A INTERNACIONALIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA: TRADUÇÃO, POLÍTICA E PERCEPÇÃO CULTURAL

A INTERNACIONALIZAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA: TRADUÇÃO, POLÍTICA E PERCEPÇÃO CULTURAL[1]

INTERNATIONALIZATION OF BRAZILIAN LITERATURE: TRANSLATION, POLITICS AND CULTURAL PERCEPTION

Cristina Ferreira Pinto-Bailey[2]

[1] Este trabalho foi apresentado na mesa "Internacionalização da literatura," durante o Congresso Internacional da ABRALIC, em julho de 2019, a convite do Professor Dr. Rogério Lima, da Universidade de Brasília, e presidente da organização. Agradeço a ele e ao Professor Dr. José Luís Jobim, coordenador da mesa.

[2] Visiting Associate Professor of Spanish and Portuguese, Department of Romance Languages, Washington and Lee University (USA).


RESUMO:

Este trabalho discute a questão da internacionalização da literatura brasileira em relação ao mercado de livros e ao contexto social e político dos Estados Unidos na época contemporânea, a partir de observações e análise sobre a tradução, publicação, circulação e recepção de nossa literatura naquele país.

Palavras-chave: Internacionalização; literatura brasileira; Estados Unidos; tradução.


ABSTRACT:

This article discusses the internationalization of Brazilian literature within the present-day editorial market and the contemporary social-political context of the United States. This critical discussion is based on observations and analysis of Brazilian literature's translation, publication, circulation, and reception in that country.

Keywords: Internationalization; Brazilian literature; United States; translation.


A questão da internacionalização da literatura brasileira concerne a sua inserção no corpus do que podemos chamar a literatura mundial, World Literature, termo que surge no início do século XIX, com Goethe, que cunha o termo Weltliteratur, e que já naquela época falava de um "mercado mundial de bens intelectuais" (in Pascale, 2004, p. 10).[3] O termo tem circulado bastante nos Estados Unidos, especialmente nos últimos trinta anos, entre críticos literários, cursos universitários, e revistas e jornais especializadas, tais como a New York Review of Books, o The New York Times Book Review, a Harper's e a World Literature Today, cuja publicação começou em 1927 com o nome Books Abroad e passou a chamar-se World Literature Today em 1977. O renovado interesse por essa literatura mundial — ou pela "República Mundial das Letras," título do famoso livro da crítica francesa Pascale Casanova — parece coincidir com uma virada no campo da literatura comparada, virada essa que Gayatri Chakravorty Spivak caracterizou como a "morte de uma disciplina" em seu livro de mesmo título (Death of a Discipline, 2003), e com a crescente influência dos estudos culturais sobre a crítica e análise literárias.

Dois volumes críticos, publicados na última década e meia, procuram situar a literatura brasileira em um panorama global; ou seja, oferecem uma visão do "valor de mercado" da nossa literatura, ao mesmo tempo em que exemplificam a recente ênfase sobre o conceito de World Literature nos Estados Unidos. São eles: o livro de Earl E. Fitz, professor de literatura brasileira e comparada, e tradutor de autores brasileiros como Clarice Lispector, Brazilian Narrative Traditions in a Comparative Context (2005), parte da série World Literatures Reimagined, da Modern Language Association; e o volume organizado por Eduardo Coutinho, Brazilian Literature as World Literature (2018), que reúne ensaios traduzidos para o inglês de grandes nomes da crítica nacional, como Beatriz Resende, Rita Terezinha Schmidt, Benjamim Abdala Jr. e José Luís Jobim.

Brazilian Literature as World Literature faz parte da série Literatures as World Literature, publicada pela Bloomsbury, cuja proposta, segundo uma breve descrição da série, é fugir das discussões teóricas abstratas em torno do conceito de literatura mundial e realizar um mapeamento crítico com leituras específicas de autores, obras e movimentos das várias literaturas que a compõem. O livro de Fitz, além de uma discussão detalhada e aprofundada da literatura brasileira desde seus primórdios, apresenta também uma bibliografia de quase cem obras brasileiras traduzidas para o inglês entre 1920 e 2000, incluindo ficção, poesia e ensaio. Fitz tem sido a maior força impulsora dos estudos literários interamericanos nos Estados Unidos, sem dúvida um viés crítico favorável ao estudo e valorização da literatura brasileira fora dos limites tradicionais dos estudos literários luso-brasileiros.

Tanto o livro de Fitz como o volume organizado por Coutinho são contribuições valiosas à internacionalização da literatura brasileira; entre outras razões, porque combatem e informam uma definição de World Literature que "normalmente reflete noções institucionais locais do que seja relevante" (Greene, 2005, p. vi) e mereça aparecer sob esse rótulo. Apesar disso, as duas obras não deixam de afirmar a hegemonia cultural da Europa e dos Estados Unidos. Como aponta Coutinho em sua introdução, os ensaios de Brazilian Literature as World Literature propõem-se a um "exame da literatura brasileira através da comparação e contraste com modelos europeus importados" (Coutinho, 2018, p. 9). Portanto, as literaturas europeias são aqui o ponto de referência, enquanto que, no livro de Fitz, o é a literatura dos Estados Unidos. Coutinho afirma que a produção literária brasileira sempre se manteve em constante relação ["intercourse" no original] com a literatura e cultura europeias mas, segundo ele, essa relação evoluiu, deixando de ser somente imitação e adaptação, ou uma trajetória "de mão única, característica de qualquer processo de colonização," para tornar-se um "verdadeiro diálogo" (Coutinho, 2018, p. 17), já que a literatura brasileira também passou a contribuir a vários aspectos da produção literária europeia (Coutinho, 2018, p. 18). Esse diálogo, ainda segundo o crítico brasileiro, contribuiria então para a projeção da literatura brasileira no cenário internacional (Coutinho, 2018, p. 1).

Faz-se necessário, no entanto, um projeto crítico que ilumine, especialmente para o público estrangeiro, essa contribuição nacional às letras internacionais.[4] De outro modo, insiste-se em formas de análise crítica que Antonio Candido descreveu como "aproximações reconfortantes" (Candido, 1993, p. 211) da nossa literatura com a de outros países, "como se a capacidade do brasileiro ficasse justificada pela afinidade tranquilizadora com os autores europeus [e, hoje, também estadunidenses]" (Candido, 1993, p. 211). Ademais, ausentes o exame e divulgação da participação atuante da literatura brasileira em diálogos literários globais, ela permanecerá como literatura "menor" e vulnerável à apropriação indevida, como na controvérsia que envolveu Moacyr Scliar e Yann Martel, quando da publicação em 2002 do romance do autor canadense, Life of Pi. Tanto o New York Times como o jornal britânico The Guardian dedicaram longos artigos à polêmica, sendo os dois escritores entrevistados.

Sem dúvida, a constituição do corpus da World Literature é como um jogo ou, melhor, como uma corrida, em que os vários participantes disputam um lugar no "centro." Roland Greene, editor da série da Modern Language Association mencionada acima, afirma que o corpus da literatura mundial representa, para muitos, "uma construção da metrópole que assegura" a manutenção de categorias [rígidas] como literatura "maior" e "menor" (Greene, 2005, p. vi). Ou seja, é um termo adotado pela cultura hegemônica, a qual vai determinar as literaturas, obras e autores que ele abarca. Entretanto, pertencer a esse corpus significa prestígio, e repercute também no mercado editorial nacional.

A publicação dos volumes de Fitz e de Coutinho reflete um maior interesse, nos meios universitários e intelectuais estadunidenses, pelas literaturas de outros países, o que tem levado a um aumento no número de obras estrangeiras traduzidas. No caso da literatura brasileira, o maior número de traduções, levaria, por sua vez, à publicação de estudos críticos cuja função é "contextualizar e explicar aos leitores" sobre a literatura brasileira e seus autores (Marting, 2004, p. 328). No entanto, cabe questionar essa correlação, posto que as obras analisadas nesses estudos nem sempre, ou quase nunca, são as mesmas traduzidas. Tais estudos críticos tendem a debruçar-se sobre as grandes obras e autores de um país, enquanto que a tradução de um livro de ficção ou poesia pode resultar das relações profissionais e/ou pessoais entre autor/autora e tradutor/tradutora (ou ainda entre estes e o editor/editora). Um exemplo disto foi a tradução de várias obras da ficcionista Edla Van Steen por David George, latino-americanista especializado em teatro, amigo e colaborador da autora catarinense. Van Steen realizou uma obra de ficção importante que, sem dúvida, merece ser lida, no Brasil como no exterior. Entretanto, temos um grande número de outras escritoras e escritores de igual ou maior mérito que não tiveram a mesma sorte. E, por outro lado, nem todas os livros brasileiros publicados em inglês merecem realmente tal distinção: esta é, sem dúvida, uma questão algo subjetiva.[5] O que se verifica é a tradução um tanto aleatória de obras brasileiras, consequência da falta de uma política cultural coerente e duradoura, independente da ideologia dos que se encontram no poder.

De qualquer modo, a tradução de obras estrangeiras nos Estados Unidos responde, mais que nada, às preferências do mercado editorial local. Observa-se, portanto, uma disjunção entre o que a crítica e os leitores de um país consideram suas obras e autores canônicos ou os mais importantes da sua contemporaneidade, e aquelas obras que o poder editorial estrangeiro considera vendáveis. Aliás, em artigo postado em 2017 no site da Itaú Cultural, Felipe Lindoso já fazia afirmação semelhante: "A importância dos autores, seu crédito no mercado internacional de traduções, é extremamente desigual no que diz respeito ao prestígio crítico . . . em seus países de origem." Em Death of a Discipline, Spivak, fala das mudanças no mercado global de livros, ditadas pelos grandes conglomerados editoriais — as grandes editoras multinacionais que são também proprietárias das grandes cadeias de livrarias, essas que vêm eliminando as pequenas livrarias independentes. Esses conglomerados controlam a publicação, marketing e circulação da literatura e, obviamente, a tradução de obras estrangeiras. Desse modo, o mercado global de livros não é influenciado pelos gostos do público leitor; ao contrário, é o mercado que molda as preferências dos leitores e determina em larga medida o que vão comprar.

O livro é assim mais um objeto de consumo — o que talvez se entenda como um avanço democrático — e a "autoridade" que atesta o valor da obra, a "consecrating authority" em termo de Pierre Bourdieu, não é mais o intelectual de outros tempos, mas sim celebridades como Oprah Winfrey. Neste sentido, diz Renato Ortiz: "La esfera erudita ya no posee la autoridad que disfrutaba anteriormente. Nuevas fuerzas sociales le hacen competencia. El espacio del mercado y del consumo se tornan así lugares en los cuales se engendran, y comparten, patrones de cultura" (Ortiz, 1998, p. 101). O mercado segue também "tendências" e estabelece expectativas que vão impactar a tradução de obras estrangeiras. Um exemplo do que chamo "tendência" é o grande número de obras publicadas nos últimos anos que falam da experiência de sujeitos pertencentes a minorias étnicas — por exemplo, chicanos; cubano-americanos; imigrantes recentes ou filhos de imigrantes de países do Oriente Médio, Ásia e África.[6] Aliás, assim não podia deixar de ser, já que essa tendência no meio editorial reflete a diversidade de vozes que compõem a população dos Estados Unidos — consequência, em grande medida, do aceleramento do processo de globalização a partir da segunda metade do século vinte — e o reconhecimento da importância desses segmentos populacionais, tanto como criadores como consumidores de cultura.

Parecem ser poucas as vozes brasileiras que se inserem nesse grupo; ou seja, a de escritores e escritoras imigrantes de primeira, segunda ou terceira geração, que escrevem em inglês sobre sua experiência de vida nos Estados Unidos. Houve, sim, muitos escritores brasileiros que passaram períodos de tempo nos Estados Unidos (ou outros países) e transpuseram suas experiências para a ficção, como Silviano Santiago com Stella Manhattan (1984; tradução para o inglês, 1985). Outro exemplo, mais recente, é Azul corvo (2010; Crow Blue, 2013), de Adriana Lisboa, cuja protagonista deixa o Rio de Janeiro para ir procurar o pai nos Estados Unidos e passa a viver no Colorado. Lisboa não só retrata aí o deslocamento geográfico e afetivo da protagonista brasileira, como também apresenta a situação de uma família latina de imigrantes indocumentados. No entanto, tanto Santiago como Lisboa escreveram em português, sendo depois suas obras traduzidas para o inglês.[7]

Caso oposto é o de Frances de Pontes Peebles, escritora brasileira criada em Miami, com dois romances publicados em inglês por uma subsidiária da Penguim Books. A recepção à sua obra tem sido muito positiva, como atestam os trechos de comentários e resenhas disponíveis no site da autora, e originalmente publicados em revistas populares (como a conhecida revista O, de Oprah Winfrey), jornais como o Dallas Morning News, e websites especializados em resenhas de livros. Vários dos comentários sobre seu romance The Air You Breathe (2018) coincidem em chamar a atenção para o samba como elemento distintivo da narrativa. O site Kirkus, por exemplo, fala da "sedução" do samba, enquanto que Booklist afirma: "Peebles realiza um trabalho maravilhoso ao evocar o mundo do samba, o qual constitui o pano de fundo para o relacionamento complicado entre as duas mulheres protagonistas" (in francespeebles.com). As duas apreciações exemplificam as expectativas referidas há pouco; neste caso, a expectativa de que a literatura brasileira recaia sobre certos temas, como o samba e carnaval.

De qualquer modo, o caso de Frances de Pontes Peebles levanta uma questão interessante: até que ponto sua obra faz parte do panorama da literatura brasileira? Ou é Pontes Peebles autora de uma literatura brasileira-americana, com hífen?[8] Lembremos, primeiramente, que a nacionalidade ou local de nascimento não determinam a afiliação de um escritor ou escritora a determinada literatura nacional. Peebles, embora nascida em Recife, cresceu e estudou nos Estados Unidos, e seus romances foram escritos em inglês, para depois serem traduzidos para o português e outras línguas. Embora suas narrativas se desenvolvam no contexto histórico e num espaço geográfico brasileiros, a trama e as personagens poderiam ser transpostas para qualquer outro lugar ou momento histórico.

Deve-se observar que as grandes editoras estadunidenses, ao investir na publicação de um livro, põem em marcha toda uma máquina de marketing, segundo o nicho do mercado leitor visado, incluindo entrevistas e recomendações de escritores e escritoras já consagrados. Assim, os romances de Peebles recebem o aval de autoras de ficção dirigidas para um público feminino, como Laura Moriarty, e para um público latino, como a importante escritora chicana Sandra Cisneros, cujo breve comentário elogioso aparece na capa de The Air You Breathe. Fica caracterizado, portanto, o público-alvo dos livros de Peebles.

A ficção de Peebles não chega a representar nossa literatura, apesar do cenário e elementos constitutivos da narrativa, mas pode, talvez, despertar em seus leitores o interesse por obras brasileiras disponíveis em inglês. O mesmo já não se pode afirmar de Paulo Coelho, o autor brasileiro mais traduzido de todos os tempos, pois a maioria do público estadunidense desconhece que Paulo Coelho é brasileiro, já que seus romances são vendidos em inglês ou em espanhol, ao lado de livros da chilena Isabel Allende e outros autores latinos, como Cisneros, Julia Alvarez e Junot Díaz (ambos de origem dominicana), que escrevem em inglês e são traduzidos para o espanhol, visando o público hispano daquele país, ou para venda no México e outros países de língua castelhana.

Por outro lado, Jorge Amado continua sendo o escritor brasileiro mais conhecido, com inúmeras edições e reimpressões das traduções de seus livros, pois sua obra perpetuou no imaginário estadunidense a imagem de uma cultura brasileira exótica, mestiça e sensual. Além disso, seus romances se aproximam bastante do realismo mágico, o qual, desde Cem anos de solidão (1967) de Gabriel García Márquez, passou a ser sinônimo de literatura latino-americana. Esse aspecto dos romances mais conhecidos de Jorge Amado soma-se a outras expectativas criadas em torno da literatura brasileira, derivadas das imagens que a mídia normalmente veicula. A propósito, no ensaio "Internacionalização da literatura brasileira e o caso de Milton Hatoum" (2015), a autora, Cecília Rodrigues, comenta sobre uma resenha da tradução para língua inglesa de Dois irmãos. A resenhista, uma escritora inglesa, procura inseri-lo na tradição de uma literatura universal e tenta evitar caracterizar o romance como exótico; no entanto, ironicamente, dedica metade da resenha à Amazônia, pois a floresta amazônica é uma das primeiras coisas em que se pensa quando se fala em Brasil (Rodrigues, 2015, p. 14-15).

Gostaria de levantar agora três pontos que talvez ajudem a sintetizar a situação da literatura brasileira nos Estados Unidos, os obstáculos e as perspectivas favoráveis à sua internacionalização. Primeiro, o status menor da língua portuguesa nos Estados Unidos e a percepção que a população de lá tem sobre o Brasil e a cultura brasileira. Naquele país, o interesse pelas línguas estrangeiras e o apoio que elas recebem nas universidades são influenciados pela política de segurança nacional e variam segundo mudanças na política internacional e no fluxo e perfil das populações imigrantes. Assim, por exemplo, o espanhol segue crescendo (ainda que não tão notadamente como há alguns anos), o árabe tem se desenvolvido muitíssimo, e o francês e o alemão têm visto um certo declínio. As comunidades de imigrantes brasileiros são ainda relativamente pequenas e invisíveis, já que frequentemente são agrupadas com outros segmentos latinos, com algumas exceções, como o estado de Massachusetts, as cidades de Miami e, talvez, de Atlanta. Somem-se a isso o pouco conhecimento que há em relação ao Brasil e a imagem de modo geral negativa ou exótica que a mídia frequentemente transmite.

Segundo ponto: a falta de uma política pública voltada à difusão da língua portuguesa do Brasil e da cultura brasileira nos Estados Unidos. Neste ponto a Embaixada em Washington é completamente inativa; os Consulados de Miami e de outras cidades como Los Angeles e Houston divulgam mostras de cinema, festas, etc. mas, como afirma Lindoso em seu artigo antes mencionado, "um evento não é política pública." Neste sentido, são importantes as pequenas iniciativas que ajudam a preencher o vácuo deixado pela falta de interesse das grandes entidades e de uma política cultural e editorial por parte do governo brasileiro. Assim, grupos como Mulheres da Resistência, de Nova York, organizam eventos literários como o ocorrido em junho de 2019, do qual participei, e que contou com a presença de Conceição Evaristo (por Skype), Marcia Tiburi e outras escritoras e editoras. E falta, claro, apoio à tradução de autores brasileiros, com exceção do Programa de Apoio à Tradução lançado há alguns anos pela Fundação Biblioteca Nacional, cujo alcance, nos Estados Unidos, tem sido pequeno.

E o terceiro e último ponto: o fato de que o corpus de uma World Literature representa um jogo desigual. Observa-se uma profunda desigualdade no fluxo de influências culturais, paralela à desigualdade no fluxo de influência política; ou seja, esse fluxo sai dos países hegemônicos e entra facilmente nos países periféricos, enquanto que o fluxo contrário depara com todo tipo de dificuldades. Cabe enfatizar que um índice bastante revelador dessa desigualdade é, justamente, o número de obras brasileiras traduzidas para o inglês, em contraste com o de obras estadunidenses traduzidas para o português do Brasil. O site Three Percent, afiliado à Universidade de Rochester, e dedicado à discussão e divulgação da literatura moderna e contemporânea mundial, disponibiliza um banco de dados sobre traduções literárias feitas anualmente para o inglês.[9] Aí verifica-se que, entre 2008 e 2017, o Brasil ocupou o décimo-terceiro lugar na escala de países com mais livros traduzidos para o inglês. Essa colocação corresponde a 94 obras traduzidas durante todo o período, ou seja, 1,9% do total de livros traduzidos para o inglês.[10]

Spivak descreve a desigualdade do fluxo de obras em tradução entre os países hegemônicos e os periféricos como "a permeabilidade restrita da cultura global," e aponta a falta de comunicação e colaboração "entre a imensa heterogeneidade das culturas subalternas do mundo" como uma de suas causas (Spivak, 2003, p. 16). Daí pode-se concluir que um modo de contornar esse problema seria uma maior comunicação, intercâmbio e colaboração entre os países e culturas periféricas. Isso é o que Benjamin Abdala Jr. sugere também em "Comparative Literature and Supranational Community Relations": a "reconfiguração de estratégias e reagrupamentos" culturais (Abdala Jr., 2018, p. 319). Ele afirma: "é politicamente relevante que criemos laços de cooperação e solidariedade com os países lusófonos e hispano-americanos, tecendo assim uma rede ibero-afro-americana" (Abdala Jr., 2018, p. 320).

Sem dúvida é preciso um maior intercâmbio e colaboração cultural e literária com intelectuais e escritores dos países da África lusófona e da América Latina. Nos Estados Unidos, existe uma preocupação por parte de muitos professores e pesquisadores quanto à necessidade de inserir o Brasil no contexto latino-americano, ou seja, assegurar-se de que a literatura brasileira esteja bem representada em cursos universitários, livros de crítica e antologias literárias focados na América Latina. Para que isso aconteça é necessário um esforço constante dos brasilianistas para "educar" os colegas em outras áreas, especialmente para que os nomes presentes em cursos, antologias, etc., não se restrinjam a Jorge Amado e Clarice Lispector, já que nossa literatura é tão vasta e diversa. Graças a esse esforço, que frequentemente se dá a nível pessoal ou de "grassroots", vemos uma presença mais constante do Brasil, e uma maior diversidade de nossos autores e autoras, principalmente em estudos críticos, teses e dissertações (a maioria originada em departamentos de espanhol e português).[11] Quanto às antologias literárias, a inclusão de obras brasileiras está bem longe do que poderíamos esperar, e é ainda muito comum a publicação de livros sobre as literaturas latino-americanas que ignoram completamente nossa produção literária. Por outro lado, o Brasil começa a ser representado em obras críticas e antologias focados sobre a diáspora africana.[12]

Fica muito claro que a tradução literária é fundamental para a internacionalização de uma literatura nacional. Já Goethe entendia que o tradutor ou tradutora desempenha um papel "central no mundo das letras, não só como intermediário, mas também como gerador de valor literário" (Casanova, 2004, p. 14). Cita a crítica francesa: "Torna-se portanto necessário considerar cada tradutor como um mediador que busca promover o comércio espiritual [entenda-se, intelectual] universal. . . . [A] atividade [da tradução] é um dos trabalhos mais essenciais e mais merecedores de estima no mercado de comércio universal" (Goethe, in Casanova, 2004, p. 14). Considerando as dificuldades que os tradutores literários enfrentam hoje para publicar suas traduções, principalmente junto às grandes editoras, é inestimável o trabalho realizado pelas editoras pequenas e/ou independentes, como a New Directions, a Tagus (afiliada à Universidade de Massachusetts), a Host e a Dalkey Archive. Todas elas publicam autores e autoras que as grandes editoras ignoram, tais como Conceição Evaristo, Ignácio de Loyola Brandão, Raduan Nassar e João Almino, e se arriscam com novos nomes, como Ana Paula Maia e Paula Parisot.

Em conclusão, muitos veem com otimismo as possibilidades de a literatura brasileira alcançar um lugar de maior destaque no corpus da literatura mundial. Creio que esse otimismo tinha sua razão de ser devido à situação política do país a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso e, principalmente, durante o governo Lula, quando o Brasil despontou como líder continental e uma nova potência mundial. Depois de 2013, entretanto, as razões para otimismo foram diminuindo; hoje o momento político é profundamente desanimador. Minha perspectiva é assim um tanto pessimista. Apesar dos pequenos avanços, incluindo o número e a qualidade das traduções recentes nos Estados Unidos, não deixamos de ser uma literatura "menor." Como alcançar a posição de destaque na República Mundial das Letras que a literatura brasileira merece? Há solução? Certamente, não há soluções imediatas, nem tampouco fáceis. A única coisa que se pode fazer para uma maior divulgação no exterior do melhor de nossa produção literária é seguir trabalhando. Como disse Silviano Santiago, não podemos silenciar, mas sim "[marcar] nossa presença" e nossa diferença (Santiago, 2000, p. 17). Ou seja, persistência — o que implica, afinal, um certo otimismo, implica teimosia, implica resistência.

REFERÊNCIAS

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Submetido em 11/07/2019; Aceito em 03/08/2019


Notas

[3] A tradução dos textos em inglês é minha, exceto quando indicado.

[4] Nos Estados Unidos, têm aparecido somente projetos isolados como, por exemplo, o artigo de Earl E. Fitz sobre a influência de Machado de Assis em John Barth, ou o ensaio de Richard Jackson sobre a importância do Brasil na ficção de Gaiy Jones e em Beloved, de Toni Morrison. Veja-se também o ensaio de José Luís Jobim publicado em European Review, "Literary and Cultural Circulation: Machado de Assis and Théodule Armand Ribot" (v. obras citadas).

[5] Tampouco é incomum a publicação nos Estados Unidos de obras brasileiras em pequenas tiragens e com pouca circulação, como aconteceu com os romances de Lygia Fagundes Telles, Ciranda de pedra (1954; The Marble Dance, 1986) e As meninas (1973; The Girl in the Photograph, 1982). The Girl in the Photograph, na tradução de 1982, de Margaret A. Neves, foi reeditado em 2012 pela Dalkey Archive, com introdução de Earl E. Fitz.

[6] Três exemplos: Geographies of Home (1999), de Loida Maritza Perez, nascida na República Dominicana; The Name Sake (2003), de Jhumpa Lahiri, nascida em Londres, filha de imigrantes indianos; e Americanah (2013) da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Dois destes romances foram ou estão sendo adaptados para o cinema. Vale lembrar também obras anteriores como o romance The Joy Luck Club (1989) da chinesa-americana Amy Tan, também adaptado para o cinema.

[7] A partir da década de 1970, encontramos um grande número de obras de ficção brasileiras que descrevem as experiências das personagens em outros países, muitas vezes refletindo as experiências pessoais dos próprios autores, em narrativas que ressaltam o deslocamento afetivo e o não-pertencimento do sujeito, como O beijo não vem da boca (1985) de Ignácio de Loyola Brandão, O mar nunca transborda (1995) de Ana Maria Machado, e Berkeley em Bellagio (2002) de João Gilberto Noll. Sem dúvida, essa temática oferece outra maneira de abordar a questão da internacionalização da literatura brasileira.

[8] Agradeço ao Professor Dr. Luciano Tosta, cujo questionamento crítico me encorajou a repensar minha perspectiva sobre Frances de Pontes Peebles.

[9] O site chama-se Three Percent porque somente 3% dos livros publicados nos Estados Unidos são obras em tradução.

[10] Os primeiros dez países são: França, Alemanha, Espanha, Itália, Japão, Suécia, Rússia, China, Argentina e Noruega.

[11] Ver, entre outros, os estudos críticos de Robert Patrick Newcomb, Nossa e Nuestra América: InterAmerican Dialogues (2012), e de Adam Joseph Shellhorse, Anti-Literature. The Politics and Limits of Representation in Modern Brazil and Argentina (2017).

[12] Ver, por exemplo, as antologias Ancestral House: The Black Short Story in the Americas and Europe e Moving beyond Boundaries. International Dimensions of Black Women's Writing, ambas publicadas em 1995.

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