A geopolítica e os paradigmas da literatura comparada americana

A geopolítica e os paradigmas da literatura comparada americana

Waïl S. Hassan[1]

[1]Professor Titular de Literatura Comparada, Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (EUA), https://orcid.org/0000-0003-3294-0577


RESUMO:

O estudo da literatura árabe nos Estados Unidos tem-se submetido a duas lógicas: uma que considera o árabe como uma extensão  das necessidades da política externa e outra que alarga o espectro da Literatura Comparada. O boom atual dos estudos árabes é majoritariamente orientado pela necessidade instrumental. O estudo da literatura árabe moderna no âmbito da Literatura Comparada desde a década de 1990 permaneceu de maneira geral confinado ao paradigma Norte-Sul, como um pequeno subitem do pós-colonial, e estudado principalmente em relação à inglesa e à francesa. Os estudos pós-coloniais têm tido então o efeito paradoxal de criar um espaço para as literaturas árabe, africana, caribenha, e asiáticas do sul, ao ligá-las ao paradigma centro-periferia ou norte-sul. A área imensamente rica da comparação sul-sul permanece largamente inexplorada.

Palavras-chave: geopolítica, literatura árabe, comparação sul-sul, globalização, multiculturalismo.


ABSTRACT:

The study of Arabic literature in the United States has been subject to two logics: one that sees Arabic as an extension of foreign policy imperatives and one that broadens the scope of Comparative Literature. The current boom in Arabic studies is largely driven by the instrumentalist imperative. The study of modern Arabic literature within Comparative Literature since the 1990s has remained by and large confined to the North-South paradigm, as a small subset of the postcolonial, and studied mainly in relation to English and French. Postcolonial studies has thus had the paradoxical effect of creating a space for Arabic, African, Caribbean, and South Asian literatures by tying them to the center-periphery, or North-South paradigm. The enormously rich area of South-South comparison remains largely unexplored.

Keywords: geopolitics, Arabic literature, South-South comparison, globalization, multiculturalism.


É evidente que existe uma relação fundamental entre a produção de conhecimento e a localização geopolítica das instituições onde esse conhecimento é produzido. A crítica do Iluminismo demonstrou que todo o conhecimento está situado, centrado em torno de um conjunto de interesses não-declarados, que pretensões a universalidade escondem preconceitos etnocêntricos de todos os tipos – raciais, culturais, religiosos, de gênero, de classe e assim por diante. Não é apenas o caso em que savoir é uma forma de pouvoir. Pouvoir frequentemente define a pauta e cria as condições materiais e ideológicas para a produção de savoir. Como Michel Foucault demonstrou, pouvoir-savoir é uma conexão indissolúvel que determina as formas e os domínios do conhecimento (Foucault 288-289).

Como entendemos o papel da geopolítica no desenvolvimento da Literatura Comparada americana tendo ciência disso? E que papel o interesse renovado em Weltliteratur tem no contexto norte-americano? Proponho abordar esta questão concentrando-me na recente entrada da literatura árabe no âmbito da Literatura Comparada americana. Falar da situação atual do árabe na Literatura Comparada americana requer que olhemos para a história da área desde que, no início da década de 1990, declarou sua abertura para o mundo além da Europa e América do Norte. O regulamento da Associação Americana de Literatura Comparada (ACLA) estipula que, uma vez por década, o presidente deve nomear uma comissão que produza um relatório sobre o estado da área. Estes documentos decenais representam um registro histórico do desenvolvimento do campo. O árabe não figura em nenhum dos quatro primeiros relatórios sobre o estado da área (1965, 1975, 1993, 2004), apenas no quinto, publicado em 2014 .[2] O próprio campo árabe também se divide em linhas históricas e disciplinares que possuem metodologias e histórias institucionais distintas. A interseção dessas histórias com a da Literatura Comparada tem sido repleta de problemas que revelam algo sobre o alcance, os horizontes e os paradigmas da Literatura Comparada americana, dentro de seu contexto geopolítico.

Aproveito os títulos do relatório de Bernheimer de 1993, que foi incluído em um volume chamado Comparative Literature in the Age of Multiculturalism (1995), e o relatório de Saussy de 2004, publicado em Comparative Literature in the Age of Globalization (2006). A diferença imediatamente perceptível entre os dois títulos (o segundo, é óbvio, ecoando o primeiro) é a substituição do artigo definido pelo indefinido, assim como a "era" do "multiculturalismo" deu lugar a uma da "globalização", quando cruzamos o limiar do século XXI. A expressão “a Era do Multiculturalismo” significa que o período em questão foi o primeiro de seu tipo no qual a cultura era “múltipla”, seja lá como entende-se isto, de tal maneira que ela merecia um “-ísmo” todo seu para diferenciá-la de outras "eras" na história da humanidade? Tais eras se sucedem universalmente ou múltiplas eras coincidem no tempo, cada uma pertencente a uma “cultura” diferente? Em caso afirmativo, o “-ismo” em “Multiculturalismo” designa uma formação particular em um determinado momento em um determinado local? É possível que outras culturas tenham sido, sejam ou possam se tornar "multiculturas", com ou sem um "-ismo" próprio? Em caso afirmativo, de qualquer forma isso não era algo que o relatório se preocupava em analisar, uma vez que descrevia o estado da Literatura Comparada “na” Era do Multiculturalismo – entendida como “a primeira e única”. Talvez fosse simplesmente o caso de que "a era do multiculturalismo" foi a primeira vez que a multiplicidade de "culturas" nos EUA foi registrada pela “Cultura” tradicional, dando origem a uma tensão entre multiplicidade e unidade que revelou as linhas falhas das chamadas Guerras Culturais da época. A área da Literatura Comparada foi suficientemente impactada por isso para se engajar, um tanto quanto tardiamente, como indicava o tom apologético do relatório de 1993, no tipo de autoexame que a levou a questionar seus parâmetros, métodos e objetos de estudo.

Então, algo aconteceu, na pré-história do relatório Saussy, para inaugurar “uma era” (isto é, uma das muitas) da “globalização”. Podemos novamente especular sobre a multiplicidade denotada pelo artigo indefinido. De fato, há aqueles que argumentam que o mundo viu outras eras da globalização, que a antiga Rota da Seda era uma espécie de supervia, que o império de Alexandre era um empreendimento globalizante, como eram os do Islã durante o chamado Período Medieval, e da Europa a partir do Renascimento. Nesse sentido, a versão americana é a mais recente das várias "eras" de globalização que o mundo testemunhou. Também é discutível que a forma específica de globalização que emergiu desde o fim da Guerra Fria, um regime hegemônico do unilateralismo estadunidense que o relatório condena (Saussy, “Exquisite” 25-26), não é necessariamente a única possível ou que se pode imaginar. Qualquer que seja o caso, os argumentos neoconservadores para a globalização, como a americanização que dominou o discurso político durante a era Bush (2001-2008), não derivaram de uma reivindicação de precedência, mas sim de sequência, em um sentido evolucionário, como a ordem global mais recente e mais penetrante. A confiança do império estadunidense deriva de sua atualidade, de ter sucedido ou sobrevivido a outros impérios.

Se o multiculturalismo estadunidense foi um processo de autoexame e reinvenção baseado no reconhecimento de falhas anteriores, a globalização tem sido a projeção de um senso de autoridade autoconfiante sobre o resto do mundo. Enquanto o multiculturalismo levou os estudos literários a serem consumidos pela crítica do cânone, nesta era da globalização, a Literatura Comparada está preocupada com a literatura mundo e, consequentemente, com a teoria da tradução. A lógica implícita desse desenvolvimento é a seguinte: a medida que nosso país lidera o mundo, instruímos o mundo. Neste enunciado, o mundo é tanto o objeto direto quanto o indireto da nossa instrução: primeiro, é o campo literário que construímos, antologizamos e comprimimos nos nossos programas de estudos para torná-la compreensível;  segundo, é também o mundo que instruímos ou treinamos sobre os modos pelos quais deve ver-se como aquilo em que o transformamos, o mundo para o qual seguramos o espelho da “literatura mundo” .[3]

A fim de sugerir como a mudança do multiculturalismo para a globalização alterou o status da literatura árabe de uma forma que registra o pulso da Literatura Comparada no último quarto de século, apresento um episódio pessoal. No agosto de 1990, quando conheci Michael Palencia-Roth, meu orientador de pós-graduação, como um aluno novo recém-chegado do Egito, aprendi duas palavras novas. Ele me explicou que a Literatura Comparada americana havia sido “eurocêntrica”, mas nos últimos anos começou a se “globalizar”. Rapidamente acrescentou que, como diretor do programa de Literatura Comparada, por anos havia tentado ganhar a aprovação para contratar um professor de literatura árabe (não a língua árabe, que era ensinada em outro departamento). Seus esforços se provaram infrutíferos e, muitos anos depois, ele me confidenciou que o fracasso em garantir esse espaço durante as décadas de 80 e 90 aconteceu devido às preocupações de “potencialmente trazer terroristas ao campus”, como teria dito um reitor. Com “a era do multiculturalismo” a pleno vapor, a Literatura Comparada, com antevisão e iniciativa vanguardista características (ao menos em algumas de suas áreas), já estava tentando se globalizar. Mas esse esforço foi prejudicado por guardiões institucionais que decidiram que a literatura árabe estava fora e não seria admitida na “multicultura” americana.

Também foi a época em que, como observou Edward Said (1990, p. 278), a literatura árabe foi “embargada” por grandes editores de Nova York que consideravam o árabe uma “língua controversa”. Dessa forma, o embargo comercial complementou o boicote acadêmico à literatura árabe. Ao longo dos anos 90, enquanto o multiculturalismo transmitia os estudos culturais e pós-coloniais à Literatura Comparada, ser um pós-colonialista significava se especializar em literatura africana, caribenha ou sul-asiática, mas não árabe – algo curioso, se considerarmos que o texto fundador dos estudos pós-coloniais, Orientalismo (SAID, 1978), enfocava principalmente a representação do Oriente Médio árabe nos estudos acadêmicos na Europa e nos Estados Unidos. Esta situação não mudou até que a lógica do “conheça seu inimigo” se impôs logo após a Segunda Intifada Palestina (setembro de 2000) e os ataques terroristas (setembro de 2001), ambos conduzidos na primeira década do século XXI.

Diferentemente da “era do multiculturalismo”, esta “era da globalização” testemunhou um aumento sem precedentes na tradução literária do árabe, com dezenas de novos títulos surgindo a cada ano. Durante o mesmo período, cresceu o número de seções de literatura árabe nos encontros anuais da Associação Americana de Literatura Comparada e da Associação de Línguas Modernas (MLA). Este crescimento tem sido estável, tanto que os encontros desde 2014 tiveram em cada uma de suas programações pelo menos vinte painéis focados parcial ou totalmente no árabe. Livros sobre literatura árabe começaram até mesmo a aparecer aos poucos em listas de publicações da MLA. Hoje, existem mais estudiosos especializados em literatura árabe moderna do que em qualquer outro momento no passado, e ela está lentamente sendo incluída nos departamentos de Literatura Comparada, com muitos contratando, na última década, seu primeiro especialista em literatura árabe. No ano do relatório de Saussy (2004), meu departamento de pós-graduação finalmente contratou não um, mas dois especialistas em literatura árabe – prova de que, por fim, havíamos nos globalizado de fato, como meu orientador desejava.

Por mais encorajadores que estes desenvolvimentos pareçam ser, existem motivos de sobra para acreditar que eles estão entre as incalculáveis e, por vezes, contraditórias repercussões de conflitos no Oriente Médio, que não podem ser desassociadas das políticas externas estadunidenses desde a Segunda Guerra Mundial - período em que a Literatura Comparada se estabeleceu nas universidades estadunidenses como consequência direta da guerra, fato devidamente reconhecido pelo relatório de Levin em 1965. A exclusão do árabe até o final do século XX e, então, a sua repentina inclusão na disciplina nos anos 2000 faz, por conseguinte, parte da história da Literatura Comparada americana, que nunca teve uma existência independente de políticas nacionais ou internacionais. A Literatura Comparada americana, entre os anos 50 e 80, estava bem atrelada às dicotomias ocidental/oriental da Guerra Fria, foi o momento no qual a expansão dos estudos do russo representava um imperativo de segurança nacional. A virada multiculturalista da Literatura Comparada americana na década de 90 mostrou, de certa forma, o atraso da área no reconhecimento das políticas dos direitos civis de oposição, das mulheres e de movimentos anticoloniais, o que provocou as guerras culturais e a crítica ao cânone. Por fim, o final da Guerra Fria trouxe a "globalização", uma palavra código para o domínio global dos Estados Unidos, que se intensificou depois do 11 de setembro de 2001, mudando os ares comemorativos e otimistas do governo Clinton para o perfil beligerante da doutrina Bush e a Guerra ao Terror. Como Djelal Kadir argumentou, em sua contribuição para o relatório de 2004, no começo dos anos 2000 a área poderia ser chamada de "Literatura Comparada na era do terrorismo" (68-77). Nesse contexto, a instrução da língua árabe se expandiu como nunca, tanto que agora é ministrada não só na maioria das grandes universidades mas também em algumas instituições de ensino regionais; um crescimento repentino financiado por verbas governamentais e, especialmente no contexto do mercado de trabalho acadêmico difícil, pela promessa de oportunidades de emprego em agências de segurança nacional que muito cresceram.

Não é necessário comentar que essa abordagem instrumental da língua árabe é indiferente à literatura, literatura esta que está majoritariamente alocada em dois cenários institucionais distintos nos Estados Unidos: os departamentos de Línguas e Civilizações do Oriente Próximo e os departamentos de Literatura Comparada. O árabe é, historicamente, parte do Orientalismo europeu e de sua extensão estadunidense, os Estudos do Oriente Próximo. Dentro deste domínio, os estudos da literatura árabe são divididos em duas áreas: clássica e moderna. A literatura clássica (tradicionalmente datada do período pré-islâmico até, aproximadamente, o século XII) permanece, em grande parte, como assunto de abordagens filológicas e histórico-literárias, tendo a conferência anual da Associação de Estudos do Oriente Médio (MESA) como fórum principal desde sua fundação, em 1966. Em outras palavras, os estudos de literatura árabe clássica pertencem de forma direta aos “area studies” (estudos de áreas) e sua história pode ser escrita dentro da narrativa da reconstituição dos estudos do Oriente Médio desde a crítica de Edward Said ao Orientalismo. Os estudos da literatura árabe clássica geralmente interagem com a Literatura Comparada nos estudos ibéricos medievais ou no estudo das 1001 Noites. De outro modo, a literatura árabe clássica não faz parte do treinamento dos comparatistas e nem a maioria dos especialistas dessa área é formada em programas de Literatura Comparada.

Os estudos em literatura árabe moderna (no período do início do século XIX até os dias atuais) têm um começo bem mais recente[4] . No entanto, têm sido bifurcados em departamentos de Estudos do Oriente Próximo e departamentos de Literatura Comparada, campos com diferentes histórias institucionais. M. M. Badawi foi pioneiro nessa linha de estudos, em Oxford, em meados dos anos 60. Badawi, professor egípcio de literatura inglesa, dirigiu a primeira tese de doutorado sobre a literatura árabe moderna, defendida por Roger Allen em 1968, e fundou o Journal of Arabic Literature em 1970, revista que ainda publica trabalhos sobre literatura clássica e moderna. Até então, o consenso entre os arabistas na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos era que a literatura árabe moderna não merecia ser estudada. O novo interesse pela área migrou para os departamentos estadunidenses de Estudos do Oriente Próximo nos anos 60, com a chegada de acadêmicos como Allen, Pierre Cachia, Trevor Le Gassik, entre outros. Metodologicamente, os estudos de literatura árabe moderna tentaram se desvencilhar das abordagens filológicas e históricas, características dos estudos da literatura árabe clássica, tomando emprestadas algumas abordagens críticas predominantes da crítica literária inglesa e estadunidense, por exemplo, as de F. R. Leavis, I. A. Richards e René Wellek e Austin Warren .[5] O Edebiyât: Journal of Near Eastern Literatures, fundado em 1976 na Universidade da Pensilvânia, começou a publicar os estudos das literaturas clássicas e modernas árabe, turca e persa, ainda que não promovesse abordagens comparativas, já que pouquíssimos acadêmicos eram (e ainda são) qualificados para trabalhar em mais de uma literatura da região. Portanto, enquanto o campo de estudos do Oriente Próximo inclui várias literaturas, elas não são estudadas de forma comparativa em relação à outra, mas como literaturas nacionais específicas, ou, no caso da árabe, como uma tradição supranacional, mas monolíngue .[6]

Outro avanço ocorreu nos anos 90, graças ao multiculturalismo e ao impacto da teoria pós-colonialista na Literatura Comparada: estudantes árabes, falantes nativos do árabe que se formaram em Inglês ou Francês em universidades árabes, começaram a ingressar nos departamentos de Literatura Comparada nos Estados Unidos e voltaram suas atenções para a literatura árabe moderna dentro do pós-colonialismo ou em cenários teóricos a isso relacionados. As trajetórias acadêmicas deles fazem um paralelo com a de M. M. Badawi, exceto que agora eles estão matriculados em programas de pós-graduação de Literatura Comparada americana, e sua instrução inclui altas doses de teoria cultural e literária típicas de programas de pós-graduação de Literatura Comparada. Estes alunos normalmente frequentam a Associação de Línguas Modernas (MLA) e a Associação Americana de Literatura Comparada (ACLA), ainda que alguns também frequentem a Associação de Estudos do Oriente Médio (MESA). A geração atual de arabistas que trabalham com o período moderno é, portanto, produto dessas duas trajetórias acadêmicas distintas - os estudos de área e a trajetória comparatista. Mais do que os classicistas, eles são aqueles que deixaram uma marca na Literatura Comparada americana nas últimas duas décadas, publicando estudos comparativos e entrando em discussões sobre a natureza e a prática da área.

Os paradigmas de comparação que governaram a Literatura Comparada americana desde a Segunda Guerra Mundial determinam o lugar dos estudos de literatura árabe moderna dentro da área. Esses paradigmas podem ser descritos em termos direcionais como Norte-Norte, Leste-Oeste, Norte-Sul e Sul-Sul. O paradigma Norte-Norte inclui a comparação intereuropeia e euro-americana, que a Filologia Românica alemã legou à Literatura Comparada americana em meados do século XX, o único modelo de comparação naquela época. Na década de 1980, quando começou a se desenvolver entre os comparatistas norte-americanos um interesse pela China, entrou em cena o que foi descrito com a terminologia (agora datada) de comparação “Leste-Oeste”. Essa terminologia reproduziu uma dicotomia orientalista duvidosa em que “Leste” (oriente) e “Oeste” (ocidente) constituíam características civilizacionais .[7] A comparação Norte-Sul refere-se principalmente aos estudos pós-coloniais, cujo foco na história colonial abriu as portas da área para as literaturas africana e asiática e seus desdobramentos diaspóricos. Por fim, a comparação Sul-Sul, que considera as relações entre literaturas do Sul Global, permanece em sua fase inicial, uma possibilidade teórica com algumas manifestações promissoras, mas que ainda não foi estabelecida como tendência tanto na formação de comparatistas quanto nas práticas de contratação de departamentos de Literatura Comparada.

O estudo da literatura árabe moderna na Literatura Comparada durante as “eras” do multiculturalismo e da globalização permaneceu em grande parte confinado ao eixo Norte-Sul como um pequeno subconjunto do paradigma pós-colonial, e concentrou-se principalmente nas relações com o inglês e o francês .[8] As razões por trás disso parecem claras: o inglês e o francês são as línguas estrangeiras mais amplamente ensinadas no mundo árabe, um legado colonial. Além disso, e como parte do mesmo legado, a literatura árabe moderna do final do século XIX, até pelo menos a primeira metade do século XX, buscou na literatura europeia modelos, novos gêneros (romance, conto, drama) ou modos e movimentos (Romantismo, Realismo, Simbolismo, Modernismo). Esses dois fatores normalizam a abordagem Norte-Sul, com ou sem o impulso de oposição da política pós-colonial. Ou seja, o paradigma Norte-Sul acomoda ambas as críticas pós-coloniais, a que rejeita a hierarquia de culturas superiores e inferiores, e o comparatismo eurocêntrico que pressupõe a superioridade cultural europeia e o atraso e dependência árabe, e que julga a literatura árabe por normas europeias apenas para considerá-la deficiente .[9]

Devido aos antecedentes e às habilidades linguísticas de estudantes de pós-graduação árabes e ao crescente entusiasmo pelos estudos pós-coloniais nos departamentos de Literatura Comparada americana, reforçados pelo mercado de trabalho, a literatura árabe moderna encontrou um lugar dentro do paradigma Norte-Sul, que não permite que seja estudada em ligação com as literaturas africana, sul-asiática, latino-americana ou do leste-asiática – ou seja, nas configurações Sul-Sul. Foi assim que os estudos pós-coloniais tiveram o efeito paradoxal de criar um espaço para as literaturas árabe, africana, caribenha e sul-asiática, ligando-as ao paradigma centro-periferia, ou Norte-Sul. A enormemente rica área de comparação Sul-Sul permanece, em grande parte, inexplorada. Modelos terciários de comparação que triangulam a verticalidade do Norte-Sul com a horizontalidade Norte-Norte e Sul-Sul – por exemplo, a literatura árabe estudada em relação às literaturas diaspóricas árabes na América do Norte e do Sul, o que exigiria conhecimento não apenas de inglês e francês (para a literatura árabe-quebequense), mas também de português e espanhol – não estão na agenda da Literatura Comparada americana na era da globalização e do terrorismo (Hassan, “Which Languages?” 8-9).

Em vez disso, o árabe agora está sujeito a duas lógicas, uma que o vê como uma extensão dos imperativos da política externa (uma abordagem comunicativa instrumental da língua) e outra que amplia o escopo da área. O atual crescimento dos estudos árabes é em grande parte impulsionado pelo imperativo instrumental. O financiamento do governo é direcionado para programas de idioma, pois o árabe agora é visto, por razões óbvias, como vital para a segurança nacional. Se, seguindo essa lógica, o árabe permanecer subordinado e tangente à agenda intelectual de uma Literatura Comparada globalizada que se contenta em abrir espaço para o eixo Norte-Sul à sombra do Norte-Norte dominante, esse aumento pode sofrer um colapso semelhante ao que os estudos russos e eslavos experimentaram durante e após a Guerra Fria.

Entretanto, há outra visão histórica que promete uma integração enriquecedora do árabe em uma disciplina em processo contínuo de auto-renovação, e essa é a gênese institucional da Literatura Comparada nos Estado Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Financiada inicialmente pela Lei de Educação da Defesa Nacional, a Literatura Comparada inseriu-se nas universidades estadunidenses sob a premissa de que uma maior compreensão multicultural por meio da literatura ajudaria a evitar um novo conflito global. Se essa crença na missão humanista da educação literária, a qual permitiu que nossa disciplina ganhasse autonomia sete décadas atrás, puder agora nos levar além dos imperativos geopolíticos e de suas restrições ideológicas e institucionais sobre a produção de conhecimento, a literatura árabe desempenhará seu papel, ampliando o escopo imaginativo da comparação.[10]


REFERÊNCIAS

ALLEN, Roger, William Hanaway, and Walter Andrews. “Literature.” Binder 399-509. Print.

______, and D. S. Richards, eds. Arabic Literature in the Post-Classical Period. Cambridge: Cambridge UP, 2006. 

AL-MUSAWI, Muhsin. The Medieval Islamic Republic of Letters: Arabic Knowledge Construction. Notre Dame: Notre Dame UP, 2015.

BERNHEIMER, Charles, ed. Comparative Literature in the Age of Multiculturalism. Baltimore: Johns Hopkins UP, 1995. 

BINDER, Leonard, ed. The Study of the Middle East: Research and Scholarship in the Humanities and the Social Sciences. New York: Wiley, 1976. 

FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir. Oeuvres II. Paris: Gallimard, 2015 (1975). 261-613.

HASSAN, Waïl S. “Postcolonial Theory and Modern Arabic Literature: Horizons of Application.” Journal of Arabic Literature 33 (2002): 45-64. 

______. “Which Languages?” Comparative Literature 65 (2013): 5-14.

______, and Rebecca Saunders. “Introduction.” Comparative (Post)colonialisms. Spec. issue of Comparative Studies of South Asia, Africa, and the Middle East 23 (2003): 18-31.

KADIR, Djelal. “Comparative Literature in the Age of Terrorism.” Saussy 68-77.

KILITO, Abdelfattah. Thou Shalt Not Speak My Language. Trans. Waïl S. Hassan. Syracuse: Syracuse UP, 2008.

SAID, Edward W. “Embargoed Literature.” The Nation 17 Sept. 1990: 278-280.

SAUSSY, Haun, ed. Comparative Literature in an Age of Globalization. Baltimore: Johns Hopkins UP, 2006.

______. “Exqu Cadavers Stitched from Fresh Nightmares: Of Memes, Hives, and Selfish Genes.” Saussy 3-42.

 

Submetido em 27/09/2018; Aceito em 31/10/2018


Notas

[2]Acredita-se que nenhum relatório tenha sido apresentado na década de 1980 porque o comitê encarregado de sua preparação não conseguiu chegar a um consenso – um sinal, talvez, de uma mudança sísmica dentro da disciplina.

[3]Aqui me refiro às disciplinas de Literatura Mundo que sempre foram centrais no currículo de educação geral nas universidades dos Estados Unidos, na pequena indústria editorial que as abastece com antologias, e às atividades escolares que cercam a pedagogia da Literatura Mundo.

[4]O período intermediário entre o fim convencional do clássico e o começo do moderno há muito vem sendo considerado uma “era de decadência” (‘aṣr al-inḥiṭāṭ). As razões para esta visão, bastante contestada atualmente, são muito complexas para contabilizar aqui, mas um certo aspecto da história da cultura árabe vê isto, em paralelo com sua contraparte europeia, como progressão de uma “era clássica” para uma “idade das Trevas” para uma “Renascença” (a tradução convencional de “Nahda”, o nome do movimento de modernização do século XIX no Egito e em Levante). Ver Allen e Richards, e al-Musawi.

[5]Na introdução de The Study of the Middle East (1976), um extenso estudo sobre o “estado de área”, Leonard Binder descreve a dificuldade de separar o estudo multidisciplinar do Oriente Médio moderno da visão tradicionalmente orientalista do passado Árabe-Islâmico – uma abordagem que o Orientalismo herdou de seu modelo fundador de estudos clássicos (grego, romano e hebreu antigo). A contribuição de Allen no capítulo “Literatura” nesse estudo tenta estabelecer critérios para casar os estudos da literatura árabe com as literaturas europeias (o capítulo foi co-escrito com William Hanaway e Walter Andrews, que focaram nas literaturas persas e turcas, respectivamente).

[6]Isto é um forte contraste em relação à tradição germânica de filologia romântica, a mãe da área de Literatura Comparada americana, na qual se esperava que os estudantes adquirissem competência em diversas línguas românticas. Enquanto a Literatura Comparada americana focava em relações intereuropeias, os Estudos do Oriente Próximo negligenciaram as relações literárias inter-orientemedianas. As razões para isso, presumidamente, são as competências linguísticas dos acadêmicos, assim como a suposição de que os contatos culturais mais importantes para o povo do Oriente Médio têm sido com a Europa e não com as culturas vizinhas.

[7]Espero que esteja claro que de forma alguma quero sugerir que estudar as literaturas chinesa ou japonesa em relação a literatura europeia, americana ou qualquer outra literatura é uma coisa ultrapassada, mas apenas enquadrar trabalhos do tipo em dicotomias orientalistas não é mais sustentável.

[8]Sobre a relação da teoria pós-colonial com a literatura árabe moderna durante os anos 1980 e 1990, ver Hassan, “Postcolonial Theory”. Sobre as limitações conceituais e institucionais dos estudos pós-coloniais de uma perspectiva comparativa, ver Hassan e Saunders.

[9]Abdelfattah Kilito ilustra esse tipo de comparatismo na obra de Charles Pellat e ‘Abd al-Rahman Badawi (Kilito 10-16, 96-98).

[10]Este artigo é uma versão revisada e atualizada de “Arabic and the Paradigms of Comparison”, que foi publicado no State of the Discipline Report da ACLA em 2015. http://stateofthediscipline.acla.org/entry/arabic-and-paradigms-comparison-1
Agradeço a Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha por organizar sua tradução para o português.

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