Estudos literários: futuros possíveis?

Estudos literários: futuros possíveis?

Saulo Neiva[1]

[1] Université Clermont Auvergne, CELIS Centre de Recherches sur les Littératures et la Sociopoétique.


RESUMO:

Análise de impasses atuais dos estudos literários e proposta de reflexão sobre os seus futuros possíveis.

Palavras-chave: estudos literários; gêneros literários.


ABSTRACT: Analysis of the current deadlock in literary studies and of some ideas about how it should be resolved.

Keywords: literary studies, literary genres.


Quais os futuros possíveis para os estudos literários? Um futuro, pelo menos, ainda é possível?

Diante de tal temática, já examinada por diferentes vieses (GUMBRECHT, 1995; GOODHEART, 1999; SCHAEFFER, 2011; BERNARDES, 2011), a minha reação imediata foi a de declarar total incapacidade para predizer o que quer que fosse. Em princípio não tenho – e duvido que alguém possa ter – condições de enunciar o que os estudos literários passarão a ser. Como antecipar aquilo que ainda não é e que consequentemente desconhecemos?

Apesar desse primeiro ímpeto, ainda me restava a alternativa seguinte: apoiar-me no pouco que sei dos estudos literários e naquilo que aspiro a que eles se tornem – para então elaborar hipóteses de trabalho. Hipóteses que nos permitam indagar, esboçar e – quem sabe – entrever o que os estudos literários podem vir a ser. Interrogações e intuições que reúno neste texto, concluindo em seguida com um exemplo de projeto de pesquisa já realizado, para o qual me apoiei nessas pistas de reflexão.

Ao formular tais hipóteses espero, de certo modo, intervir junto a essa temporalidade que está por vir – esse “futuro” de que falamos. Trata-se portanto de um exercício de projeção ao qual atribuo uma função de ordem performativa muito mais do que preditiva. Ressalto também que as minhas hipóteses sobre os estudos literários não se referem bem ao ensino da literatura: elas dizem muito mais respeito ao funcionamento da pesquisa em áreas científicas como história e teoria da literatura, crítica literária, literatura comparada. Assim, apesar de supor que minhas considerações podem, eventualmente, ter implicações sobre a transmissão pedagógica do conhecimento, elas referem-se mais diretamente à produção científica de conhecimento.

Fim da literatura?

Não é novidade dizer o quanto o nosso tema se relaciona com a impressão que podemos ter de que no nosso mundo a literatura – objeto dos estudos literários de que estamos falando – tem o seu futuro ameaçado. Não é novidade, mas vale voltar a ressaltar.

Uma impressão de que a literatura pode vir a desaparecer dentro de algum tempo – e alguns dentre nós inclusive têm até a sensação de que esse desaparecimento já se produziu. Ou de que ele está em pleno andamento, em ampla aceleração nos últimos tempos – época em que a prática da leitura solitária, silenciosa e continuada de um livro parece em risco, dada a importância adquirida por outros hábitos culturais que todos nós conhecemos. Como quando aquele meu velho amigo de infância, leitor voraz e apaixonado, comentou recentemente, a respeito dos seus filhos e sobrinhos adolescentes: “Tenho a sensação de pertencer à última geração de pessoas que lerão integralmente A Divina Comédia ou Guerra e Paz”.

Para demonstrar a pertinência da nossa impressão de ameaça do futuro da literatura, costumamos lançar mão de vários indícios do presente. A redução do espaço reservado nas livrarias e na imprensa à produção e à crítica literárias; a presença, nas listas semanais dos livros mais vendidos, de obras que consideramos literariamente pobres e, inversamente, o descaso com que leitores contemporâneos tratam obras que temos como fundamentais no plano literário; a falência de inúmeras editoras cujos livros contribuíram para a nossa própria formação; o crescente desprestígio sociocultural dos protagonistas do mundo literário; o espaço cada vez maior adquirido pela imagem em detrimento do texto, pelo audiovisual em detrimento do da escrita e do impresso; a redução da presença das matérias literárias na grade curricular do ensino médio; a fragilização de diversas formações universitárias da área de estudos literários, inclusive por um decréscimo progressivo do número de estudantes; a imposição de critérios oriundos de outros setores científicos nos processos de regulação e avaliação da pesquisa literária... Poderíamos assim multiplicar os indícios de um desaparecimento iminente da literatura, estendendo nossa lista ao ponto de elaborar um extenso catálogo.

Nessa perspectiva, então, o mundo de amanhã teria vocação de se tornar a-literário. Quanto aos estudos literários, se eles persistissem, teriam um estatuto semelhante ao que hoje reservamos a disciplinas como a paleografia, ciência das origens e transformações das escritas antigas; ou como a arqueologia, ciência de culturas antepassadas, dedicada à análise e interpretação de vestígios que delas subsistem. Vestígios de um mundo em que pessoas ainda liam Dante e Tolstoi...

A impressão de que uma ameaça pesa sobre o futuro da literatura é recorrente e alguns estudos recentes, assinados por grandes especialistas (TODOROV, 2007; COMPAGNON, 2007), parecem corroborá-la: após se interrogarem sobre o que a literatura “ainda pode” em relação ao mundo em que vivemos, tais especialistas alcançam conclusões convergentes no que tange ao estado atual do campo literário. Dentre os títulos que abordam a questão, o comparatista francês William Marx (2005) considera que o século xx culminou num fenômeno de “adeus à literatura”, que para ele constitui uma transição “entre dois mundos: um em que a literatura aspirava à totalidade e outro em que ela reduz suas ambições ao mínimo”. É assim que Marx reinterpreta do seguinte modo a trajetória da literatura ocidental, desde o século xviii: após ter atravessado as fases de expansão e autonomia, ela conhece em seguida a etapa da desvalorização, com a modernidade, desde “o adeus não literário de Rimbaud à literatura” até a experiência do fracasso da linguagem em Beckett. Marx refere-se a uma “dialética entre a supervalorização e a desvalorização” – uma desvalorização que se instaura como resposta ao relevo decorrente da aquisição da autonomia da literatura.

Ora, em vez de tal projeção, tão disfórica e melancólica, prefiro lembrar uma obviedade que, no entanto, às vezes esquecemos: a “literatura”, enquanto universo autônomo com as características que lhe conhecemos, não esgota todas as possibilidades do literário nem da escrita literária. É possível com efeito que estejamos assistindo aos últimos suspiros da “literatura”, tal como fomos acostumados a considerá-la desde o fim do século xviii e ao longo do século xix, enquanto conjunto de práticas textuais e socioculturais que assumiram uma feição específica nas culturas ocidentais, a partir da ruptura estética representada pelo romantismo, em que o divórcio entre poética e retórica exerce um papel crucial. Falo especificamente dessa “literatura” que se foi renovando à medida que seus protagonistas lhe atribuíam novos preceitos e novos papéis, de inspiração realista-naturalista, simbolista ou vanguardista. Essa “literatura”, com tais contornos e funções, noção em boa parte instituída e veiculada pelo sistema escolar a partir do século xix, de fato, depois de ter perdido o prestígio do passado, talvez esteja atingindo seus últimos estertores, resignando-se a ser uma forma de expressão entre outras. Talvez.

Já não me parece ser o caso do literário, universo dotado de inesgotáveis recursos de expressão da criatividade verbal, e que não se limita ao regime pós-romântico de literatura. Tenho a impressão de que esses inesgotáveis recursos permanecerão, investindo formas e práticas socioculturais diferentes das atuais. Formas e modalidades que possivelmente ainda nos escapem já que, no fundo, ignoramos parcialmente as potencialidades do futuro.

Crise dos estudos literários?

Do mesmo modo que regularmente se fala do fim iminente da literatura, também se fala ciclicamente de crise dos estudos literários. Discussão recorrente que, se por vezes desaparece durante alguns anos, para ressurgir em seguida, sob outra forma.

Já há mais de duas décadas, o comparatista Hans Ulrich Gumbrecht (1995), ao se interrogar sobre o futuro dessa área de conhecimento, nela identificava, desde o fim do século xix, um estado de “crise permanente”. Mais recentemente, o teórico da literatura Jean-Marie Schaeffer datou essa crise do início do mesmo século xix, interpretando-a como um fruto ao mesmo tempo do desenvolvimento das ciências sociais, da ação da própria criação literária e da evolução histórico-cultural mais ampla (SCHAEFFER, 2011, p. 14). Além disso, esse ensaísta ressalta que tal crise decorre em parte de um equívoco que consiste em confundir o objeto dos estudos literários com uma institucionalização específica do literário, problemática que já evocamos. Há quem considere essa crise como mero indício de uma metamorfose dos estudos literários, que “têm atrás de si uma longa e nobre história”, demonstrando tanto uma grande capacidade para questionar “a política das nossas fronteiras institucionais”, quanto as “potencialidades de tradução interdisciplinar” dessa área  (SILVESTRE, 2011, p. 528-530); também há quem, apesar de reconhecer que “essa crise não é de hoje” identifique na nossa época uma inédita onda de descrédito e contestação dos estudos literários (BERNARDES, 2011, p. 30).

Que responder, diante de reiteradas afirmações da crise dos estudos literários?

Tenho a convicção de que uma melhor compreensão da escrita literária permite uma melhor compreensão do real, o que me leva a supor que dificilmente o mundo se passará desse trunfo. Ainda assim, admito que seja possível que um dia os estudos literários, enquanto disciplina reconhecida institucionalmente, venham a desaparecer. Ou talvez eles continuem a existir sob outra denominação.

Mas, se vierem a desaparecer, também tenho certeza de que encontraremos em outras disciplinas – reativados em perspectivas epistemológicas diferentes das atuais – os vestígios do saber acumulado por tantas gerações de leitores e especialistas bem como algumas das ferramentas metodológicas desenvolvidas por estes. Se for o caso, de certo modo, ocorreria então com essa área aquilo que no passado se deu com a arte retórica, que a modernidade abandonou, mas cujos princípios servem ainda hoje de esteio subterrâneo a disciplinas como os próprios estudos literários e a análise do discurso.

Com efeito, temos uma forte tendência a salientar as rupturas epistemológicas que se produzem na nossa área, ao percorrermos a história das correntes teóricas que nela se desenvolveram, desde a filologia e a estilística, até – sem se pretender exaustivo – o formalismo russo, o new criticism, a estética da recepção, a narratologia, a sociocrítica, os estudos culturais, os estudos feministas e assim por diante. A reformulação metodológica é um dos elementos típicos dos estudos literários e, mais amplamente, das ciências humanas e sociais. Mas de tanto salientar essas rupturas, terminamos por não tratar com a devida atenção o papel, inegavelmente manifesto, da cumulatividade do conhecimento e das conquistas metodológicas que também caracterizam nossa área. Essa fraca consciência da cumulatividade é sem sombra de dúvida um dos fatores que contribuem para uma impressão de crise permanente.

Como corolário inevitável dessa débil consciência da cumulatividade, desenvolve-se uma incapacidade para dialogar com os que de nós discordam. Incapacidade infecunda, que por vezes reduz o debate acadêmico a um agregado de postulados autoisolados, que não admitem a coexistência de abordagens diferentes do literário. Uma incapacidade que é irmã do dogmatismo e contribui para um panorama de suspeição permanente na reflexão.

Em meio a tal asfixia solipsista, raramente se leva em conta que, mesmo entre representantes de correntes teóricas radicalmente opostas ou inconciliáveis, pode haver pontos de concordância ou argumentos comuns, ainda que não concordemos com todas as conclusões a que chegam essas correntes (GOODHEART, 1999). Um impasse que, por sua vez, também fortalece a impressão de crise.

Sobre porosidade e obsolescência

As fronteiras entre o literário e o não-literário se caracterizam por um processo de transformação permanente, envolvendo autores e mediadores (editor, tradutor, crítico, bibliotecário, professor, leitor anônimo). Dada a porosidade dessas fronteiras, parece-me ilusória qualquer definição apriorística e imutável, independentemente do momento histórico e do meio sociocultural de que falamos, do literário e da “literatura”. Ao negligenciarmos essa impossibilidade de definição imutável e apriorística, incorremos no risco de sucumbir em projeções disfóricas sobre “o fim da literatura”, conforme mencionamos. Quanto ao estado de crise dos estudos literários, como também vimos, ele decorre em parte de dois fatores endógenos ao funcionamento da nossa área, sobre os quais talvez possamos intervir: uma fraca consciência da cumulatividade das conquistas metodológicas e um desleixo quanto ao potencial de diálogo entre representantes de correntes teóricas distintas.

Como posso conciliar a aspiração a uma reflexão teórica sobre o literário – objetivo dos estudos literários com a consideração do caráter movente das fronteiras do literário? De que maneira essa minha aspiração pode assumir a forma de um debate em que análises e saberes distintos se confrontam sem, no entanto, me conduzirem à estéril suspeição permanente em relação aos argumentos diferentes dos que uso?

Toda a dificuldade e o interesse do nosso tema reside justamente nesse desafio. Considero o respeito a essas duas preocupações como um dos princípios mais férteis para os estudos literários, hoje e amanhã.

Creio ter sido fiel a essas preocupações na realização de um projeto coletivo de pesquisa que coorganizei com Alain Montandon e que, por isso, tomo a liberdade de evocar na última parte deste texto. Nesse projeto coletivo de pesquisa, analisamos a transformação dos gêneros literários e mais exatamente o aspecto menos abordado dessa transformação, que é a obsolescência, ou seja, o fenômeno de abandono de um gênero em relação às práticas literárias de uma época ou em relação ao gosto de um grupo específico de leitores. Trata-se do aspecto menos abordado da transformação dos gêneros e, justamente, o que mais se relaciona com a porosidade dos confins do literário.

Publicamos assim o Dicionário comentado da obsolescência dos gêneros literários, obra de referência que reúne 83 ensaios, de umas vinte páginas cada um, redigidos por setenta pesquisadores (NEIVA e MONTANDDON, 2014). Mantive uma discussão muito produtiva com todos eles que, oriundos de diferentes países, trabalham sobre literaturas diversas, teatro, história, filosofia e análise do discurso. À exceção da introdução geral, que redigi, e de um ensaio de abertura confiado a Dominique Maingueneau, sobre “Unidade e diversidade, posicionamento e investimento genérico”, cada ensaio examina a transformação de um gênero na perspectiva do seu desgaste e analisa seus vestígios na literatura posterior, através de reabilitações deliberadas, em contextos bem distintos do original, passando a exercer funções novas e a tratar de novos temas. O nosso objetivo foi contribuir para uma compreensão tanto das causas e do funcionamento do abandono dessas formas quanto do seu potencial “poético”, enquanto estímulo à escrita, através da sua reemergência.

Assim, em cada caso abordamos em diacronia um repertório genérico para examinar o momento em que ele cessa de ser enriquecido e o processo pelo qual a obsolescência se produz. Quando é que uma identidade genérica em particular passa a ser abandonada? Ou seja, a partir de quando os códigos que a caracterizam deixam de “alimentar” a produção ou a recepção dos textos que com eles lidam? Até quando um gênero persiste e através de que mecanismos ele cessa de ser o que é? A partir de quando e em que condições ele pode voltar a estimular a produção e a leitura de textos? São questões desse tipo que formulamos.

Decidimos adotar uma concepção bem ampla de gênero, reunindo artigos sobre gêneros teóricos, gêneros históricos, subgêneros, formas poéticas... O gênero é, assim, tanto um termo coletivo pelo qual designamos uma classe de textos quanto uma categoria de pensamento, dotada de múltiplas funções e de um inegável valor de uso.

Ao contrário de defensores de uma visão nominalista do gênero literário, na linha de Benedetto Croce e Maurice Blanchot, constatamos que ele é dotado de uma dimensão cognitiva, que é atestada pela capacidade que tem de mobilizar tanto a experiência empírica de produção ou recepção de um texto específico quanto a atitude indutiva e dedutiva de concentração do espírito no seu vai-e-vem desde o particular (um texto preciso) ao geral (o gênero ou os gêneros de que esse texto participa). O gênero literário é dotado de uma dupla instância autorial e leitoral, como lembra Schaeffer (1989), e de uma dupla dimensão descritiva e prescritiva, que aliás não se confunde com uma natureza estritamente normativa.

Ao recorrermos a essa concepção ao mesmo tempo ampla e rigorosa do gênero literário, pudemos ampliar o escopo da nossa análise. O nosso dicionário analisa assim, lado a lado, a obsolescência de formas poéticas codificadas (como a vilanela), identidades genéricas que foram retomadas ao longo dos tempos (como a égloga, a ode), subgêneros que tiveram uma fortuna relativamente breve (romance de aventuras, romance gótico, romance de capa e espada), gêneros diretamente ligados a práticas socioculturais específicas (como a oração fúnebre, o brinde), gêneros relacionados com as artes cênicas (como o mistério, a farsa) ou com um saber disciplinar específico (diálogo filosófico, poesia científica)...

As obras que tratam da história de um gênero literário costumam valorizar as suas origens, examinando de que modo eles derivam de outros gêneros. No nosso caso, procedemos a uma inversão dessa perspectiva dominante, para compreender o que acontece com uma forma quando ela começa a ser considerada como desinteressante, inadequada, sem uso, sem sentido. Em suma, nosso objetivo é examinar o gênero à medida em que ele se aproxima do limiar para além do qual ele deixa de interessar “a literatura”.

Em geral a abordagem tradicional da transformação dos gêneros literários implica um juízo de valor, ao identificar uma fase que corresponde à de melhor desenvolvimento do gênero, a partir da qual, tudo o que for produzido, será considerado como manifestações “decadentes” da forma. Ora, percebemos o quanto esse juízo de valor se baseia numa projeção retrospectiva da história dos gêneros literários. Nessa perspectiva dominante, o declínio de um gênero literário é a fase menos estudada da sua transformação, apesar de ser extremamente rica em ensinamentos. Ao privilegiá-la no nosso dicionário, constatamos que ela constitui uma excelente porta de entrada para entender práticas literárias e socioculturais passadas, bem como para reler as literaturas atuais. Dado que a obsolescência implica uma redefinição dos contornos daquilo que se considera como literário, extra-literário ou para-literário, a sua análise constitui então uma via pertinente para pensar a literatura e as fronteiras moventes do literário.

Vale agora fazer duas breves considerações sobre o formato do dicionário, que escolhemos. Ele pareceu-nos perfeitamente adaptado a um elemento da nossa problemática: a marginalização ou exclusão de uma prática genérica em relação ao cânone literário de uma época ou de um grupo de leitores não se inclina diante de esquemas apriorísticos de análise. Cada caso é um caso: a obsolescência de um gênero literário é fruto de diversos fatores, o que aliás lhe dá um interesse particular. Temos tanto fatores internos (relacionados com a natureza e o funcionamento do gênero), quanto externos (de ordem sociocultural ou editorial por exemplo). Certos gêneros já nascem apoiados em códigos precisos, quase uma fórmula previsível, a tal ponto que no fundo a gente não se espanta com o esgotamento da fórmula – ao contrário, o que nos parece mais difícil é compreender que tenham conseguido durar – é o caso do romance de capa e espada que, como diz o dicionário, é um gênero que “já nasce velho”. Outros, por estarem associados a práticas culturais específicas, deixam de existir quando essas práticas evoluem, ou deixam de ter a importância que tinham: é o caso dos epitáfios inscritos nas estelas funerárias, que desaparecem à medida que os rituais ligados à morte se transformam. Em suma, apesar de podermos evocar alguns roteiros mais recorrentes, não podemos formular leis gerais de explicação da obsolescência dos gêneros, sendo necessário privilegiar sempre uma análise empírica.

Por outro lado, o mesmo formato do dicionário – com a sua restrição formal que consiste em dispor por ordem alfabética temas que nosso espírito dispõe noutra ordem – pode inicialmente dar a impressão de que consideramos os gêneros como realidades estanques entre elas e impermeáveis ao que as cerca. Fica claro ao lermos os artigos que os gêneros somente têm uma existência e um sentido na medida em que são acolhidos na interação que estabelecem tanto com práticas socioculturais específicas ligadas à sua produção e circulação, quanto com outros gêneros com os quais se relacionam por proximidade, por diferenciação ou por antinomia, num momento histórico preciso. Abandonamos assim toda perspectiva normativa, essencialista ou teleológica do gênero literário.

Um caso particularmente representativo do que temos dito é o da produção e recepção da poesia épica na modernidade, que venho analisando há alguns anos e cujos resultados sintetizo no artigo “Epopeia”, que redigi para o dicionário. Como sabemos, a epopeia ocupou o ápice do sistema genérico nas literaturas ocidentais, entre os séculos XVI e XVIII, sempre apresentada nos tratados de poética da época como o gênero mais nobre e mais completo de todos. Desde pelo menos a segunda metade do século XVIII, porém, a problemática da obsolescência passa a ocupar o centro das tentativas de reflexão sobre esse gênero.

Assim já em 1774 Christian Friedrich von Blanckenburg, no seu Versuch über den Roman [Ensaio sobre o romance], publicado em Leipzig, retoma a confrontação entre romance e epopeia, a que já tinham recorrido tratados do século xvii, como a Lettre-traité de Pierre Daniel Huet sur l’origine des romans, de Pierre-Daniel Huet (1670). No entanto, Blanckenburg inverte a escala de valores que era associada até então a essa aproximação entre os dois gêneros narrativos: para ele, não se trata mais de mostar a superioridade da épica sobre o romance. Em vez disso, Blanckenburg procura indicar que o romance, que representa o homem interior na sua relação com o mundo (em vez do cidadão e das ações públicas), corresponde melhor do que a épica às características da modernidade. Na sua Estética, Hegel retoma esse postulado, quando estabelece uma escala de evolução dos gêneros e das artes: para ele o prosaísmo do mundo moderno se opõe radicalmente às condições necessárias ao desenvolvimento daquilo que ele considera como a “verdadeira” poesia épica.

Ao longo do século xx, o preceito da inadequação da épica à modernidade reaparece nos trabalhos de diferentes pensadores, segundo os quais, “por essência”, essa poesia está associada a épocas passadas, enquanto gênero definitivamente “morto” (LUKÁCS, 1968; BOWRA, 1945), e “completamente acabado (...) quase esclerosado” (BAKHTIN, 1975, p. 450), sem condições de “renascer” (STAIGER, 1990, p. 105). Em relação a esse ponto, Lukács (1968) e Bakhtin (1975), cujas obras, para além da inegável importância teórica que tiveram e que têm, fruíram de uma espécie de unanimidade pouco salutar, que de certo modo paralisou a reflexão sobre a poesia épica e sobre as suas transformações efetivas ao longo dos séculos. O preceito de inadequação da poesia épica à modernidade, presente em Blanckenburg, tinha desde então assumido um papel de dogma irrefutável e indemonstrável.

Em franca divergência com essa tendência do discurso crítico, observamos – o que é profundamente paradoxal mas instigante para nossa perspectiva – a publicação de inúmeros poemas épicos em diferentes literaturas, ao longo dos séculos xix e xx. Muitos poetas em diferentes países compuseram obras de peso, em que buscam se inscrever nessa tradição. Dessa longa lista, chamo a atenção apenas para quatro nomes do século passado que, num mesmo contexto imediatamente posterior à Segunda Grande Guerra, em países diferentes, contribuem à reabilitação da poesia épica por meios complementares: Pablo Neruda, Canto geral (1950), Jorge de Lima, Invenção de Orfeu (1952), Ezra Pound, Os Cantos (a partir de 1954), Édouard Glissant, As Índias (1955).

Todos são longos poemas narrativos que propõem uma reflexão sobre o presente através de uma rememoração do passado coletivo, recorrendo a mitos e efetuando deliberadamente uma releitura de motivos e elementos formais que caracterizam o repertório épico dos séculos anteriores. Muito rapidamente, podemos dizer que os poemas de Neruda e Pound refletem um esforço comum para conciliar a extensão característica da épica com os fundamentos de uma poesia do fragmentário, típica da modernidade, a fim de lançar olhares opostos, em termos ideológicos, sobre o continente americano. Quanto aos de Jorge de Lima e Édouard Glissant, de maneira complementar, eles adaptam a uma visão moderna da história o procedimento da catabase: o primeiro, através de um longo excurso em dez cantos sobre a condição humana após a Queda; e o segundo exumando, ao longo de três cantos, a memória dos homens anonimamente mergulhados na página dolorosa do tráfico de escravos.

Esses poemas baseiam-se num diálogo direto e renovado com os códigos poéticos que caracterizam a épica. Ao contrário do que supõem partidários de uma concepção nominalista do gênero literário, parece-me claro que a identidade genérica é, nesses casos, uma chave fundamental para uma melhor compreensão deles. E, mais exatamente, pouco entenderemos dessas narrativas poéticas se não a considerarmos na perspectiva da reconfiguração da épica – gênero tido como esgotado pelo discurso crítico – reconfiguração para a qual eles contribuem de maneira crucial.

É verdade que esses poemas foram compostos sob a égide de princípios estéticos pós-românticos, em sociedades capitalistas e burguesas, marcadas pelo prosaísmo da modernidade e guiadas por valores individualistas em clara contradição com a ética heroica que domina nas epopeias antigas. Mas todos eles contribuem a esse processo de “reconfiguração” do gênero, que consiste em recuperar e reelaborar em uma nova perspectiva os valores e códigos da poesia épica, apropriando-se explícita e deliberadamente de um acervo comum de temas, motivos e restrições formais que o caracterizam. Não estamos diante de uma simples “reprodução estereotipada das características de um gênero” (JAUSS, 1970, p. 86), já que esses poetas não propõem uma “retórica oca” de apego à tradição, a fim de capturar a suposta autoridade dessa tradição. Nem se trata de confundir esse recurso à reabilitação com uma ilusão de continuidade do gênero, impostura que consistiria em pensar a presença da épica como uma realidade monolítica ou uma entidade fixa. Trata-se de um funcionamento muito mais sutil e rico de sentido, cuja análise é um pré-requisito para uma melhor compreensão da poesia do século xx. Isto é ainda mais válido que, através da reabilitação da poesia épica, estes poemas cristalizam uma necessidade de superar a tendência à sobrevalorização da poesia lírica e um desejo de limitar a hegemonia do gênero romanesco – duas características do sistema genérico em vigor no século passado.

Tais considerações são mais bem desenvolvidas e aprofundadas no artigo “Epopeia”, que cito aqui como exemplo do trabalho desenvolvido no dicionário. Ao cabo dessa empreitada coletiva, cheguei a pelo menos duas constatações que me voltam à mente quando se trata de discorrer sobre o futuro dos estudos literários.

A primeira constatação é a que me conduz a analisar a literatura sem aderir a explicações globalizantes, que tantas vezes inibem uma interpretação fundada na leitura direta dos textos – seja as explicações de caráter biológico, que tiveram certo sucesso no começo do século xx, na linha de Brunetière, seja as que anunciam com antecedência uma trajetória esquemática a ser descrita por todos, seguindo uma inspiração teleológica. No passado, já se inventaram inúmeras modalidades de gêneros para exprimir emoções, contar histórias, manifestar opiniões, à medida que as práticas de escrita e de leitura se transformavam. Balada, epopeia, disputa, milagre, romance-diálogo, sonho alegórico... Esses gêneros atingiram em certo momento um patamar que os conduziu a um estado de abandono ou marginalização. Tornaram-se obsoletos. Mas a história pode sempre nos surpreender trazendo novas formas de apreendê-los, tanto do ponto de vista da escrita quanto da leitura.

A essa lição de humildade diante da amplidão e complexidade da obsolescência, acrescenta-se uma lição de prudência em relação às supostas permanências de gêneros que se teriam conservado ao longo dos séculos. A farsa medieval não é exatamente a mesma que a de Molière nem de Alfred Jarry e Dario Fo. Nenhum gênero atravessa os séculos ou as fronteiras culturais sem ser modulado, passando por uma transformação que é uma das condições para que ele perdure. A transmissão de um gênero literário é assim indissociável da sua transformação.

Retornando à questão mais geral abordada neste texto, parece-me importante, para desenvolver as potencialidades futuras dos estudos literários, contribuirmos para que a reflexão teórica leve em conta o caráter movente das fronteiras entre o literário e o não-literário, associando-se a esse princípio o cuidado de considerar a pesquisa em literatura como um trabalho que leve em conta a cumulatividade do saber e das conquistas metodológicas, abrindo mão da suspeição permanente para com outras correntes. Para isso, dei como exemplo a questão da transformação dos gêneros literários, em relação à qual, parece-me necessário abrirmos mão de todo dogmatismo apriorístico e teleológico, que nos conduz por vezes a abandonar pistas de leituras fornecidas pelos textos; também me parece fundamental recusar tudo o que, numa posição ingenuamente nominalista, nos leva por vezes a uma leitura rasa desses mesmos textos. Já que se trata para mim de formular hipóteses de trabalho dotadas de uma dimensão performativa, mais do que preditiva, espero que possamos no futuro continuar a assumir riscos ao pensarmos o literário nas suas relações com tudo o que “o extrapola”.

Já que se trata falar de “futuros possíveis”, no plural, autorizo-me a estabelecer uma distinção entre duas modalidades temporais do amanhã. De que maneira?

Temos por um lado o “futuro que será”, uma realidade temporal que engloba tudo o que é inevitável (ou quase inevitável) no tempo que há de vir, aconteça o que acontecer. O que será será. Essa realidade futura “que será”, tem suas raízes fincadas no passado, naquilo que foi mas não se foi plenamente – e que deixou no presente suas marcas, explícitas ou latentes. Graças a esse enraizamento no passado, podemos prever certos elementos desse “futuro que será”. Assim, estando persuadido de que uma melhor compreensão da escrita literária permite uma melhor compreensão do real, presumo que dificilmente o mundo se passará das potencialidades da criação e da leitura literárias; e se os estudos literários vierem a perder sua autonomia disciplinar, suponho que os rastros do saber acumulado das ferramentas metodológicas desenvolvidas ao longo de séculos de criação e leitura serão reativados em outras disciplinas, segundo perspectivas epistemológicas distintas das nossas.

Às vezes, porém, temos tendência a confundir essa primeira modalidade do tempo futuro com uma segunda, a de um tempo que ainda está por vir. A segunda modalidade de tempo futuro refere-se a um porvir que resta a conceber e a elaborar. Trata-se de uma temporalidade vindoura cujos contornos desconhecemos por enquanto, mas sobre a qual podemos intervir em função das escolhas que temos feito, tanto no passado quanto no presente. Quem viver verá. Esse porvir engloba tudo o que, no tempo que há de vir, pode ser modulado, modificado, desenvolvido. Ignoramos seus contornos e, assim, o seu perfil definitivo, mas somos conscientes da existência de suas potencialidades. Associo a esta segunda modalidade por exemplo os dois princípios defendidos em relação aos estudos literários: conciliar a aspiração a uma reflexão teórica sobre o literário com a consideração do caráter movente das fronteiras do literário; movido por uma forte consciência da cumulatividade das conquistas metodológicas passadas, abdicar da estéril suspeição permanente em relação aos argumentos diferentes dos que uso, promovendo a minha aspiração através de um debate em que análises e saberes distintos se confrontam. Parece-me que deles muito depende a continuidade futura dos estudos literários – ainda que dentro de contornos distintos dos atuais.

Falávamos no início de ameaças à literatura e aos estudos literários. Parece-me que certas modalidades da literatura e dos estudos literários dependem desse porvir, um amanhã feito de “quem viver verá”, com tudo o que isso implica em termos de riscos e potencialidades. No entanto, creio que no futuro do “que será será” coabitarão tanto modalidades do literário que já conhecemos, quanto diversos elementos metodológicos e cognitivos adquiridos e acumulados ao longo dos séculos pelas diversas tentativas de reflexão nessa área.

A quem caberão esses futuros? O que caberá nesses futuros? Veremos.

REFERÊNCIAS

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BOWRA, Cecil Maurice. From Virgil to Milton. Londres, Macmillan & Co. Ltd., 1945.

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