilizadas para dizer ou não por meio da sua arte. Ter a palavra proibida ou castrada pressupõe uma violência que, no caso das nossas autoras, está sujeita a todos os silêncios e a o modo como eles são construídos.

Palavras-chave: Dulce María Loynaz; Orides Fontela; Violência; Autoritarismo; Silêncio.


ABSTRACT:

Dulce María Loynaz (Cuba, 1902-1997) and Orides Fontela (Brazil, 1940-1998), have constructed their work under unfavorable circumstances marked by some form of censorship, for a historical experience established by violence and authoritarianism. This paper discusses some reflections on the author’s poetry, the relationships with the production context, and the strategies employed in order to say, or not say, through his art. To have the word forbidden or castrated assumes a violence that, in case of the author, is subject to all of the silences and the way they are constructed.

Keywords: Dulce María Loynaz; Orides Fontela; Violence; Authoritarianism; Silence.


O período histórico durante o qual as poetas Dulce María e Orides Fontela, produziram suas obras foi um momento de intensas modificações sociais, políticas e econômicas em ambos os países, com as quais todo mundo, mas especialmente intelectuais como elas, precisavam acostumar-se. O conjunto daqueles profundos câmbios do início do século XX, diga-se: a crescente urbanização e claro, a industrialização e tudo o que isso trouxe consigo, parece-nos, despertaram nas poetas um sentimento de perda de essência confusa e melancólica. Assim não é difícil perceber, em nosso processo de leitura, que o fazer literário de Dulce e Orides evidenciam a natureza da modernidade. Um lugar em que o moderno se identifica com o eterno, o efêmero, o fugaz, a existência humana, o transitório e o imanente etc., se referirmo-nos à Baudelaire e à ausência da inspiração, ao aniquilamento da realidade, à sugestão, ao nivelamento do ato de poetar e à reflexão sobre a composição poética etc. (FRIEDRICH, 1991, p.95) se referirmo-nos à Mallarmé. No esboço dessa tradição, surgem também inúmeros pontos de resistência, zonas de sombra, visões alternativas, enfim, outros lugares da crítica e da poesia que vão estabelecendo à diferença das vertentes críticas mais dominantes, inclusive no que diz respeito à tradição da negatividade, caráter essencial da lírica moderna.

Em Dulce e em Orides o uso de determinadas temáticas e termos/palavras configuram essa negatividade representada nos seus poemas ao falar de seu tempo, das sensações que lhes provocaram. Portanto, a nossa convicção é a de que como mulheres da modernidade, precisaram encontrar uma forma - ainda quando fosse imposta pelo próprio contexto - de falar sobre seu tempo, mesmo que em seu discurso elas parecessem fora do mundo, além dele. As referências que as poetas fazem sobre os dramas da existência humana, sobre a descrença da vida da modernidade, sobre os efeitos do capitalismo, sobre os desencantos do ser humano pelo seu igual, as questões relacionadas ao fazer poético permitem-nos lhe conceder a condição de poetas modernas, “presas” no meio de um mundo em constantes câmbios e transformações. Daí que “entre o dizer e o não dizer desenvolve-se todo um espaço de interpretação no qual o sujeito se move. ” (ORLANDI, 2005, p. 85). Por essa razão, procuramos analisar, as condições que fornecem o silêncio, o silenciamento em Dulce María Loynaz e Orides Fontela.

Ora, como pensar essa poesia? Quando um leitor a abre e pensa no contexto que ela foi produzida, o que consegue/pode ler? É necessário pensar nesses termos, porque, embora seja de difícil entendimento, é improvável pensar que essas questões do contexto não apareçam refletidas de maneira explícita na obra das poetas, mesmo se elas não quisessem, daí que é importante, em nossa opinião, pensar como se produz esse movimento poético. Porque na leitura dos poemas elas parecem construir-se um mundo próprio, o que não significa um espaço fechado, porém, um lugar de acesso restrito, em que o poeta parece estar fora do mundo, mas na verdade ele está dentro, um movimento que talvez elas façam e que o Adorno (2003) tanto preza e valoriza, refiro-me ao de poesia pura, “que contém quanto mais ela se oferece, o momento da fratura” (ADORNO, 2003, p. 70).

Mas, em nossa opinião, é o que elas fazem, ou, o que conseguem realmente fazer, daí que nessas construções não se perceba explicitamente uma crítica aos sistemas em Cuba e no Brasil, porque não há um sentido de nomear o criticar o que é melhor ou pior, o que certamente parece haver é um sentido de pensar a poesia como resistência, “[...] há uma tensão interna que as faz resistentes, enquanto escrita, e não só, ou principalmente, enquanto tema” (BOSI, 2002, p.129), como uma ferramenta que vai servir-lhe ao sujeito para ficar naquele mundo, naquele contexto desconfortável e torná-lo suportável por meio da ocultação de uma visão de um mundo em tragédia.  Mas essa era uma questão que já existia tanto em Cuba quanto no Brasil, antes mesmo das poetas empreender os seus projetos poéticos, lembremos que os primeiros poemas das autoras foram escritos antes de experimentarem a violência e radicalização do contexto de produção, e digamos de passagem, concomitantes com eventos históricos relevantes em ambos os países, a modo de exemplo: no plano nacional, a consolidação da ditadura militar, as inflamadas comunidades ligadas aos movimentos de esquerda que lutavam pela liberdade e pela democracia e no plano internacional, a Guerra Fria estabelecida como uma grande fonte polarizadora do mundo e o processo de radicalização da luta da chamada esquerda, que teve um profundo impacto tanto em Cuba quanto no Brasil. 

Não estamos falando aqui que o contexto não vá ser determinante, claro que não, ele vai definir o caráter de uma obra em grande parte, mas ele não vai limitá-la, e não é só isso, ele vai estar relacionado com um movimento que é o de pensar a poesia, numa relação que é dialética com o contexto no sentido que não tem conciliação, a poesia integra o contexto que a integra; também não é que a obra seja determinada historicamente, mas nesse caso é que a obra guarda uma relação dialética com o contexto, porque ela já vem do movimento do silêncio, da poesia pura e na medida que o contexto se transforma, esse silêncio e essa poesia pura respondem a ele (contexto) ao mesmo tempo em que o questionam e o interpelam. Acaso não é esse o lugar da poesia? Para lidarmos com tais questões, convocaremos poemas de ambas as autoras, a exemplo “Desprendimiento” de Dulce e “Elegia I” de Orides:

Dulzura de sentirse cada vez más lejano.
Más lejano y más vago... Sin saber si es porque
Las cosas se van yendo o es uno em que se va.
Dulzura del olvido como um rocío leve
cayendo en la tiniebla... Dulzura de elevarse
y ser como la estrela inaccsesible y alta,
alumbrando en silêncio...
En silencio, Dios mío!...
(LOYNAZ [1920-1938],1993, p.69)

Mas para que serve o pássaro?
Nós o comtemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era voo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico [...]
(FONTELA [1973], 2015, p. 155).

No poema “Desprendimento”, a tristeza do silêncio pode cobrar em determinados anunciados metafóricos o sentido de doçura. A paz conquistada pelo eu lírico através do silêncio parece-nos evidente neste poema. As palavras se tornam vozes do silêncio em que a distância, o espaço e o tempo se unem. Com os sintagmas: “estrella inaccesible y alta”, constroem-se suportes sobre os que descansam os sentimentos enunciados pelo eu lírico: alumbrando en silencio, essa “luz que o atravessa com o seu poder auto confirmativo, mas ao mesmo tempo é dolorosa e angustiosa revelação” (Núñez, 2000), que a poeta sugere quando fecha o poema ¡En silencio Dios Mío! ”  (Tradução nossa.)

Existe, no nosso entendimento, uma alta dose de ironia em Dulce, que se remete ao silêncio, ao que não se pode dizer. Porque veja-se, para que o engajamento se ele leva à censura? A grande ironia da Dulce é não ser engajada, e “sobreviver” em um contexto radical sem falar nada. Na verdade, essa negação poderia ter relação, com a ideia de falar sobre o silêncio, porque é ele que lhe é imposto, então, em quanto todo mundo vai falar sobre a necessidade de romper esse silêncio, do questionamento do que se torna radical pelo sistema social, ela vai fazer uma reflexão sobre o silêncio, e é ele que se impõe para ela enquanto pessoa.

Já o trecho do poema “Elegia I”, provoca questionamentos desconcertantes, que confirmam a carga de mistério e enigma da poesia orideana, um jogo de dois, entre o eu lírico que enuncia e questiona e o leitor que há de levantar os “sons” dessa composição: “Mas para que serve o pássaro? ”, e por acaso se faz esse estranho/ silêncio? Este poema, publicado em 1973 aponta não apenas para uma opção estética, mas pode ser situado, a nosso ver, como uma resposta da poeta ao contexto.

Observe-se que existe uma questão muito filosófica, em ambos os poemas, que tem a ver com uma outra possibilidade de reagir por parte das poetas, o que fazer diante de tamanha opressão? Como responder ao desafio de empregar a linguagem que constitua uma saída plausível? No seu livro Da violência, Hanna Arendt realiza uma exaustiva reflexão no tocante à violência e o seu parentesco com outros aspectos da vida política, como poder, força e potência. Seu texto está cheio de acontecimentos que ocorreram durante o século XX, já que a autora considera que nesse período de tempo a violência foi um denominador comum (ARENDT, 1994). A violência do Estado exclui ao letrado, entendido como todo aquele que possui a linguagem. Um tipo de violência que impõe o silêncio: “somente a pura violência é muda, e por esse motivo a violência, por si só, jamais pode ter grandeza” (ARENDT, 2010). Esse mesmo silêncio que impede aos sujeitos de falar, distancia-se e reflete tanto pela palavra escrita quanto pela oral, e impede-lhes constituírem-se como sujeitos.

No caso particular das autoras, os poemas constroem temática e esteticamente o silêncio como forma de dialogar com a opressão. A violência extrema que exerce um estado ditatorial que lhes tira a linguagem, e especificamente a escritura - como elemento de libertação -, constitui-se em uma esfera que possibilita uma saída à violência, então, o silêncio, nos aproxima, como leitores, das dores, do sofrimento, da morte e de todo aquilo que Dulce e Orides carregam. Esse silêncio, é trabalhado de uma forma poética em relação ao contexto, mas o que isso significa? Parece-nos que há aspetos que mudam simultaneamente ao contexto e isso é inevitável. Essa afirmação implica que o silêncio ou os silêncios na obra das poetas se aprofundam e se ampliam no decorrer do tempo, porque há uma consolidação das causas que os provocaram. Nos poemas “La Selva” de Dulce e “Fala” de Orides, vê-se esse aspecto bastante presente:

Selva de mi silencio
Apretada de olhos, fría de menta...

Selva de mi silencio: En ti se mellan
todas las hachas; se despuntan
todas las flechas;
se quiebran todos los vientos...

Selva de mi silencio, Selva Negra
donde se pudren las canciones muertas...

Selva de silencio... Ceniza de la voz
sin boca ya y sin eco; crispadura de yemas
que acechan
el sol
tras la espesa
maraña del verde... Qué nieblas
se te revuelven en un remolino?
[...] (LOYNAZ, [1920-1938], 1993, p.40-41)

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)
(FONTELA [1966-1967], 2015, p.47)

Note-se como, no poema “La Selva”, a dificuldade de desconstruir esse silêncio radica no ato de não dizer, ou seja, de dizer e negar ao mesmo tempo, de completar-se e esvaziar-se. O que nos remete à ideia de origem e o silêncio representa de igual maneira o cessar da escritura, aquilo que é proibido, como caminhar sobre uma corda sem estabelecer os limites, que nos possibilitem retornar ao início. O silêncio parece nascer diretamente e transcender. Segundo Bremer (2013, p.46) “pode-se entender aqui silêncio não só como uma barreira que não permite a entrada da dor do mundo, senão também como uma estratégia do não falar, expressado por um eu lírico forte e decidido.”

Por outro lado, em nossa leitura, o poema “Fala” em seu conjunto encontra-se edificado sobre a sentença que uma vez indicara Blanchot (2002) quando mencionou que “toda palavra é violência” ao referir-se ao poder da linguagem como empresa mediante a qual a violência renuncia a ser aberta para se fazer secreta. Mas, por que a violência, de onde provem? A palavra tem a realidade como referente, sempre recorre a ela para se conformar como tal, portanto o mundo a reflete criando uma espécie de simbiose em que nada fica de fora. Por isso, parece-nos que Orides, através da sua escrita, “pretende despojar a palavra de toda pretensão comunicativa, escrever seria consagrar o ser em sua pura passividade: tudo se torna inconsistente na dignidade do silêncio”. (BLANCHOT, 2002, p.22). Neste poema em particular, o “pensamento” constitui objeto refletido que quer canalizar, na forma, aquilo que nasce da ferida real do não dizer. É interessante por causa do giro que apresenta a última estrofe em relação às restantes. Nos primeiros versos se faz referência, de maneira impessoal, a possibilidade real de um futuro incerto que não tem atingido a sua resolução.

Sendo assim, a violência opõe-se à liberdade, esta afirmação é fundamental porque, no nosso percurso percebemos que há na escrita de Dulce e Orides, uma busca da autêntica liberdade. É como se através da poesia, as poetas, reivindicassem o direito à réplica e liberdade por meio do discurso poético- que é o autenticamente próprio, aquilo que ninguém pode tira-lhes nem contestar-, uma liberdade que lhes permite “tomar as suas próprias decisões” (grifo nosso) e resistir. A escritura configura-se como estratégia de oposição à violência; configura, também, em determinadas vozes: as próprias e dos outros, e cada uma se complementa e existe como uma subjetividade desejante e pensante a partir da voz do outro: apreciamos que em uma última instância, as poetas, já não escrevem para si mesmas, senão fundamentalmente para os outros, para serem lidas, o que atribui a razão de ser à própria escritura, uma socialização do pensamento privado. Vejamos os poemas “Cárcel del aire” de Dulce e “Trovões” de Orides:

Red tejida con hilos invisibles,
cárcel de aire en que me muevo apenas,
trampa de luz que no parece trampa
y en la que el pie se me quedó-entre cuerdas
de luz también...-bien enlazado.

Cárcel sin carcelero y sin cadenas
donde como mi pan y bebo mi agua
día por día... ¡Mientras allá fuera
se me abren en flor, trémulos, míos
aún, todos los caminos de la tierra!....
(LOYNAZ [1920-1938], 1993, p.42)

Trovões invadem
casas
coisas
quebram
louças gráficos
vidros

Anulam o supérfluo: articulam
um campo para o destino.

Trovões transportam raízes
a altas distâncias nuas
tentando armar uma flor
com o que resta- ainda-
do silêncio.
(FONTELA, [1983], 2015, p.179]

O que surpreende nesta poesia é a certeza de um sentimento que não constitui uma postura adotada senão que responde a uma visão muito peculiar do mundo de duas mulheres que se refugiam no silêncio e na solidão. As poetas no processo de captação e criação das coisas, no processo de revelação do mundo, das coisas por obra da sua subjetividade oferecerem também sutis matizes da sua condição por meio do silêncio como possibilidade da palavra poética em que o sujeito lírico vai fica dentro e/ fora de si, para ratificar a sua rebeldia.

O caráter dessa violência vai conduzir as poetas ao silenciamento, que se nutre da “derrota do diálogo”, que catalisa a construção das diversas formas silêncio no discurso poético; um silencio e um silenciamento que oscilam entre a censura e autocensura e que ratifica uma pulsão de sobrevivência por meio da escritura literária; que encontra na realidade cubana e brasileira um espaço idôneo para o seu avanço e cumplicidade. São esses silêncios muito instigantes, para quem escreve, como as poetas, como para quem lê porque as sabemos produto de uma violência que procura insistentemente apagar a palavra, e a subjetividade das autoras chega como resposta.

A ação muda deixaria de ser ação, pois não haveria mais um ator; e o ator, realizador de feitos, só é possível se for, ao mesmo tempo, o pronunciador de palavras. A ação que ele inicia é humanamente revelada pela palavra, e embora seu ato possa ser percebido em seu aparecimento físico bruto, sem acompanhamento verbal, só se torna relevante por meio da palavra falada na qual ele se identifica como ator, anuncia o que faz, fez e pretende fazer. (ARENDT, 2010, p. 223).

Entende-se, portanto, que escolher o silêncio, para as poetas, tem a ver com não poder dizer em um determinado momento, e elas elegem diante de tudo ficar em silêncio; perante tamanha pressão não há nada que podasse dizer ou fazer, daí que se configure como uma escrita para a morte, segundo Blanchot, de uma luta para a sobrevivência, ou segundo Safouan (1993) a relação da palavra e a morte. Na poesia das autoras o silêncio equivale à palavra, porque é o silêncio ou a morte, por isso ele (o silêncio) é, “metáfora da palavra”, no sentido que essa poesia que tematiza o silêncio, é um dizer que protege da morte. Mas que resposta se pode dar a tamanha violência? Por que ela causa isso? O silêncio em Dulce e Orides vai ter uma dimensão universal porque, “[...] ao abordar uma individualidade, o poema é capaz de apontar elementos referentes a uma coletividade. ” (GINZBURG, 2003, p. 65), uma questão que toca a todos diante do autoritarismo, mas que elaboração da subjetividade é essa que no final retorna ao coletivo? É uma elaboração contra o autoritarismo em si, porque além dos elementos que já conhecemos elas têm em comum, as une também a opressão, a impossibilidade de realizar alguma coisa, o impedimento de dizer, que nas palavras de Eni Orlandi (2007) seria, em um primeiro momento, aquele silêncio do silenciamento que vai silenciar também os sentidos; mas depois vem um silêncio como opção, já que não se pode dizer, será necessário falar sobre o silêncio, mas qual? Aquele que nos é imposto, e nessa perspectiva há um dizer sobre o silêncio, então parece-nos que não seja esta uma poesia do silêncio propriamente, mas uma poesia que diga sobre o silêncio e, portanto, que o enfrenta e o esbarra. Uma poesia que tematiza o silêncio, fala sobre ele por meio do levantamento das palavras, dos seus significados, da necessidade de “ouvir” o poema escrito sob uma ditadura.

[Só] entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade; mais ainda, a própria solidão da palavra lírica é pré-traçada pela sociedade individualista e, em última análise, atomística, assim como, inversamente, sua capacidade de criar vínculos universais vive da densidade de sua individuação. ” (ADORNO, 2003, p. 67)

Sob o interdito, não há espaço para o indivíduo no proposito do Estado de manter o seu poder, talvez por isso chama a atenção o nexo que as poetas têm construído entre o individual e o coletivo para estabelecer um sentido universal, que é bastante significativo pelas complexas relações que se entrelaçam entre o contexto o silêncio, se pensarmos que se precisa de força para falar sobre o silêncio, sobretudo um que permita meditar e refletir, absorber o significado do entorno e se projetar para o futuro. Esse silêncio tem um ir além de nós mesmos, algo a mais, talvez, uma subjetividade deslocada em todas as suas manifestações desde o amor, a vida, Deus etc. até a morte. Resulta disso essa capacidade do silêncio migrar do individual, para fazer um bem melhor, no coletivo. 

Tudo o que foi escrito até agora, serve-nos, se pensamos que as autoras respondem a um estado autoritário, independentemente de qual seja este. Então, desde esse viés, a poesia não é necessariamente uma resposta à esquerda ou à direita, mas ao autoritarismo “aquilo que é inquestionável, por aqueles a quem se pede que obedeçam; nem a coerção nem a persuasão são necessárias” (ARENDT, 1994, p.37), então a poesia de Dulce e Orides, não é certamente uma poesia politicamente engajada. No caso de Dulce porque não apoia o Estado e no caso de Orides porque não faz oposição ao Estado. A resistência delas é em relação ao autoritarismo, e de que modo se resiste a isso? pelo silêncio, mas qualquer que ele seja, o que implica evidentemente um grau de urgência da poesia pela liberdade, acaso não é essa a função da arte? Mais ainda num momento em que “o movimento totalitário de essência violenta encarou a liberdade humana de ação e de discurso como defeitos nefastos a serem corrigidos por um projeto de controle total e de uma mudança na natureza humana[...]” (BRISKIEVICZ, 2009, p.15). 

Então esse silêncio é uma forma de lutar pela liberdade, a qual as poetas estão condenadas pela sua prática a viver esta noção como um todo. Por isso a relação com o contexto, não pode ser senão, contraditória. Uma urgência que procede da necessidade de pensar a interrupção das condições políticas sobre a escritura quando estas mostram uma ameaça a essa liberdade de questionar tudo. A liberdade interior que foi apontada por Paz (1992), “recriar e revelar” a maneira do eu lírico loynaziano, no poema En mi verso soy libre:

En mi verso soy libre: él es mi mar.
[...]
en mi verso; respiro, vivo, crezco
[...] y en él tienen mis pies
camino y mi camino rumbos y mis
manos qué sujetar y mi esperanza
qué esperar y mi vida su sentido.
Yo soy libre en mi verso y él es libre
como yo.[...]
[...]
Dentro de él, me levanto y soy yo misma.
(LOYNAZ, Versos (1920-1938), p.72)

Ou à forma do eu lírico orideano no poema Voo:

Flecha ato não verbo
impulso puro
corta o instante
e faz-se a vida
em acontecer tão frágil [...]
(FONTELA, Transposição (1969), p.70)

Em cujas anunciações, as condutas dos eus líricos parecem condicionados ao tempo que estabelecem o ser em uma conceição do mundo e da vida, uma atitude que se constrói como resposta a essa realidade, e se torna expressão para comunicá-la. Elementos integrantes de uma realidade concebida como visão do mundo, a atitude das poetas diante de tal visão e a expressão do compromisso com ela.

Por isso, parece-nos que a liberdade é parte da essência mesma da ação das poetas, assim como o ingrediente fundamental à hora da construção do discurso poético que em sua essência repele o autoritarismo e há nessa construção um regime de fraternidade, em que a humanidade tem um lugar importante -condição própria do poeta-, daí parece-nos, a originalidade das poetas no poder absoluto de criar; a liberdade torna-se um tema existencial e eminentemente humano na poética das duas.

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Received June 1, 2017; Accepted August 8, 2017

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