Um olhar sociológico sobre a tradução

Um olhar sociológico sobre a tradução

Lana Beth Ayres Franco de Araujo[1]

Marcia A. P. Martins[2]

[1] Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),  https://orcid.org/0000-0001-9328-541X

[2] Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), https://orcid.org/0000-0002-8663-1748


RESUMO:

A proposta deste artigo é fazer uma breve apresentação de algumas das principais ideias e teóricos que embasam a vertente sociológica dos Estudos da Tradução, a qual entende a tradução como prática social. As traduções estão sempre situadas em contextos sociais, uma vez que os indivíduos que as realizam não só pertencem a um sistema social, como também respondem a instituições sociais dos mais variados tipos, em grande parte responsáveis por selecionar, produzir e distribuir as traduções (WOLF, 2007). Consequentemente, vislumbra-se um diálogo bastante frutífero entre a tradução e a sociologia, disciplina que estuda as interações humanas e as sociedades e pode, portanto, ajudar a compreender de que modo fatos, crenças e práticas, como a tradução, são socialmente construídos (BUZELIN, 2013).

Palavras-chave: Sociologia da tradução. Pierre Bourdieu. Niklas Luhmann. Bruno Latour. Teoria ator-rede.


ABSTRACT:

The purpose of this article is to present briefly some of the main ideas and theoreticians that inform the sociological perspective in Translation Studies, one which views translation as a social practice. Translations are always embedded in social contexts, since the individuals that perform them not only belong to a social system but also are linked to social institutions of different kinds, largely responsible for selecting, performing and distributing translations (WOLF 2007). Thus a very fruitful dialogue can be expected between translation and sociology, a discipline that studies human interactions and societies, and therefore can help us understand how facts, beliefs and practices such as translation are socially constructed (BUZELIN 2013).

Keywords: Sociology of translation. Pierre Bourdieu. Niklas Luhmann. Bruno Latour. Actor-network theory.


Por uma sociologia da tradução: do texto ao contexto

O objetivo deste artigo é apresentar, de uma forma panorâmica, algumas das principais ideias que embasam a perspectiva sociológica da tradução. Durante as últimas quatro décadas, os estudos da tradução testemunharam uma sucessão de mudanças no que se refere a perspectivas epistemológicas. Se até meados da década de 1970 prevaleceu o enfoque de orientação estruturalista, formalista, que se restringia a prescrever como se deveria fazer uma “boa tradução”, a partir daquele ponto o espectro analítico ampliou-se sobremaneira e voltou seu interesse para os múltiplos aspectos extratextuais que não só orbitam ao redor da tradução, mas também concorrem, de forma direta ou indireta, para que a atividade tradutória se realize. Dentre esses aspectos extratextuais, pode-se citar o processo de elaboração do texto traduzido, que envolve uma série de agentes desempenhando papéis específicos nessa cadeia de produção.

Em virtude do papel crucial que vem desempenhando historicamente, a tradução tem suscitado reflexões acerca da sua execução. O interesse sobre a tradução data da Roma Antiga, quando Cícero e Horácio abordaram o fenômeno em suas obras Libellus de optimo genere oratum (46 a.C.) e Ars Poetica (c. 19 a.C.), respectivamente. Desde a Antiguidade Clássica até o quarto final do século XX, no entanto, as análises de traduções se restringiam, de modo geral, a enfocar os aspectos gramaticais (sintáticos, lexicais e fonéticos, estes cruciais para a tradução de poesia) envolvidos na transposição dos textos de uma língua para outra. Em suma, pensar e falar sobre a tradução se circunscrevia ao campo linguístico: observar tão-somente as alterações estruturais sofridas pelo texto de origem, escrito na língua A, que se convertia no texto traduzido, escrito na língua B. O debate trazido à baila por ambos os oradores romanos girava em torno de duas alternativas no tocante à estratégia tradutória: traduzir “palavra por palavra”, ou traduzir “sentido por sentido”. É nessa dicotomia que se identifica a gênese de três dos conceitos, ou temas, centrais e recorrentes nos Estudos da Tradução: fidelidade, fluência e intraduzibilidade. Desse modo, tendo em vista apenas o texto, stricto sensu, as reflexões e os comentários sobre tradução elaborados à época voltavam-se para como manter a fidelidade ao original,conferindo fluência ao texto traduzido e empregando a melhor estratégia para transpor os obstáculos tradutórios, criados por elementos textuais (linguístico-culturais) muitas vezes considerados intraduzíveis.

No entanto, se ampliarmos a lente com que se examina a tradução, nossa atenção se voltará, também, para o que circunda o fenômeno tradutório: a transformação daquele texto escrito na língua A num texto escrito na língua B foi executada para atender a uma necessidade específica de um indivíduo ou de um grupo. E o atendimento a essa necessidade não só provocou a atuação de alguém capaz de levar a cabo essa transformação interlingual, mas também acarretou a intervenção de um outro alguém – indivíduo ou instituição – que intermediasse e promovesse essa metamorfose textual. Desse modo, o objeto de análise poderá ser – ou contemplar – algo exógeno ao texto, algo que lhe seja concernente, mas de forma periférica. Percebe-se, então, que, com vistas à produção de um texto traduzido, independentemente de sua natureza, constitui-se uma rede de agentes (indivíduos e grupos), cada qual com uma tarefa própria. Essa rede de agentes e tarefas se verifica em vários campos, a saber: literário, acadêmico, farmacêutico, jurídico, tecnológico, audiovisual, para citar alguns. Por tudo até aqui exposto, parece legítimo afirmar que a tradução, vista predominantemente como uma prática textual, pode ser entendida como uma prática social, como se depreende da seguinte afirmação de Michaela Wolf:

[...] o ato tradutório é, em todos os seus estágios, inegavelmente praticado por indivíduos que pertencem a um sistema social; [...] o fenômeno tradutório está inevitavelmente vinculado a instituições que, em grande parte, determinam a seleção, a produção e a distribuição da tradução e, por conseguinte, as estratégias adotadas na tradução em si. [3] [4] (WOLF, 2007, p. 1)

Dessa forma, por trás de um texto traduzido, independentemente do gênero a que possa pertencer, existe toda uma cadeia operacional formada por indivíduos e entidades, cadeia esta movida a partir de demandas específicas. Uma vez manifesta essa necessidade, articula-se toda uma rede de agentes e tarefas com o objetivo de produzir a tradução, contemplados aí todos e quaisquer elementos textuais, contextuais e extratextuais.     

A ponte entre sociologia e tradução: pilares teóricos

Examinando a sociologia da tradução sob uma ótica diacrônica, identifica-se em James Holmes e em Itamar Even-Zohar o pioneirismo dessa abordagem contextual. Em suas reflexões sobre o nome e a natureza dos Estudos da Tradução, apresentadas no 3° Congresso Internacional de Linguística Aplicada, realizado na cidade de Copenhagen, em agosto de 1972, Holmes alertou para a existência de aspectos pertinentes à área, mas que não se referiam estritamente ao âmbito textual/gramatical. Ao tentar delinear o escopo da disciplina, Holmes menciona “o complexo de problemas em torno do traduzir e das traduções” [5] (HOLMES, 1988, p. 67). Cerca de três anos após o paper de Holmes, o teórico israelense Itamar Even-Zohar desenvolve um modelo teórico em que concebe a cultura como um sistema macro contendo outros sistemas, dentre estes a literatura. Cada cultura tem a sua literatura, produzida em seu vernáculo, que forma, segundo Even-Zohar, um sistema composto por um repertório, incluindo aí autores e suas respectivas obras. A literatura traduzida, conforme o modelo sistêmico do estudioso de Tel-Aviv, forma um sistema específico, que abriga obras e autores pertencentes a outras culturas, em traduções para a língua do sistema importador. A seguir vieram Gideon Toury – que, a partir da teoria de polissistemas de Even-Zohar, desenvolveu os estudos descritivos da tradução, abraçados por estudiosos que ficaram associados à chamada manipulation school – e os proponentes da “virada cultural”, entre os quais se destacam André Lefevere e Susan Bassnett. No entanto, alguns aspectos e ângulos de observação do fenômeno tradutório ainda não eram devidamente contemplados, como, por exemplo, o papel dos agentes, dos quais o mais visível é o próprio tradutor. Um caminho para preencher esta e outras lacunas foi vislumbrado a partir de uma perspectiva sociológica, adotada por estudiosos como Theo Hermans, Jean-Marc Gouanvic, Michaela Wolf, Hélène Buzelin, Anthony Pym, Daniel Simeoni, Andrew Chesterman, Pascale Casanova, Johan Heilbron e Gisèle Sapiro. É possível falar, portanto, de uma “virada sociológica” nos Estudos da Tradução a partir dos anos 2000, que conta, na avaliação de Buzelin (2013, p. 195), com Even-Zohar, Toury, Hermans e Lefevere como seus principais precursores. Segundo Wolf (2014), essa virada logrou aguçar um “olhar sociológico sobre as diversas agentividades e agentes envolvidos em qualquer procedimento tradutório, e mais especificamente sobre os fatores textuais que operam no processo da tradução” [6] (p. 129).

Argumenta Wolf (2007, p. 13-18) que o termo “sociologia da tradução” é abrangente e que, em virtude dos estudos já desenvolvidos na área, seria legítimo falar em “sociologias da tradução”, levando-se em conta os diferentes objetos de análise específicos. Até o momento, é possível identificar as seguintes subáreas: uma voltada para os agentes envolvidos no processo tradutório (sociologia dos agentes), outra que tem como foco o processo em si, investigando, por exemplo, normas institucionalmente relevantes e regularidades nas decisões tradutórias de determinados profissionais (sociologia do traduzir), e uma terceira, cujo objeto de análise é o produto cultural resultante do processo de tradução (sociologia do produto). Andrew Chesterman (2017, p. 309-310) também propõe uma visão tripartite da sociologia da tradução, que contempla as traduções como produtos, os tradutores (agentes do processo) e o processo tradutório, elegendo esta última subárea – a sociologia do traduzir, que tem recebido menos atenção nos estudos contemporâneos, segundo o estudioso – como o seu principal foco de interesse, a ser abordado mais adiante.

Falar de uma sociologia da tradução implica necessariamente falar do pensamento de Pierre Bourdieu, da teoria sistêmica de Niklas Luhmann e da teoria ator-rede elaborada por Bruno Latour e Michel Callon. Do pensamento de Bourdieu, de longe o que mais forneceu elementos para uma sociologia da tradução, destacam-se os conceitos de campo, capital simbólico, habitus e illusio. Como argumenta Jean-Marc Gouanvic (2005, p. 151), dos quatro conceitos supracitados, é o de campo que ocupa uma posição central na configuração conceitual de Bourdieu, visto que é em torno dele que os demais orbitam. Por campo entende-se o meio por onde circulam e atuam indivíduos que compartilham atividades afins ou complementares, quando não as ditas centrais, e que, justamente por isso, segundo Bourdieu, vivem em constante disputa por espaço e poder. No que tange à tradução especificamente, Munday (2012, p. 234) considera como campo a própria tradução e, dentre os participantes, acrescenta aos já previsíveis, como o editor, o tradutor e o revisor, as figuras do autor do texto de origem e o leitor da obra traduzida, estando aquele no início e este no final do processo de elaboração de uma obra traduzida.

Por capital compreende-se o valor que é atribuído a um determinado agente participante de um certo campo e que é utilizado por ele como cacife para lutar por uma posição de prestígio na hierarquia ali estruturada. Munday (2012, p. 234) distingue quatro subtipos de capital: o econômico (tudo o que de material o agente angariar em razão do seu valor dentro do campo); o social (a rede de contatos que ele pode formar em decorrência de sua importância dentro do campo); o cultural (o conhecimento adquirido ao longo do seu tempo de atuação); e, como consequência de todas as modalidades citadas anteriormente, o simbólico, que equivaleria ao status ocupado por esse agente.

Habitus, por seu turno, pode ser definido como todo o arcabouço de conhecimento e experiência que possui o agente tradutor e que compõe o “currículo” que vai conferir capital simbólico a este. Citando Moira Inghilleri[7], Chesterman (2007) resume o conceito de habitus do tradutor como sendo algo adquirido por intermédio de práticas sociais empreendidas com tal regularidade que acabam por fazer parte do próprio indivíduo. As ideias de habitus e de prática formam, assim, um binômio, uma vez que estabelecem entre si uma relação de causalidade mútua. Analisar a prática tradutória, alerta Chesterman, implica necessariamente trazer à baila muitos aspectos sociológicos presentes na cena observada:

A análise da prática [tradutória] contempla muitos aspectos sociológicos dos eventos [...] e tem por foco como [tradutores] trabalham, como organizam seu tempo, [como se dá] a dinâmica do local de trabalho, [como interagem] com outros membros da equipe e experts, [como se utilizam de] de recursos, [como gerenciam] projetos, [quais são os] padrões de controle de qualidade [a seguir] e outros elementos. Portanto, [uma análise da prática tradutória] cobre um campo mais amplo do que a análise do discurso, que volta [...] sua atenção [quase que unicamente] para o uso da língua em vez de ações num sentido mais amplo. [8] (CHESTERMAN, 2007, p. 177)

Por fim, por illusio entende-se o pacto firmado entre leitor e obra literária quando do jogo da ficção. No campo da literatura traduzida, o tradutor precisa recriar o espaço ficcional engendrado pelo autor do texto fonte de modo a proporcionar um ambiente propício para que o mesmo pacto seja celebrado entre leitor e obra traduzida.

A teoria ator-rede, que encontra em Bruno Latour seu mais emblemático propositor (sem que se desconsidere Michel Callon, já mencionado anteriormente), possui por objeto de análise não o campo literário sobre o qual Bourdieu lançou seu foco. A esfera que serviu de campo de observação para Latour foi a da ciência e da tecnologia. Nesse cenário laboratorial, por assim dizer, Latour detecta uma convivência entre agentes humanos e não humanos (equipamentos de toda natureza) que interagem com o propósito de produzir ciência. Para que essa interação se processe de forma eficaz e, portanto, venha a garantir que se produza o ato ou o artefato pretendido, os agentes precisam “se traduzir”, como explica Buzelin (2005):

[...] a tradução suscita uma sucessão de estratégias de interpretação e de deslocamento através das quais uma ideia se transforma gradualmente num fato ou artefato científico. Esse conceito é empregado em oposição ao de difusão, sugerindo que não há transmissão sem transformação e que [...] fatos e artefatos científicos [...] não se propagam em sociedade simplesmente, mas precisam criar seu próprio espaço por intermédio de um processo concomitante de formação de rede. [9] (p. 197, grifos da autora)

É sobre essa rede de agentes envolvidos no processo tradutório que o pesquisador tem que voltar a sua atenção. Isso implica, segundo Latour, lançar mão de uma perspectiva etnográfica, visto que o ato de traduzir envolve inescapavelmente questões de natureza cultural.

Sobre a teoria ator-rede, Chesterman (2017) esclarece que a ideia de rede, como concebida por Latour e Callon, não possui um “centro”, e que o traço que a caracteriza sobremodo é a interdependência de seus elementos. Infere-se daí que, na rede de Latour e Callon, não há uma estrutura hierárquica em que os agentes formadores da base possuem menor valor do que os que compõem o topo. Nesse “organismo horizontalizado”, por assim dizer, não parece haver a competição que marca o campo bourdieusiano. O aspecto da teoria ator-rede que mais nos interessa aqui é a concepção de tradução que ela encerra: segundo Chesterman, a tradução que se processa na rede de agentes concebida por Latour e Callon é a tradução intralingual de que fala Roman Jakobson (2010, p. 81). Considerando-se que a rede em questão se forma pelo entrecruzamento de tarefas executadas por atores – ou seja, agentes – faz-se necessário que “cada ator precise ‘traduzir’ significados nos seus próprios termos a fim de se fazer entender” (CHESTERMAN, 2017, p. 319). Em suma, a tradução na rede de atores de Latour e Callon é a reformulação intralinguística para fins comunicativos dada a necessidade premente de se divulgar os avanços no campo tecnológico.

Niklas Luhmann, por sua vez, propôs um modelo de sistemas autopoiéticos[10], nos quais um “evento comunicativo” é a síntese de três elementos: informação, enunciação e interpretação (BUZELIN, 2013, p. 188). À semelhança da teoria de polissistemas de Itamar Even-Zohar, no modelo teórico de Luhmann o sistema social é constituído pela justaposição de sistemas funcionais, ou seja, a estrutura social é um macrossistema composto por sistemas menores: o sistema jurídico, o religioso, o educacional e o político, para citar alguns. O que diferencia um sistema social de outro é o código: “Cada subsistema observa os demais e interpreta sua ambiência circundante de acordo com seu próprio código, que se baseia em distinções binárias (verdadeiro/falso para o sistema científico, estético/não estético para o artístico, etc.)”[11] (ibid.). A criação de novos subsistemas se dá pela ocorrência e multiplicação dos eventos comunicativos.

Theo Hermans, responsável por trazer as ideias de Luhmann para o âmbito dos Estudos da Tradução, postula que a tradução pode ser concebida como um desses sistemas, só que constituído de eventos tradutórios; sua principal função é a de representar o texto-fonte, tendo válido/inválido como código (BUZELIN, 2013, p. 188). Em outras palavras, é um sistema que se organiza em torno da diferença entre uma representação válida e uma não válida do texto-fonte (CHESTERMAN, 2017, p. 311). Um evento tradutório, segundo Chesterman (ibid.), se encaixa no conceito luhmanniano de evento comunicativo – no caso, ocorrido no âmbito do sistema de tradução –, e pode ser definido em termos cronológicos como a duração de uma tarefa tradutória, desde o pedido inicial (contratação do serviço) até a entrega e pagamento. Autônomo e complexo, o sistema da tradução se nutre não só da transformação linguística, mas também dos elementos que a cercam e cuja existência se dá tão-somente em função dessa proximidade: o que se diz sobre a tradução (em resenhas e prefácios, por exemplo) e pesquisas acadêmicas que a tematizam (ibid.). Por ter como função premente representar os interesses de todos os sistemas formadores do sistema macro, que é a sociedade, o sistema da tradução pouco se diferencia dos demais. Em outras palavras, os eventos tradutórios se pulverizam pelos demais sistemas e, com isso, fazem-se presentes em quaisquer outros. A natureza extremamente abstrata do modelo sistêmico de Luhmann, argumenta Sergey Tyulenev[12] (apud BUZELIN, 2013, p. 189), é o que o torna aplicável aos estudos da tradução.

Como se pode ver, portanto, a pesquisa sociológica sobre tradução é diversificada, mas parte do princípio de que a tradução é uma atividade inerentemente social que ao mesmo tempo reflete e molda as interações sociais. De uma forma esquemática, contempla, entre outros possíveis, os seguintes objetivos: (i) analisar as normas que governam as práticas tradutórias em contextos sociais; (ii) questionar as hierarquias e os valores que subjazem às formas como os tradutores profissionais se organizam e se percebem, assim como em que medida isso afeta seu status socioeconômico; (iii) tentar desvelar a lógica que estrutura os intercâmbios internacionais de livros pela via da tradução, assim como as barreiras e vetores que orientam a circulação de ideias em diferentes espaços sociais; (iv) analisar a responsabilidade social de tradutores e intérpretes num mundo globalizado e o seu envolvimento social; e (v) refletir sobre a relação entre teoria e prática da tradução, bem como sobre a posição dos estudos da tradução como disciplina das ciências humanas e sociais (BUZELIN, 2013, p. 187).

A sociologia do traduzir: a cadeia produtiva da tradução

Ao se observar o mapa de James Holmes, uma espécie de diagrama em que ele estrutura sua concepção do campo disciplinar dos estudos da tradução, constata-se que o ramo “puro” da área se subdivide em “teórico” e “descritivo”, como demonstrado abaixo:


Figura 1 – Mapa de Holmes segundo representação de Toury (1995, p. 10)

O ramo descritivo, por sua vez, apresenta-se tripartido, sendo que cada ramificação se refere especificamente a um objeto de estudo: o produto da tradução, o processo da tradução e a função da tradução. O processo a que alude Holmes em seu mapa, alerta Chesterman (2014, p. 36), refere-se à operação cognitiva que se verifica na mente do tradutor quando do ato tradutório, não se tratando, portanto, do aspecto sociológico da tradução. A sociologia do processo da tradução, como propõe Chesterman (2014), definir-se-ia como:

o estudo das fases do ato tradutório: práticas de tradução e procedimentos de trabalho, procedimentos de controle de qualidade e processo de revisão, a cooperação em equipes de tradução, elaboração múltipla, relações com outros agentes, incluindo o cliente, e assim por diante. (p. 37-38; grifos nossos)

Ao definir a tradução como “ato”, Chesterman constrói um cenário cujo traço mais distintivo parece ser o da práxis. Além de se conceituar como performance, a tradução, cumpridas todas as etapas de sua execução, resulta num produto que, como tal, está sujeito a um controle de qualidade. Todas essas operações performáticas são empreendidas por agentes que, lançando mão de procedimentos técnicos, estratégias e conhecimento, articulam-se de forma cooperativa para proporcionar um produto de alta qualidade ao cliente. Toda essa malha de atividades, agentes, procedimentos, relacionamentos e controle de qualidade são elementos (humanos e não humanos) constituintes do processo tradutório como proposto por Chesterman. Desse modo, ele identifica na definição de tradução como prática o ponto de partida ideal para se desenvolver uma “sociologia do traduzir” (sociology of translating), ou seja, do “processo tradutório”, entendendo-se “processo” no seu sentido procedimental, de “sequência contínua de fatos ou operações que apresentam certa unidade” (Dicionário Houaiss eletrônico), sentido esse desvinculado, portanto, dos aspectos cognitivos do fenômeno tradutório. O emprego do infinitivo em português e o do gerúndio em inglês não só denotam inequivocamente a ideia da “atividade tradutória em execução”, como também, nas línguas aqui em questão, marcam morfologicamente o que diferencia a “sociologia do traduzir”, cujo objeto de análise é mais específico, da “sociologia da tradução”, que volta o seu foco investigativo para algo mais abrangente. Chesterman (2017, p. 315) alega que uma prática “envolve pessoas (normalmente mais de uma) e que esse fato, por si só, leva-nos um passo além do foco no tradutor como agente isolado”[13]. Vincular a ideia de “agente da tradução” apenas à figura do tradutor, pelo que se pode inferir, é um reflexo da noção de tradução tão-somente como a transformação linguística de um texto escrito numa determinada língua em um texto (re)escrito em outra, atividade executada por um único agente.

Com o propósito de trazer para o âmbito da sociologia da tradução a noção de “prática”, Chesterman recorre a Runciman[14], que vê a práxis como uma “ação recíproca” (CHESTERMAN, 2017, p. 316), sendo que não se pode conceber uma ação recíproca com um elemento só. Falar da mutualidade de uma prática social é envolver necessariamente pelo menos dois elementos. Pensar nessa coparticipação é pensar forçosamente em regras disciplinares que nortearão essa atividade conjunta. A visão de “prática social” desenvolvida pelo filósofo Alasdair MacIntyre, como mostra Chesterman, repousa sobre a ideia de “atividade humana cooperativa”, ou seja, um grupo de indivíduos que se associam para realizar uma atividade com um único fim: obter um resultado bem-sucedido. Dentre os exemplos citados por MacIntyre, estão práticas esportivas como o xadrez e o futebol, a arquitetura, as atividades agrícolas, a medicina, a política, a música e a pintura. Chesterman sugere que nesse grupo se inclua também a tradução. Como se pode constatar, o ambiente descrito por MacIntyre é diferente do observado por Pierre Bourdieu. Enquanto este identifica uma constante tensão em virtude das relações de poder, aquele detecta uma rede de cooperação com um objetivo comum: a excelência do produto confeccionado pelos agentes envolvidos nessa cadeia produtiva.

Chesterman prossegue abordando a concepção de “prática social” desenvolvida por MacIntyre, alegando que o pensador escocês frisa que as atividades executadas coletivamente, ou seja, as práticas sociais, formam “um sistema institucionalizado de conduta social, em que tarefas são executadas por atores que desempenham papéis sob condições contextuais, dentre as quais se inclui a concentração de esforços para se obter qualidade”[15] (CHESTERMAN, 2017, p. 317). Ao identificar o caráter institucional das práticas sociais, Chesterman automaticamente nos remete ao conceito de patronagem desenvolvido por André Lefevere para designar “os poderes (pessoas, instituições) que auxiliam ou impedem a escrita, a leitura ou a reescrita da literatura” (LEFEVERE, 1985, p. 227). No ambiente em que se empreende a tradução, verifica-se, como já dito anteriormente, uma cadeia produtiva formada por profissionais de várias áreas, e não somente por aqueles que participam da confecção do texto traduzido. Nessa cadeia detectam-se agentes literários, editores, arte-finalistas e profissionais da área comercial, por exemplo. Todos esses agentes estão interligados e têm suas respectivas atividades promovidas por alguma espécie de instituição: uma organização religiosa, política ou acadêmica, veículos de comunicação (emissora de televisão, produtores de jornais e revistas e, mais contemporaneamente, canais, blogs e sites na internet) e as tradicionais editoras de livros. Todas essas entidades encarnam a figura do agente de patronagem, que enseja a produção e/ou adaptação de textos, incluídos aí os traduzidos, e estipula critérios de qualidade e códigos de conduta, ou seja, possui “um componente ideológico que age restringindo a escolha e o desenvolvimento tanto da forma quanto do conteúdo” (LEFEVERE, 2007, p. 35).

Seguindo a mesma direção tomada por Chesterman, Michaela Wolf (2007, p. 15-16) atribui ao viés sistêmico e descritivo dos estudos da tradução a criação de um ambiente propício para uma análise sociológica do fenômeno tradutório. Partindo do princípio de que a tradução é um processo norteado pelas relações sociais, Wolf cita três teóricos que também voltaram sua atenção para esse ponto: Clem Robyns, que concebe texto fonte e texto alvo como produtos integrados ao discurso social; Annie Brisset, que argumenta que a tradução, por se tratar de uma prática discursiva, é governada por normas, ideia já defendida por Gideon Toury; e Klaus Kaindl, cujo estudo sobre a introdução do gênero quadrinhos no campo literário alemão veio a corroborar a tese de Bourdieu de que “a posição de determinado produto cultural e seu valor relativo numa determinada sociedade são responsáveis pelo ‘sucesso’ daquele produto”[16] (WOLF, 2007, p. 16).

Partindo-se do princípio de que a tradução é uma prática social no sentido imprimido ao termo por MacIntyre e tendo em mente que há uma cadeia produtiva envolvida na sua realização, Chesterman levanta algumas questões pertinentes a esse cenário intercultural de produção coletiva. Dentre elas, destacam-se aqui: como se selecionam os textos a serem traduzidos; quem são os atores que compõem essa cadeia; como se exerce o controle de qualidade do produto final; como se dá a relação entre esses agentes; quais são os estágios que a atividade tradutória percorre num ambiente institucionalizado.

Finalizando, podemos voltar ao “mapa” dos Estudos da Tradução (HOLMES, 1988; TOURY, 1995), que inspirou uma das principais motivações para o desenvolvimento de uma perspectiva sociológica para o estudo do fenômeno tradutório, a saber, o desejo de integrar os agentes (a começar pelos tradutores) na configuração da disciplina. A análise reflexiva e sistemática das condições – história, instituições constitutivas e atividades atuais – sob as quais essa (inter)disciplina se desenvolveu poderá constituir o que Yves Gambier (2007) denomina “sociotradução”. Podemos concluir esta breve apresentação de alguns aspectos teóricos da visada sociológica sobre a tradução com a avaliação de Buzelin (2013) de que, no âmbito dos estudos tradutórios, “a sociologia aparece como uma tendência recente e dinâmica. Ainda não cumpriu todas as suas promessas, mas sua legitimidade e importância já foram comprovadas”[17] (p. 195).

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______. The sociology of translation and its “activist turn”. Translation and Interpreting Studies 7:2, p. 129-143, 2012.

 

Submetido em 27/03/2018; Aceito em 31/08/2018


Notas

[3] Todas as traduções de citações extraídas de obras em língua inglesa são de nossa autoria.

[4] [...] the act of translating, in all its various stages, is undeniably carried out by individuals who belong to a social system; [...] the translation phenomenon is inevitably implicated in social institutions, which greatly determine the selection, production and distribution of translation and, as a result, the strategies adopted in the translation itself.

[5] [...] the complex of problems clustered round the phenomenon of translating and translations, [...]

[6] [...] ‘sociological eye’ on the various agencies and agentes involved in any translation procedure, and more specifically in the textual factors operating in the translation process.

[7] INGHILLERI, Moira. Mediating Zones of Uncertainty. Interpreter Agency, The Interpreter Habitus and Political Asylum Adjudication. The Translator 11(1), 69-85, 2005.

[8] Practice analysis covers many sociological aspects of translation events [and] focuses on [...] how [translators] work, how they organize their time, their workplace procedures, their interactions with other team members or experts, their use of resources, project management, quality control procedures and so on. It thus covers a wider field than discourse analysis, which focuses mainly on language rather than actions more generally.

[9] [...] translation evokes successive strategies of interpretation and displacement by which an idea gradually moves into becoming a scientific fact or artefact. This concept is used in opposition to that of diffusion, as a way of suggesting that there is no transmission without transformation [...] and that scientific facts and artefacts [...] do not simply spread in society that have to create their own space by a concomitant process of network formation.

[10] Ou seja, produzem seus próprios elementos. Segundo Ramos, “[o]s sistemas autopoiéticos são aqueles que por si mesmos produzem não só suas estruturas, mas também os elementos dos que estão constituídos – no interior destes mesmos elementos” (RAMOS, 2014, s.p.)

[11] Each subsystem observes the others and interprets its surrounding environment according to its own code based on a binary distinction (truth/false for science, esthetical/non-esthetical for art, etc.)

[12] Tyulenev, Sergey. Why (Not) Luhmann? On the Applicability of Social Systems Theory to Translation Studies. Translation Studies 2(2): 147-162, 2009.

[13] [...] involves people (usually more than one): this in itself takes us one step up from a focus on a translator as a single agent.

[14] RUNCIMAN, W.G. The Social Animal. London: Harper Collins, 1998.

[15] [...] an institutionalized system of social conduct in which tasks are performed by actors fulfilling roles, under contextual conditions which include a striving for quality.

[16] [...] the position of a certain cultural product and its relative value in a given society are responsible for the product’s “success”.

[17] [...] sociology appears as a recent and dynamic trend. It has not delivered all its promises yet, but its legitimacy and importance no longer need to be demonstrated.

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