Sexualidades extra-vagantes: João do Rio, emulador de Oscar Wilde

Sexualidades extra-vagantes: João do Rio, emulador de Oscar Wilde

César Braga-Pinto[1]

[1]Doutor em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Professor de Literatura Brasileira e Comparada na Northwestern University, https://orcid.org/0000-0002-3143-8481. O presente artigo é uma versão condensada de dois ensaios originalmente escritos e publicados em inglês: “The Pleasures of Imitation: Gabriel Tarde, Oscar Wilde and João do Rio in Brazil’s Long Fin de siècle” (Comparative Literature Studies, Primavera, 2019)  “Extravagants, Eccentrics and Deviants in the Brazil Belle Epoque; or, how João do Rio emulated Oscar Wilde(Journal of Latin American Cultural Studies, Primavera, 2019). Trad. João Gabriel Rabello Sodré e César Braga-Pinto.


RESUMO:

O artigo discute, primeiramente, como na virada do século XIX para o XX, o termo “extravagância” permitiu a representação de sexualidades e comportamentos dissidentes. A seguir, analisa o modo pelo qual um grupo de artistas conhecidos como extravagantes, entre eles o escritor mulato e supostamente homossexual João do Rio (pseud.) encontrou na figura de Oscar Wilde uma linguagem que legitimasse o gesto de pertencimento cosmopolita em um momento de crescente demanda por autenticidade, originalidade e identidade.

Palavras-chave: imitação, homossexualidade,


dândis, decadentismo.

ABSTRACT:

This article discusses, firstly, how the term “extravagance” at the turn of the 19th to the 20th century allowed for the representation of dissident sexualities and behaviors. It then analyzes how a group of reputed extravagant artists, among which the mixed-race and allegedly homosexual writer and journalist João do Rio (pseud.), found in the works and figure of Oscar Wilde a language to legitimize the gesture of cosmopolitan belonging at a moment of increasing demand for authenticity, originality and identity. 

Key words: imitation, homosexuality, dandies, decadence.


Extravagância

Ao final do ano de 1902, a revista semanal O Rio Nu, dirigida ao público masculino, inicia a publicação de um folhetim intitulado “A casadinha”, assinado pelo (provável) pseudônimo Symphrônio Perillo.[2] O Capítulo XV –intitulado ‘Extravagância’– inicia com o personagem Félix e seu amigo Iglesias, quando estes deixam o sofisticado Teatro Recreio, no Rio de Janeiro, após assistirem a uma peça em que estrelava uma atriz “de abundantes formas” (Perillo, 11 fev. 1903). Claramente excitado, Félix expressa sua “disposição” para fazer “uma extravagância”, o que seu companheiro parece não compreender, e que por isso o surpreende: “Ainda não percebeste? ... És muito ingênuo! Mostro-te aquele colosso, falo-te numa extravagância, e não percebes o que quero dizer!”. Finalmente, ambos os rapazes caminham em direção à Maison Moderne, o famoso teatro e complexo de entretenimento localizado na Rua da Carioca. Enquanto flertam com uma “mulatinha dengosa”, veem se aproximar um “rapazola imberbe, vestido todo de branco, de chapéu de palha e lenço encarnado ao pescoço” e que, “maneiroso e adamado”, pede-lhes fogo, dando início a uma conversa. Sem qualquer hesitação ou constrangimento, Félix avisa ao amigo que, em vez de persistir na busca por uma prostituta, ele acompanharia o jovem até seu apartamento.

Ao entrar no quarto do jovem, Félix se surpreende com a presença de um grande número de livros. Os dois, então, começam a conversar sobre literatura: aquele diz que seus autores favoritos são os poetas parnasianos Alberto de Oliveira (1857-1937) e Olavo Bilac (1865-1918) – embora, comenta, não sem uma dose de malícia, no caso de Bilac –como se sabe, um reputado homossexual (Green,1999, p. 57), ele goste sim, “mas não como poeta” (Perillo, 14 fev. 1903). Quando Félix indaga sobre seu “nome de guerra”, o moço explica: 

 – Oscar. Tomei-o em homenagem àquele poetainglês Oscar Wilde que foi processado em Londres por exercer as funções que eu e os outros exercemos. . .  Uma injustiça! cada um deve dispor do que é seu da forma que entender, não acha?[3] Depois... o pobre Oscar Wilde não fazia aquilo por interesse, era só por amor e amizade...’

E o nosso herói chegou a comover-se ao relembrar o martírio do poeta inglês, que morreu cumprindo a pena a que fora condenado por inversão sexual.

Félix passa a noite e tem relações sexuais com Oscar, sem manifestar qualquer sinal de culpa. É verdade que, na manhã seguinte, ele parece sentir um certo arrependimento ao deixar o que chama ironicamente de “ninho do amor”, mas logo tenta superar tal sentimento: “Ora! Qual ignomínia! Extravagância é o que é. E não tenho que estar a me recriminar a mim mesmo, pois que não pretendo repeti-la. Foi uma extravagância e mais nada!” (Perillo, 28 fev. 1903).

Vale notar que a palavra “extravagância” é recorrente nas páginas da revista Rio nu, com frequência referindo-se ao sexo anal (seja entre homens ou entre um homem e uma mulher), um tema que era quase uma obsessão do periódico, apesar de sempre recriminado, ao lado da impotência e do adultério (O Rio nu, 3 de fevereiro de 1909, p. 5).[4] No geral, o tom da revista é humorístico, e muitas vezes a intenção parece ser mais um comentário leve em relação a tais atos do que uma rigorosa advertência contra estas. No caso do episódio do folhetim, nem a identidade de Oscar, de um lado, nem a aventura de Félix, de outro, são realmente condenadas. Em vez disso, o homossexual surge como parte da paisagem urbana, e o sexo entre homens é retratado como uma das várias e relativamente inofensivas experiências existentes em uma cidade moderna. O nome de Oscar Wilde propicia o encontro entre um indivíduo potencialmente estigmatizado e o cidadão burguês moderno e curioso, num espaço fronteiriço –ainda que fictício, ou seja, a alcova que é também biblioteca– no qual o afeminado dândiencontra o curioso flâneur. O nome de Oscar Wilde, portanto, torna tanto a identidade homossexual, então emergente, quanto as práticas homossexuais, legíveis –apesar de não idênticas entre si.  Em suma, podemos afirmar que “perversão” e “perversidade” de fato se encontram nas interseções da cidade moderna, ainda que a lembrança desse encontro seja rechaçada pela manhã.

Como se sabe, na virada do século, o esteticismo, a decadência e o dandismo eram reiteradamente (ainda que não necessariamente) associados ao desprezo (ocasional ou costumeiro) do dândi pela moralidade e ao elogio da perversão, do “vício” e da dissidência sexual. Como nos recorda Rita Felski, “nem todos os esteticistas eram homossexuais; em contrapartida, o dândiaristocrático e afeminado era apenas uma entre tantas maneiras pelas quais a homossexualidade era representada e representava a si mesma no fin de siècle”. Noções como ironia, esteticismo, identidade mascarada, artifícios e excessos não necessariamente definem uma sensibilidade gay, nem são tais atributos determinados pela orientação ou conduta sexuais (Felski, 1995, p. 104). Em verdade, como Felski observa, o privilégio de classe ocupava um papel mais importante em tais performances do esteticismo, uma vez que “a formação do sujeito através da pose elegante e de estilos de vida glamourosos era uma opção disponível apenas a uma minoria” (p.105).[5] No exemplo discutido acima, o homossexual, o dândi extravagante que emula Oscar Wilde, é um personagem relativamente fictício, enquanto o são o autor dandy, o flâneur aventureiro e o leitor moderno e curioso que circulam pelos espaços de extravagância ocasional proporcionados pelo novo jornalismo e pela ficção.

É verdade que uma clara separação entre a vida e arte serviam para preservar a reputação do autor decadente, bem como sua situação jurídica e condição médica. No entanto, o que figuras europeias como Oscar Wilde e Jean Lorrain (pseud. de Paul Duval, 1855-1906) tornaram transgressiva e ameaçadora foi justamente a dissolução de tal nítida separação entre arte e vida, já que a arte toma um espaço determinante que em princípio de ver preceder a vida. O melhor exemplo, neste ponto, foi Paulo Barreto (1881-1921), conhecido como João do Rio, o mais famoso discípulo de Oscar Wilde no Brasil, reputado homossexual, tradutor da obra de Wilde e propagador tanto de suas maneiras como de suas ideias. De fato, João do Rio foi um dos primeiros a navegar pelas fronteiras entre a estética e o estilo de vida decadente no Brasil, tornando imprecisas quaisquer distinções entre o dândi, com sua proverbial auto-invenção, de um lado, e o curioso, ainda que distanciado, observador flanêur, do outro.[6]

Com efeito, o escritor dândi, Jean Lorrain, cuja homossexualidade era amplamente conhecida também no Brasil, foi uma das reconhecidas fontes de inspiração para João do Rio, tendo também sido crucial para a circulação da obra de Wilde entre francófilos brasileiros. O próprio João do Rio associou Wilde ao nome de Lorrain, não apenas em relação à sua estética, mas também em relação à sua conduta sexual e moral, que tentou legitimar ou, ao menos, tornar legível: “Oscar Wilde, a legenda do vício, o crime que sudarizou (sic) de larva ardente a ardente Sodoma, o crime que se tem acoimado os altos espíritos desde Platão até Jean Lorrain!” (Barreto, 1911a).[7] Além disso, a obsessão de Wilde com a identidade sob máscaras (no caso de Lorrain, também a máscara de carnaval), a fantasia e a pose foi essencial para a representação e para a performance de identidades e comportamentos não-normativos. Aliás, o desfecho de um dos seus contos de carnaval mais famosos, “O bebê da tartalana rosa”, tem um desfecho similar ao do episódio de “Extravagância”: ‘Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do Carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante’ (Barreto, 1910, 164).[8]

Apesar de não ter sido ele o primeiro tradutor da obra de Wilde no Brasil, João do Rio tornou-se o seu mais conhecido tradutor, tendo suas traduções incluído Frases e Filosofias para o uso dos Jovens (1894, trad. em 1905); Salomé (1893, trad. em 1905); Intenções (1891, trad. em 1911); e O Retrato de Dorian Gray (1890, trad. em 1911/publ. 1923). Ele também se inspirou em suas obras e as comentou em textos como “A delícia de mentir” (1911b) e “A primeira tragédia de Oscar Wilde” (1921). Em verdade, João do Rio se refere a Wilde já no ano de 1899. Recém-completo dezoito anos de idade, escreve (sob o pseudônimo Claude) uma resenha da primeira publicação de uma obra no Wilde no Brasil, a recente tradução de The Ballad of Reading Gaoul (1898)por Elísio de Carvalho como A balada do enforcado. O então crítico literário chama a atenção para o julgamento de Wilde e comenta sobre a moralidade vitoriana: “Oscar Wilde é hoje universalmente reconhecido como um obcecado e o seu sucesso literário deve-se em parte, se não totalmente aos escândalos de sensualidade invertida com que aterrorizou a debochada e hipócrita sociedade inglesa [...] diante da ostentação doentia de um vício proclamado em pleno dia, arrastado na lama dos carros, vitoriado”  (1899a).” E continua “Entretanto, esse modo especial de mostrar o vício necessitava não da prisão de Reading [...] mas de uma casa de saúde [...]. Em outubro do mesmo ano, escreve outra vez: “[...] Oscar Wilde, o louco moral por excelência, invertido vulgar, desequilibrado completo que chama atenção do inglês comilão e parvo pelos passeios escandalosos em Pall-Mall-Frant (Barreto, 1998c). A linguagem e os comentários aludem claramente a uma passagem da obra Degeneração (1892), de Max Nordau (1849-1923), que na época estava sendo traduzida ao português em partes, entre 1896 e 1900, e que seria citada também por Elísio de Carvalho ao se referir a Wilde por volta da mesma época: “um louco moral porque tem agido sobre o espírito público mais pelas extravagâncias do que por sua obra’ (1900).[9]

Em suma, “extravagância” refere-se com frequência a algo que não pode ser precisamente nomeado ou repetido. De acordo com dicionários das línguas portuguesa (Houaiss 2017) e inglesa (OED 2017), o termo “extravagante” (adjetivo e substantivo) e seus correlatos denotam aquilo que é excepcional, singular, raro, diferente, excêntrico, excessivo, anormal, incomum e desviante.  Derivado do latim medieval e formado por “extra” (externo) e “vagare” (vagar), seu significado primordial, especialmente nas línguas latinas, é vagar ou desviar. [aparentemente, no inglês moderno tais significados são normalmente abarcados pelo termo ‘excêntrico’, enquanto ‘extravagante’ tende a referir-se ao excesso de gastos, implicando em questões de prodigalidade ou desperdício].  De toda sorte, nas línguas românicas, ‘extravagância’ quase sempre tem relação, mas nem sempre coincide, com transgressão, não-normatividade e tudo aquilo que é, digamos, queer. Por referir-se à singularidade, nunca se relaciona a uma identidade, nem mesmo a uma conduta reiterável.

O personagem extravagante tem uma longa história na literatura europeia, em especial no teatro francês do século XVII, mas tornou-se uma figura especialmente privilegiada no imaginário decadente. Na terminologia psicopatológica do final do século XIX, a extravagância era muitas vezes vista como uma perversidade (isto é, um vício ou comportamento particular), e não como uma perversão (uma doença ou traço de personalidade). Os significados de “extravagância” (subs.) / “extravagante” (adj.) / “extravagante” (subs.), contudo, são muito mais fluidos que seus equivalentes “perversidade” / “pervertido” / “perverso”, formando um grupo semântico que varia enormemente de acordo com o contexto. Por exemplo, se sua conduta é caracterizada como um hábito, um homem conhecido por penetrar outro homem pode, de fato, ser considerado “um extravagante”, mas um homem que tem tal conduta com menor frequência pode ser tão somente visto como alguém com um certa inclinação a cometer extravagâncias em geral, isto é, a excessos (e sexo com outro homem seria apenas um deles).

Do lado oposto do espectro está o homem que ocasionalmente comete uma extravagância, isoladamente (uma aventura, sexual, por exemplo), mas retorna à normalidade imediatamente depois. Assim, as extravagâncias sexuais em si mesmas não definem um homem como invertido e, dependendo das circunstâncias, um invertido pode ou não ser visto como extravagante. Mais uma vez, a extravagância é raramente vista como uma identidade ou uma patologia, mesmo que casos patológicos, como o do louco e do pervertido, sejam caracterizados pelo comportamento extravagante. Na obra do mais renomado criminólogo brasileiro da virada do século, Francisco Viveiros de Castro, a forma adjetiva frequentemente qualifica certos atos e condutas, às vezes de ordem patológica, sem necessariamente implicar em crime ou doença. Viveiros de Castro geralmente tem a preocupação de identificar ideias (Castro, 1934, p. 77, 231), projetos (p.76) e paixões (p.77) extravagantes, de modo a determinar se estes são apenas incomuns ou excepcionais, ou se constituem verdadeiros pensamentos e sentimentos pervertidos que possam representar uma ameaça à sociedade. “Extravagância” é, portanto, uma categoria volátil que pode se referir a um estilo de vida, mas que também engloba crimes, que variam da tortura à bestialidade, ao homicídio e ao canibalismo (p. 242). Em contextos não sexuais, comportamentos e personalidades extravagantes podem se tornar objeto de atenção jurídica e biopolítica. E quando associados a práticas, cultos e cerimônias desconhecidos ou não familiares, como o exorcismo (CASTRO, 1901, pp. 68, 89), a forma adjetiva é utilizada para desestruturar o outro e caracterizar tais práticas como inferiores, ridículas ou risíveis (363).

A fascinação dos decadentes de ambições cosmopolitas com o termo “extravagância” pode ser lida como uma tentativa de remover o tema da perversão da supervisão médico-legal e colocá-lo sob a égide do prazer e da fantasia.  Extravagância é, assim, igualada a aventura e, muitas vezes, originalidade. Retirada da temporalidade do cotidiano, ela muitas vezes simboliza uma interrupção, uma emoção súbita, um capricho. Assim, uma pessoa pode – e, de acordo com os decadentes, todos o fazem – ocasionalmente participar de uma “extravagância” (sexual ou outra qualquer) sem necessariamente se tornar um indivíduo extravagante ou objeto de escrutínio médico ou de exame criminal. Assim também o ser extravagante é aquele que desvia da norma sem ser marginal; ele emerge na literatura como uma figura única que é simultaneamente ameaçadora e contida. 

Tal como outros decadentes, João do Rio preencheu suas obras – e particularmente as histórias reunidas em Dentro da Noite (1910) – com extravagâncias e extravagantes. Em algumas delas, uma extravagância pode apenas representar uma extremada ou autêntica experiência, que serve como cura para “estados nervosos” oriundos da superficialidade do moralismo burguês: “Então, minha filha, aconselho uma paixão ou um excess, um belo rapaz ou uma extravagância […] ou então, minha cara, um grande excess: champagne, ether ou morfina”. (BARRETO, 1910b, p. 35).

Tais experiências de excitação e prazer podem também ser alcançadas através do contato com o socialmente e etnicamente exótico, particularmente durante o carnaval e as festas de rua:

E nós estávamos afinal, naquele café do Carceller, perto de duas igrejas a comentar a extravagancia sensual da multidão.
[...]
–Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo [...]. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante [...] As turbas estrebucham. Todas as vesanias anônimas, todas as hepertesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. (Barreto, 1910a, p. 259)

Assim, certos objetos e substâncias (champanhe, éter e a multidão são permutáveis) facilitam uma experiência que interrompe a temporalidade padrão, feito um arrepio. Para João do Rio, a extravagância pode ser autêntica ou ingênua (Barreto, 1911e, p.289), mas tem de ter “o gosto do imprevisível” (Barreto, 1995, p. 109). A caracterização do comportamento de um indivíduo como extravagante, contudo, varia de acordo com classe e raça: uma extravagância para as classes mais altas pode ser vista como crime para classes menos favorecidas ou não brancas.  Dessa forma, João do Rio utiliza os modelos de decadência aristocrática de Lorrain e Wilde para acentuar e participar das “extravagâncias” das classes mais altas como as mais baixas:

Nas sociedades organizadas, há uma classe realmente sem interesse: a média, a que está respeitando o código e trapaceando, gritando pelos seus direitos, protestando contra os impostos, a carestia da vida, os desperdícios de dinheiros públicos e tendo medo aos ladrões. Não haveria forças que me fariam prestar atenção a um homem que tem ordenado, almoça e janta a hora fixa, lê os jornais da oposição e protesta contra tudo. Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e a ausência de escrúpulos. (Barreto, 1920, p. 126)

No limite, João do Rio busca demonstrar uma necessária afinidade entre poetas e loucos.[10]Segundo ele, no Brasil, tal afinidade na rebeldia, particularmente óbvia nas obras e no comportamento do grupo boêmio de 1886, desaparecera após o início do regime republicano em 1889. Antes, sugere ele, “a norma era a extravagância” (Barreto, 1911c, p.195), e “era um dos prazeres da boêmia violentar as leis policiais (p. 200). Conclui que o que era considerada uma extravagância ‘normal’ passa a ser contida, normalizada. Para tal discípulo de Wilde, a antiga cultura de extravagância antes exemplificada pelo dandismo acaba se degenerando em mera imitação e esnobismo (Barreto, 1911d, p. 73); sendo “a salvaguarda do progresso, o snobismo é o diapasão da harmonia universal, o snobismo é a Civilização” (Barreto, 1911b, p. 177)  que acaba por se transformar na “divina mentira social” (p. 164).[11]

Em vez de regular, a ideia de “extravagância”’ na obra de João do Rio possibilita a circulação textual de corpos e significados inesperados. Se o carnaval representa a interrupção temporal-espacial da extravagância por excelência, então as obras escritas e performances que preenchem o fin de siècle e a Belle Époque – sua própria ilegibilidade e sua obsolescência – resistem às exigências normativas das grandes narrativas de reprodução sexual, capitalista e nacional.  Simultaneamente, em vez de apenas virarem as costas para pressões sociais da época (como muitas vezes tem-se dito), a geopolítica nas obras de João do Rio consiste em explorar a imprevisibilidade na emergência de corpos, comportamentos, experiências e culturas no Rio de Janeiro do início do século XX. 

Imitação

Em seus já clássicos estudos sobre o chamado Modernismo Hispano-Americano e a recepção ambivalente dos trabalhos de Oscar Wilde na América Latina – segundo ela uma recepção que foi ao mesmo tempo “progressista e retrógrada”, “regeneradora e degenerativa” (Molloy, 1992, p. 192) – Sylvia Molloy considera “a força desestabilizadora da pose” e o papel da simulação entre autores modernistas (Molloy, 1994, p.129).[12] Segundo Molloy, a pose modernista-decadentista não seria apenas uma performance de política cultural, mas também constituiria a base de uma dupla epistemologia que envolve, em suas palavras, uma “postura significativa” (por exemplo, a pose como um sinal de feminização), bem como uma “impostura significante” (por exemplo, a feminização em si mesma como uma mera pose). Molloy propõe uma cuidadosa reconsideração e talvez a adoção – como um necessário gesto de alívio cultural – da repetição que se considera como aquilo que mais caracteriza a (e que ameaça feminizar a) cultura do fin de siècle na América Latina. Ao ponto de ser simultaneamente atraente e ameaçadora, a pose, em sua extravagância, excede a simples simulação (entendida como uma caricatura frívola), sendo por isso necessário renunciar a qualquer distinção rígida entre o autêntico e o inautêntico.

No Brasil, a moda decadente dependeu não apenas de atos de se posar como sujeitos masculinizados ou afeminados, mas também de uma nova postura. Sujeitos sexualmente e, às vezes, racialmente dissidentes, manipularam estrategicamente a exibição dos seus próprios corpos (assim como suas obras) no que considero ser um claro contraste em relação, de um lado, às primeiras psicopatologias dos criminólogos e naturalistas do século XIX e, de outro lado, às várias formas de nacionalismo viril que estavam sendo articuladas na virada do século e que acabariam por desaguar nos movimentos de vanguardada década de 1920.

Por outro lado, a articulação de teorias da imitação na Europa coincide com o período mais produtivo de Oscar Wilde, durante o qual este desenvolve uma forma de esteticismo que privilegia o artifício como uma reação às noções tradicionais de mimese e que viam a arte como uma imitação da natureza ou da vida. No Brasil, esses dois discursos do fin de siècle (o científico e o estético) tornam-se entrelaçados, e a figura de Oscar Wilde torna-se instrumental para que autores brasileiros de diferentes origens e orientações lutem para a afirmação das suas próprias identidades sociais, econômicas e raciais. Pois de acordo com alguns dos primeiros criminólogos, a imitação é um aspecto essencial do comportamento humano. Aliás, para Lombroso (1835-1909), assim como posteriormente para seu discípulo Max Nordau, não é a imitação, mas sim “um grau exagerado de originalidade” que constitui a “patologia da arte” (Lombroso, 1891, p. 208). Com efeito, cientistas do fin de siècle estavam preocupados tanto com a patologia do “homem de gênio” (digamos, suas extravagâncias) quanto com a influência destes sobre seus imitadores.

No Brasil do final do século XIX, as duas formas que Gabriel Tarde, em seu Les Lois de l’imitation (1890), denominaria de imitação-moda (cosmopolitismo) e imitação-costume (nacionalismo) tornavam-se grandes preocupações para escritores e legisladores, seja em níveis local, nacional ou internacional. Por certo, a diferenciação entre bons e maus modelos é vista como uma estratégia para a definição do tipo nacional e para a garantia da homogeneidade da nação. A obra de Viveiros de Castro, o notável criminólogo já aqui citado, ilustra como o discurso científico sobre a imitação na virada do século serve primeiramente e acima de tudo para explicar a inferioridade de certos indivíduos – negros, é claro, associados a tolos, crianças e mulheres – e, consequentemente, o fracasso da nação como um todo. Assim, a imitação de modelos superiores é compreendida como um estágio necessário do processo civilizador que viria necessariamente a tornar viável a nação.

Também de acordo com o crítico literário Sílvio Romero, a imitação na literatura é inevitável, e pode, em verdade, ser frutífera quando esta é bem ordenada e obedece a critérios específicos, escrupulosos. A imitação literária produtiva deve assim evitar a exclusividade de um único modelo europeu dominante (a literatura francesa no caso do Brasil) e, além disso, Romero insiste, a imitação literária deve ajustar-se às realidades locais (Romero, 1897, p.124): “É este o mal de nossa habilidade ilusória e falha de mestiços e meridionais, apaixonados, fantasistas, capazes de imitar, porém organicamente impróprios para criar, para inventar, para produzir coisa nossa e que saia do fundo imediato ou longínquo de nossa vida e de nossa história” (p.122). Romero não apenas distingue “imitação seletiva” de “cópia servil”, mas também associa esta última com sujeitos racial ou culturalmente híbridos, os quais, incapazes de “aprender através da seleção”, dão a si mesmos o “luxo de ir aprender diretamente no grande centro parisiense todos os vícios e desregramentos do pensamento e do caráter moderno” (p.123). Em verdade, sustenta que mestiços (biológicos ou culturais) têm maior tendência a “macaquear” do que negros autênticos, “puros”. Por exemplo, de acordo com o crítico, no caso do poeta afro-brasileiro Cruz e Sousa (1861-98), não é visível qualquer pose [“nada de pose”] (Romero, 1905, p.195). Em comparação, Romero condena Machado de Assis (1839-1908), e o que ele julga uma demasiada afetação de suas obras, que para ele são como trajes tomados de empréstimo. (Romero, 1897, p.197). Assim, Romero ri do autor mestiço por ser inautêntico, e menospreza seu ridículo e prepotente desejo de imitar ou de apropriar-se de tradições ou identidades europeias: “Aqui no Brasil, a maior prova, a mais característica do humor nesses [os mestiços] é quando dizem: nós latinos! É impagável” (p. 138).

Desde pelo menos a década de 1820, e ao longo de todo o século XIX, homens negros educados ou que resistiam a obedecer aos limites da posição social a eles imposta eram frequentemente caracterizados como arrogantes, inapropriados. Jornais chamam tais sujeitos prepotentes – inclusive certos escravos fugidos – de “pernósticos” (etm. “pro-gnóstico”). Já na virada do século, a expressão “mulato pernóstico”viria a evocar o mestiço pretensioso, e tornando-se um estereótipo recorrente na literatura, na comédia popular e em revistas ilustradas.

A preocupação com a imitação no período que chamo de “o longo fin de siècle brasileiro” é generalizada e particularmente intensa entre autores na capital da recém-proclamada República. Tal fascinação coincide com transformações tecnológicas e urbanas que tinham o intuito de intensificar a conexão material e simbólica entre o Rio de Janeiro e Paris e que, ao mesmo tempo, deslocavam a população urbana e negra para a periferia, relegando a memória da escravidão às margens da história. A associação entre a literatura moderna e a moda, entre a escrita e estilo de vida, é reforçada justamente quando o esteticismo de Oscar Wilde começa a chamar a atenção de um pequeno, porém visível, grupo de escritores brasileiros e pretensos dândis. A recepção brasileira da obra e sobretudo da imagem de Wilde no início do século XX evidencia a fascinação e a ansiedade que a importação de modelos literários europeus gerava tanto entre a elite letrada quanto entre consumidores.

O fato é que Wilde tornara-se moda, e imitá-lo era aparentemente chique. Em 1915 e 1916, anúncios de jornal repetidamente utilizavam sua imagem para promover seus produtos. A loja de roupas Casa Estrella, por exemplo, localizada na Rua do Ouvidor, então coração intelectual do Rio de Janeiro, utiliza uma evidente e identificável caricatura de Wilde para anunciar itens como “suspensórios americanos” e “camisas de malha para lawn-tennis”. Uma famosa fábrica de cigarros imprimiu uma imagem similar com o slogan: “Fumar só marca Veado - é saber gozar”. Ao mesmo tempo, tal fascinação com o extravagante Oscar Wilde se tornaria um alvo fácil para críticos e humoristas. Em 1916, um jornalista, comentando sobre uma recém-publicada coletânea de estudos de neurologia (Pequenos Males, de Antônio Austragésilo Rodrigues) ridiculariza as tendências imitativas da elite letrada local: "Estudando a diátese da imitação o Sr. A. Austragésilo poderia ter realizado um trabalho notável se tivesse querido examinar os plagiários, grafômanos, macaqueadores patológicos de Oscar Wilde, Jean Lorrain e similares."

Para aqueles pretensos cosmopolitas tais como o Elísio de Carvalho da sua fase dândi, emular Wilde era de fato uma forma de distinguir-se das tradições literárias locais e nacionais, adentrando na aristocracia espiritual de autores europeus e francófilos latino-americanos. Ou, como o próprio uma vez afirmou: “eu sou supranacional e pertenço ao momento intelectual europeu” (Barreto, 1907, p. 83). Também havia artistas visuais negros ou mestiços que conquistavam visibilidade e, além disso, se exibiam. Muitos desses artistas, incluindo os irmãos João (1879-1932) e Arthur Timóteo da Costa (1882-1922) e o ilustrador dândi e mulato, Calixto Cordeiro (1877-1957), são conhecidos por seu estilo elegante e original. Cordeiro, o qual iniciou sua carreira juntamente com João do Rio no jornal Cidade do Rio, de propriedade do famoso abolicionista negro José do Patrocínio, era notório por sua aparência extravagante: uma casaca, abotoaduras em forma de crânios e um alfinete de gravata em forma de coruja eram alguns de seus acessórios. Enfim, para aqueles dissidentes (raciais ou sexuais, de fato ou potenciais, “natos” ou de ocasião), cosmopolitismo, esteticismo, moda e dandismo representavam tanto uma forma de se escapar das exigências e dos estigmas da autenticidade, quanto uma forma relativamente ousada de desafiar a naturalização da heterossexualidade normativa, da raça e da identidade nacional.

O perfil mestiço de João do Rio, sua orientação sexual e conduta, bem como sua recusa em adotar o nacionalismo ortodoxo pressupõem uma complexa relação com a sociedade em que este vivia. Suas ideias atrevidas, desterritorializadas e muitas vezes subteorizadas, suas apropriações, poses e posturas, tornam a associação entre dissidência sexual, de um lado, e simulação e reivindicações ao cosmopolitismo, do outro, centrais para a identidade que construiu para si. Nenhum outro escritor brasileiro esteve tão desejoso em mascarar a própria identidade, de imitar, assumir a postura de, e posar como Oscar Wilde. Ao mesmo tempo, João do Rio era sensível e intimamente preocupado com o significado do destino relegado ao escritor irlandês que cedo definira como “moralmente insano”, um “degenerado consciente”. Como Wilde, o carioca tinha um interesse pessoal na descriminalização da homossexualidade, mesmo quando recorria ao vocabulário da criminologia para se referir a ela.

Como se sabe, a carreira de João do Rio foi prolífica e diversa, tendo escrito um número estimado de 2500 textos, incluindo peças, contos, crônicas, entrevistas, romances e aforismos (Rodrigues, 2010, p. 10). O crítico Agripino Grieco (1888-1973) uma vez o chamou de “cleptômano das letras”, alguém que não podia escrever mais de duas linhas sem a assistência de Oscar Wilde ou Jean Lorrain (GRIECO, apud FARIA, 1988, p. 83).  Mas o próprio João do Rio refletiu sobre os temas da imitação e da simulação em pelo menos duas conferências: “A delícia de mentir” (1910) e “O Figurino” (1909). Ambas são praticamente paráfrases de dois textos famosos de Wilde, “A decadência da mentira” e “A verdade das máscaras” (1885), publicados em Intenções (1891), um volume que o próprio João do Rio traduzira.

É em “O Figurino”, contudo, que o autor de modo explícito e consciente trata da psicologia e da politica cultural da imitação. O texto inicia com um trecho do famoso poema “O sentimento de um ocidental”, de autoria do português Cesário Verde (1855-86), no qual um flâneur vaga por uma moderna cidade portuguesa, provavelmente Lisboa. Apesar de o poeta primeiramente associar sua cidade com “Madri, Paris, S. Petersburgo, o mundo!”, ele é logo confrontado com uma profunda diferença, isto é, a inconfundível natureza marginal e inautêntica da modernidade de Portugal. Para João do Rio, o poema ecoa sua própria experiência em Paris, o centro cosmopolita da moda. Lá, ele necessita reconhecer que, como um homem de letras de uma nação ainda mais periférica, ele, tal como outros que se consideram “chiques”, são, em verdade, condenados à “fúria da imitação” e ao ‘macaqueamento universal’ que caracterizam a vida moderna (Barreto, 1911d, p. 65). Neste ponto, o escritor/jornalista/viajante/flâneur se depara com seu próprio reflexo na vitrine de uma loja, que o faz indagar sobre a natureza do seu próprio “desejo cosmopolita” (para usar uma expressão do critico argentino Mariano Sisskind), ou “mundanismo,” como se dizia na época. Sentindo-se subitamente tolo, ele percebe que, ao imitar outrem, perdera-se a si mesmo, e logo se repreende: “Retoma, menino, o teu próprio eu!”. Ao se re-compor, ele então elabora um “princípio filosófico” e uma “lei de psicologia social” que parodiam aquelas doutrinas, ideologias e discursos científicos sobre a imitação então em voga. Segundo essa sua simulação de teoria, a grande obsessão num mundo dominado pelo artifício seria o chamado figurino – isto é, o modelo original, a hipoteticamente autossuficiente fonte produtora de novos estilos e de imitações.  Mas a moda moderna, alega ele, é caracterizada pela mudança veloz, motivada pela comparação, e propiciada pelo espírito de competição, de modo que todos são culpados por sentirem algum grau de ressentimento, e todos querem ser eles mesmos modelos, ainda que seja muito brevemente. Essa ansiedade e constante exigência do novo – no vestuário, mas também nas artes, na religião e no esporte – levaria à despersonalização e à normalização do desejo. João do Rio não parece extremamente crítico de tal dinâmica; ele a acha inevitável e sugere que uma certa quantidade de “inveja, pretensão e ciúme” corresponde a apenas mais uma manifestação do desejo humano. Ainda assim, delineia diferentes graus de autenticidade; enquanto modas “fáceis” se espalham rapidamente em um movimento que simula democracia, “modelos” ocasionais, os quais são verdadeiramente únicos e, portanto, difíceis de emular, tendem a ser objetos de uma inveja amarga, tal como Oscar Wilde, o qual ele chama de “figurino do paradoxo” (p. 72). Ou seja, apesar de celebrar a imitação, a simulação e a emulação, João do Rio finalmente não deixará de lado o valor da originalidade de tipos excêntricos.

É importante notar que, o que pode inicialmente ser visto como inescapavelmente classista, elitista ou aristocrático em tal doutrina pode, em verdade, ser traduzido para diferentes contextos socioeconômicos. Para João do Rio, praticamente todos na sociedade moderna imitam e também são imitados por outros: “na imitação do figurino não há bem inveja, há o querer ser igual” (p. 79). Isto é, tanto os imitadores esnobes quanto os modelos mais originais podem ser encontrados em todos os níveis sociais; pois até mesmo nas classes menos abastadas haveria aqueles que são “fashionable, professional beauties, dandies” (p. 80). Assim, tal como a elite elegante, alguns membros das camadas sociais mais baixas são suscetíveis à influência da moda, enquanto outros são modelos originais em si mesmos e, consequentemente, gozam de um maior prestígio. Um bom exemplo, argumenta ele, é o estilo altamente original do malandro:

O sentimento, a ideia, é a mesma. Apenas o figuro da haute gomme é um e o figurino da ralé é outro. Tanto se julga satisfeito com uma casaca Davis ou do Cook, o colete em V e os sapatos rasos um jovem do escol, como de calça bombacha, casaco curto, tacão reúno, lenço azul no pescoço e chapéu no alto para não comprometer o topete, um malandro qualquer (p. 80).

 Ou seja, para João do Rio, o que distingue as camadas superiores e inferiores da sociedade é nada mais do que a natureza da opinião pública: as opiniões entre aquelas são formadas de um modo que é inacessível a essas. Em outras palavras, a dinâmica da imitação envolve sempre alguma forma de prestígio ou capital simbólico. Além disso, para João do Rio, a vestimenta é inseparável do corpo que a veste. Em “O Figurino” o autor demonstra sua preocupação com a transformação do dandismo moderno, de uma verdadeira expressão da originalidade a um mero esnobismo, um mecanismo que em última análise marca divisões de classe e produz tanto uniformidade quanto distinção entre certos homens.

Na verdade, a abordagem de João do Rio em relação a questões de imitação fácil, de um lado, e de reivindicação de autenticidade, de outro, é ainda mais complicada e muitas vezes contraditória. Em uma de suas crônicas, “As crianças que matam”, obra situada entre a ficção e a reportagem, o autor descreve como ele tinha um amigo que, intrigado por notícias sobre crianças que cometem crimes, decide com ele explorar “o vício inconfessável” em sua cidade – tal como Dorian Gray o fizera, ele nota (Barreto, 1909, p. 33). Nas subsequentes interações com populações marginalizadas do Rio de Janeiro, os dois amigos encontram um grupo de capoeiristas e malandros, negros. Estes estão bêbados e vestindo tamancos, mas alguns deles misturam inglês, francês e palavras africanas em sua fala, uma tendência que ironicamente associa à elite local esnobe que despreza o Rio de Janeiro e deseja mudar-se para a Europa. Ao passo em que o narrador e seu amigo adentram a vizinhança decadente, eles encontram um grupo de homens que podem bem ser assassinos, mas que também revelam serem habilidosos e comoventes contadores de histórias. A crônica termina com o reconhecimento, cheio de sentimentalismo, dos preconceitos do próprio escritor: “eu e o meu amigo sentimos n’alma a emoção inenarrável que a bondade do que julgamos mau sempre nos causa” (39). Isto é, apesar de adotar uma posição distante de espectador, jornalista e flâneur, e a despeito de associar negros à criminalidade e à perversão, neste raro momento, João do Rio explicitamente admira (deseja?) a tradição – especificamente a tradição afro-brasileira.

A pluralidade de perspectivas e temporalidades que João do Rio ensaia em suas histórias, crônicas e palestras, define um panorama amplo, através do qual a autenticidade nunca pode ser plenamente vivenciada. A autenticidade é sempre ilusória ou distante, e a busca por ela é sempre insatisfatória. Um mendigo, cuja pretensão de originalidade denuncia os artifícios do dândi, não é mais ou menos patético que o esnobe burguês, em um mundo em que qualquer pessoa pode dizer-se original. Quase uma década mais tarde, João do Rio escreve que ainda não superara tal dilema:

Convenho que sempre imitamos nessa Cidade-Espelho. Imitamos e copiamos todas as modas, a da indumentaria como a das ideias, a dos costumes, a da moral, a do caráter. São mesmo tantas as modas, sucessivas e incoerentes, a invadir e a tomar-nos pensamento e sentimento que todas nos deixam incompletos, no ar, a espera de outra moda que também não nos completa. Essa ansiedade de copia e o grande mal do Brasil e, principalmente, do Rio – a grande província pernóstica onde se misturam todos os meio-inteligentes do sertão, todos os assaz pastranas da roça, todos os pretensiosos das aldeias querendo roncar de homens da cidade (Barreto, 1920).

Em seu livro Cosmopolitan Desires, Mariano Siskind discute o modo pelo qual se articula a tensão entre “o desejo de participar da ordem global do modernismo e a angústia provocada pela experiencia da exclusão e a antecipação da exclusão por vir” (Siskind, 2014, p. 32, tradução nossa). Para ele, ao contrario das noções hegemônicas de literatura-mundo, que ainda tendem a ser globalizantes, para a América Latina o discurso literário mundial é sempre antagônico. Assim, na Belle Époque brasileira, a imitação extravagante e a imitação da extravagância são vistas tanto como solução quanto como obstáculo às aspirações dos homens de letras locais. Diferentemente dos seus pares nacionalistas, João do Rio nunca se concilia com a tensão entre o desejo de imitação e o de originalidade. Ele constantemente revisita suas próprias meditações sobre a moda, tentando explicar a natureza “caleidoscópica” da modernidade, isto é, suas fundações necessariamente combinatórias e sua universalidade efêmera (Barreto, 1920). Mas ele também manipula o conceito de imitação, tornando-o um mecanismo para o reconhecimento, a sobrevivência, a aceitação social e a ascensão social. De forma variada, ele vê a emulação como uma forma de se alcançar a distinção, manifestar a exclusão, expressar o escárnio e até mesmo reproduzir discriminação (étnica ou de outro tipo). Mais interessado nas narrativas contemporâneas do que nas limitadoras narrativas do passado (memória coletiva, herança, ancestralidade), ele tende a todo custo a evitar o discurso da tradição e as limitações da autenticidade. O discurso sobre a moda e a modernidade lhe oferece uma forma de reivindicar uma originalidade sem marginalização e, portanto, representa uma alternativa ao sentimento hegemônico de pertencimento, uma alternativa que não seja limitada pela reprodução, filiação ou nacionalidade.

Em suma, João do Rio encontra-se na interseção de ao menos duas não-tradições, duas correntes de imitação às quais ele não tem pleno acesso. Nenhuma identidade racial, sexual ou nacional parece desejável ou mesmo disponível ao mulato homossexual, e pode ter sido por tal motivo que este tenha feito das imposturas de classe e do cosmopolitismo a sua própria identidade mascarada. Ao mesmo tempo, considerando que a sua ascendência negra era um segredo tão aberto quanto sua homossexualidade, nem as narrativas norte-americanas de racial passing, nem a experiência moderna do armário podem levar em conta os múltiplos disfarces que ele utilizou – com seus efeitos ambivalentes de rasura e exagero, retirada discreta e intrusão hipervisível. Ou seja, do ponto de vista da diferença sexual ou racial, João do Rio permanece quase, mas não totalmente invisível.

 

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Submetido em 04/10/2018; Aceito em 10/12/2018


Notas

[2]O Rio Nu: periódico semanal cáustico, humorístico e ilustrado (1898-1916) era um periódico destinado ao público masculino que tratava, com frequência, de temas relacionados à homossexualidade, ao sexo anal e à impotência masculina, com o intuito de regular práticas e condições dissidentes. V, Peçanha (2015). A primeira parte de A casadinha aparece no final de1902, e, a última, na edição de 8 de abril de 1903. O folhetim não consta da edição de 1º de abril de 1903 e, por estar a edição de 14 de janeiro de 1903 indisponível na coleção digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, não estou certo da sua presença nesta última.

[3]Como sugere Ed Cohen, “até a década de 1920, a palavra ‘Oscar’ era popularmente empregada como um epíteto entre jovens da classe trabalhadora britânica, especialmente para desafiar a pressuposta ‘masculinidade’ de homens individualizados. Como esse uso foi baseado na prática jornalística de utilizar repetidamente o termo 'Oscar' com as entrelinhas nas quais constavam determinantes da diferença que estavam em jogo no caso, isso sugere até que ponto as representações públicas do comportamento de Wilde forneceram a base para (de)legitimação de uma gama de práticas específicas de gênero, tanto sexuais quanto não sexuais. No entanto, se a divulgação das preferências e práticas eróticas de Wilde criou novas possibilidades para articular a diferença entre identidades masculinas aceitáveis ​​e inaceitáveis, ela também forneceu a homens que experimentaram sentimentos e atrações semelhantes uma nova maneira de expressar – para si mesmos e entre eles – a realidade, se não a saúde ou aceitabilidade, de suas experiências” (Cohen, 1993, p. 100, tradução nossa).

[4]De acordo com James Green, a primeira publicação pornográfica homoerótica do Brasil, O menino do Gouveia, foi distribuída juntamente com o periódico O Rio Nu em 1914 (1999, 32).

[5]Na realidade, a auto-invenção extravagante era também disponível a grupos menos privilegiados, como o malandro afro-brasileiro, apesar de possuir diferentes efeitos e conotações.

[6]Para a distinção entre o flanêur e o dândi, v. Foucault (1984).

[7]Este artigo, “O breviário do artificialismo”, fora publicado originalmente na edição de 13 de março de 1905 da Renascença, imediatamente sucedido por “Frases e filosofias para uso da juventude”, uma tradução do próprio João do Rio da obra de Wilde Phrases and Philosophies for the Use of the Young (1894).

[8]O conto de João do Rio (publicado originalmente na Gazeta de Notícias, 16, Mar. 1908) tem sido comparado com um conto de Fialho de Almeida, do ano de1893, “O cancro”. De fato, sua estrutura é bastante similar, embora a história de Almeida seja muito mais convencional. Nela, o narrador em primeira pessoa descreve sua obsessão com uma mulher excepcionalmente bela e misteriosa. Por evitar relacionamentos românticos com homens, rumores do seu lesbianismo a perseguem: “logo a maledicência começou a ver naquela esfinge que fugia dos homens, a cariátide d’algumas dessas sacerdotisas lésbicas, dum desses divinos monstros, de cujos encantamentos Catulle Mendés e Maiseroy têm escrito a bíblia do amor extravagante” (Almeida, 1946, p. 87). Ao final, quando o narrador adentra sua casa e a ataca, ele descobre uma “úlcera cancerosa” sob o seu vestido (p. 92).

[9]Não tenho acesso à tradução em português de Degeneração, que provavelmente deve ter sido baseada na versão francesa, onde se lê: ‘Wilde a plus agi par ses bizarreries personelles que par ses oeuvres’ (Nordau 1895, 133). Ao passo em que críticos brasileiros, de Brito Broca (2004, 163) a Davi Arrigucci, Jr. (1993, 32) repetem tal argumento, os quais diminuem a influência dos seus trabalhos, o impacto cultural de Wilde tem sido gradualmente depreciado na história literária brasileira.  

[10]Para Elísio de Carvalho (1907) todos os movimentos literários do fin de siècle foram “extravagantes”: “uns eram simbolistas, outros decadistas, outros místicos, ainda outros instrumentistas, magníficos, satanistas, etc. “E o domínio da extravagância era absoluto e medonho (p. 219),. Ao descrever a poesia de Gustavo Barroso, por exemplo, ele define ‘extravagância’ como o oposto de originalidade: “Há [em seus versos], realmente [...] mais extravagâncias que originalidades [...] Não há negar que, se há nele extravagâncias, há também belezas, frases de valor poético, ideias e sentimentos, virtudes de melodia e sonoridade pouco vulgares. Os seus versos, mesmo os extravagantes, o que são filhos apenas da sua preocupação de escoloa, mostram que Gustavo, como poeta, não é um poeta ordinário.” Antes, Carvalho citara o crítico José Veríssimo, para quem “extravagante” é tudo aquilo que não é ‘humano ou social’, “fora da vida e da realidade” (p. 34).

[11]Sobre a figura literária do esnobe (ou em francês, ‘le pedant’), v. Poulet (2012, p. 367-372).

[12]Seu primeiro ensaio sobre Wilde, “Too Wilde for Comfort: Desire and Ideology in Fin-de-Siecle Spanish America” (1992), foi publicado em Português como “Decadentismo e Ideologia: Economias de Desejos na América Hispânica Finissecular” (1993) seguido de resposta de Davi Arrigucci, Daniel Balderston and Walter Mignolo). O outro estudo, “La política de la pose,” foi originalmente publicado em Las culturas de fin de siglo en América Latina (1994).

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