Cultura e literatura na América-Latina, o espaço cultural amazônico e a literatura indígena

Cultura e literatura na América-Latina, o espaço cultural amazônico e a literatura indígena

Isabel Maria Fonsêca[*]

Fábio Almeida de Carvalho[**]

[*]Mestre em Literatura e Cultura Regional e professora do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena.

[**] Doutor em Letras/UFF; pesquisador em produtividade 2/CNPq; professor do Instituto Insikiran, PPGL, PPGSOF/UFRR. Atualmente, faz estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da UFF.


RESUMO:

O artigo discute as literaturas americanas enquanto parte do processo de expansão da cultura europeia e algumas peculiaridades das formas de manifestações literárias amazônicas dentre as manifestações das culturas literárias latino-americanas, a partir não apenas de sua geografia, fauna, flora, mas também da presença humana que o habita e a ele dá forma. Nesse percurso, dá ênfase às formas de permanência e atualização das textualidades indígenas e ao modo como grupos bastante diversos de escritores tem encorpado uma tradição discursiva que paulatinamente se adensa.

Palavras-chave: literaturas americanas; literatura amazônica; literaturas indígenas


ABSTRACT:

The article discusses American literatures as part of the process of expansion of European culture, as well as some peculiarities of the forms of Amazonian literary manifestations among the manifestations of Latin American literary cultures, based not only on their geography, fauna, flora, but also on the presence of the people who live in the amazonian region and give it form. In this way, it emphasizes the forms of permanence and updating of the indigenous textualities and the way in which quite diverse groups of writers have filled a discursive tradition that gradually expands.

 Key-words: American literatures; Amazonian literature; Indigenous literatures


[...] Todo pensamento que renuncia à unidade exalta a diversidade. E a diversidade é o lugar da arte.
Albert Camus

A América é o país do porvir.
G. W. F. Hegel

O presente trabalho discute algumas peculiaridades das formas de manifestações literárias amazônicas dentre as manifestações das culturas literárias latino-americanas. Esse é o ponto de partida e expansão do ensaio que segue e que tem o objetivo de discutir alguns aspectos da cultura literária amazônica como reflexo não apenas da geografia, da fauna, e da flora, mas também da presença humana que habita e dá forma ao espaço. Grupos bastante diversos de escritores, que em comum utilizam de diferentes formas as fontes textuais indígenas em suas criações, têm encorpado uma tradição discursiva que paulatinamente ora ainda mais se adensa.

Antes porém de enfrentar a questão, é importante tratar do processo de ampliação e de democratização do conceito de cultura, cuja radical transformação, ocorrida a partir das primeiras décadas do século XX, foi fundamental para o processo de aprofundamento tanto dos estudos sobre as particularidades do espaço cultural e literário latino-americano, quanto sobre as especificidades da cultura literária amazônica. Fundamental também para a compreensão mais profunda sobre as particularidades e a articulação interna da diversidade sociocultural desses espaços.

Para José Luís Jobim (2013, p. 1) “há diversos modos de ver o passado na história literária”. Vários podem ser, portanto, os princípios empregados nos modos de ver e de compreender o passado. Reconhecendo a validade desse princípio teórico, não podemos negar que, quando falamos de América Latina, tanto da cultura, em geral, quanto da literatura, em particular, fica difícil esquecer que estes são fenômenos que se materializaram como manifestações de uma herança que também remonta às origens da latinidade. Ou seja, difícil, senão impossível, negar a herança da expansão colonial e cultural europeia. A América Latina tem de ser pensada “na condição de herdeira linguística e cultural da Europa, teve sempre suas literaturas entrelaçadas com as do outro lado do Atlântico”. (Perrone-Moisés, 2007, p. 11)

Tratando do fenômeno histórico da expansão colonial e do legado latino para a América, o historiador César Fernández Moreno estabelece que a América Latina representa o quarto ciclo ou “o quarto anel” de uma prodigiosa expansão histórica e cultural de longo prazo:

[...] a expressão América Latina continua sendo notoriamente imprecisa. O que é a América Latina? Em primeiro lugar, por que latina? Toda a latinidade começou no Lácio, pequeno território adjacente à cidade de Roma, e foi crescendo em círculos ao longo da história: primeiro, até abraçar o conjunto da Itália, ampliando-se logo até a parte da Europa colonizada pelo Império Romano, restringindo depois aos países e zonas que falaram línguas derivadas do latim, e transportando-se por fim ao continente americano que esses europeus descobriram e colonizaram. Deste modo, a América Latina viria a ser o quarto anel desta prodigiosa expansão (MORENO, 1979, p. XVI).

Visto desse modo, o complexo colonial porque passou a cultura latino-americana faz parte de um lento e contínuo processo de expansão cultural europeia, cuja abrangência temporal e geográfica perfilha aquilo que reconhecemos como América Latina e, por consequência, como cultura e literatura latina. Assim, estas devem ser entendidas enquanto fenômenos que tomam forma a partir da expansão comercial, que se deu da Europa para as colônias.

As noções e conceitos empregados para construir os discursos sobre cultura e, consequentemente, sobre literatura na América Latina, têm, desse modo, seus sentidos urdidos num processo de longa duração. E estes processos, no que concernem à cultura e à literatura latino-americana, podem ser entendidos, conforme José Luís Jobim (2013, p. 17), na qualidade de “derivações europeias nas Américas”.

Entretanto, se as culturas americanas são em larga medida “derivações”, também diversas são as formas de interpretar as derivações da cultura europeia no contexto do Novo Mundo. Para Antonio Houaiss (2011, p. 268) toda derivação significa (e implica) “desvios” e “afastamentos”. Ou seja, toda derivação pressupõe, além de desvios e de afastamentos, aproximações, dentre outras possibilidades que a realidade impõe aos fenômenos da vida. E dessa dinâmica cravada pela contradição derivada do passado colonial, que legou (e ao mesmo tempo negou) culturas, e das mudanças que as diferentes manifestações culturais sofreram, ao entrar em contato no contexto do mundo novo, posições divergentes e complementares surgiram e se afirmaram no campo teórico e interpretativo da questão.

Num extremo desse campo de forças estão posicionados os que defendem uma eterna e constante dependência cultural latino-americana em relação à Europa; no outro, se posicionam os que defendem a autonomia cultural e literária geral e irrestrita da América. E, no meio, ficam posicionados os pensadores que concebem a situação como um continuum ou um processo em que dependência e autonomia são conceitos que se completam e se equilibram no quadro dessa balança cultural.

José Luís Jobim anota que um dos principais defensores do ponto de vista que enfatiza a herança latina e a derivação europeia nas Américas é Ernest Robert Curtius, que defende que “embora nenhum período da história da literatura europeia fosse tão pouco conhecido e examinado como a literatura latina da alta e da baixa idade Média, uma visão histórica da Europa deixa claro que precisamente esse período ocupa uma posição-chave, como vínculo entre a Antiguidade em declínio e o mundo ocidental que se vai formando lentamente”. (Curtius, 1996 [1948], apud JOBIM, 2013, p. 18). No lento movimento de formação desse mundo novo, surgiu a América e sua cultura.

Outro exemplo dessa chave de abordagem, também apontado por José Luis Jobim, é o posicionamento do intelectual dominicano Pedro Enrique Ureña, que publicou, em 1928, a renomada obra Seis ensayos en busca de nuestra exprésion. Neste livro, Pedro Enrique Ureña defende “a tese de uma filiação latina de longo prazo e com centros geograficamente diferentes, mas sempre europeus”. (Jobim, 2013, p. 18). Segundo Martínez (1979, p. 602), Ureña enceta o desenvolvimento de um ciclo de questionamentos mais rico, profundo e sistemático quanto à essência de cada uma das nacionalidades culturais do continente latino-americano. O intuito era de reproduzir e explorar as peculiaridades de nosso caráter e dos nossos costumes, principalmente dos “populares que tinham mais sabor e uma qualidade mais pitoresca”.

Essa posição crítica é bem diferente de outras quanto às questões constantemente sustentadas, durante o século XIX, sobre as qualidades do ser, da condição e do destino da América Latina. Nesse sentido é que aos poucos foi ganhando força e visibilidade a ideia de região, não mais apenas como geografia contínua, mas, sobretudo, como zonas de traços culturais comuns, que extravasam a geografia de países independentes. Isso permitiu pensar, numa perspectiva mais ampla, na existência de uma comunidade latina.

Ainda segundo Martínez, todo esse complexo de circunstâncias peculiares: o saber-se prolongamento americano de culturas europeias, acrescido de outras culturas migradas, bem como o reconhecimento das raízes indígenas de diferentes espessuras e profundidades e, ainda, sentir-se parte de uma comunidade formada por países díspares, mas análogos em muitos aspectos, poderia explicar as insistentes questões que os intelectuais americanos costumam fazer-se, ainda hoje, sobre a identidade, a originalidade e a natureza da cultura e da literatura latino-americana.

No entanto, antes de abordar este ponto da questão, que diz respeito às formas como as culturas indígenas influenciam o modo de conceber as particularidades das culturas latino-americanas, cumpre apresentar, mesmo que de forma concisa, como aconteceu o processo de ampliação e de democratização do conceito de cultura. Esse procedimento é importante para compreender o pensamento que ajuda a construir a realidade cultural do continente latino-americano, como um todo, e da região Amazônica, em particular

Assim, no interior das discussões desenvolvidas ao longo do século XIX sobre o que é e como se constitui a América Latina, a ideia da América Latina como um espaço de cultura coesa e com certa homogeneidade cultural e política era, então, tida como um fato, ou pelo menos como um fado preponderante. Nessa fase do desenvolvimento da questão, o fator “unidade” política e cultural do continente foi repetido pelos discursos produzidos sobre o extenso espaço geográfico latino-americano. A América Latina assumia, dessa perspectiva, sob a aparência da unidade, o traço de sua individualidade como continente.

Contrariamente a essa corrente predominante no século XIX, que defendia a coesão e a unidade cultural latino-americana, os estudos realizados, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX, foram modificando aos poucos essa ideia de cultura comum, coesa e unificada do continente latino-americano. Em seu lugar, aos poucos foi se impondo a noção de que pensar a América Latina como “cultura única” obedecia “mais um desejo político”, e, acrescentamos, um desejo ideológico, do que propriamente a uma realidade culturalmente imaginada (Pizarro, 2005, p. 59).

Nesse contexto, foram aparecendo pensadores que questionaram essa concepção teórica, dentre os quais podemos citar nomes como o do americanista César Fernández Moreno (1979), o do historiador Florival Cárceres (1980); mas também críticos e historiadores literários como a brasileira Zilá Bernd (2005), e a chilena Ana Pizarro (2005). Em conjunto, estes autores são exemplos de pensadores que discutem a questão e que ajudam a desconstruir as ideias de uma suposta unidade e coesão do espaço cultural e literário latino-americano.
Sendo assim, a ideia de uma cultura coesa e uniforme foi se desfazendo diante do avanço do conhecimento da realidade, que permitiu compreender o fato de que a América Latina se caracteriza muito mais pela diversidade e pela pluralidade interna do que por sua suposta unidade. A diversidade do Continente passou, então, a ser apontada como o seu traço mais marcante. Depois dos anos 1970, os discursos que constroem o imaginário sobre o espaço latino-americano, tanto em termos políticos quanto em termos culturais, se alterou de forma considerável. Trata-se, antes, nesse feitio, conforme menciona Rubén Saguier (1979, p. 3), de uma “cultura mestiça” por definição histórica. Afinal, se ela é resultado da inserção e da expansão ibérica inicial, bem como da sua suplantação progressiva, ela também foi alterada de maneira fundamental pelas múltiplas culturas ameríndias com que entrou em contato e pela posterior agregação do importante elemento africano. Além disso, também pelos sucessivos aluviões migratórios, que marcam a história das Américas nestes cinco séculos desde o seu descobrimento e da sua conquista.

Diante desse quadro, Saguier (1979, p. 4) refere-se à América Latina como: “um lugar privilegiado do encontro étnico-cultural”. Ou seja, a região é concebida como um lugar de encontro e, como não poderia deixar de ser, de mistura de culturas diversas. Mas o autor adiciona que, além de reconhecer isso, é preciso também determinar a especificidade desse processo de mistura. Afinal, merece atenção “o encontro de culturas substancialmente diferentes, sem dúvida o maior que se registra na era cristã. E um dos mais dramáticos [...], no qual um punhado de europeus, graças à superioridade técnica que significava ter as armas de fogo, a roda e os cavalos, se impôs a centenas de milhares de americanos, muito deles já organizados em estados poderosos”.

Ao mesmo tempo em que se impunha a cultura racionalista do Renascimento, ela se punha também aqui em contato com o universo mágico dos índios americanos. Esse encontro, definido, de forma um tanto grosseira, como o encontro entre a magia e a razão, parece explicar em parte o caráter conflituoso desse processo histórico e cultural. Assim, a complexidade desta relação, por meio da qual foi vivida a experiência cultural latino-americana, forneceu tanto o terreno poeirento quanto os nutrientes nos quais se misturaram colonização, resistências e mestiçagens, confluindo para a criação de uma historicidade e de uma identidade próprias da América Latina.

Conforme o mesmo Saguier, dada a diversidade de componentes, um problema latino-americano essencial foi, e continua sendo ainda nos dias de hoje, definir sua identidade cultural. Esta é uma situação que as literaturas latino-americanas refletem, uma vez que são construídas por meio de línguas e de linguagens de “empréstimo”, e que concretizam conteúdos que não são exclusivamente seus, dentro de um contexto político não unificado, para não dizer diversificado.

A procura dessa identidade se intensifica e o conflito torna-se cada vez mais evidente, principalmente em certos momentos críticos de tomada de consciência, a saber: na emancipação romântica, no modernismo, no romance social e, ainda, na literatura de nossos dias. Contudo, essa maneira renovada de interpretar o espaço latino-americano é ancorada, por um lado, segundo Pizarro (2005, p. 59), na constatação da existência de matrizes humanas e culturais que são muitas e marcadamente distintas entre si, e por outro, em função da compreensão mais profunda da evolução histórica de diferentes áreas ou zonas culturais que formam a América Latina. 

Ou seja, a ideia é centrada nas diferenças das áreas culturais que pluralizam e articulam o perfil interno do Continente e que, por consequência, se organizam diferentemente por causa das particularidades históricas e das diferenciações da sua ocupação. Pizarro afirma que

Los latinoamericanistas hemos trabajados en direcciones diferentes a lo largo del siglo XX, en que los estudios sobre la zona cultural latinoamericana adquirieron su perfil y fueron definiendo su objeto. Durante la segunda mitad del siglo XX y fundamentalmente a partir de los años setenta, se comenzó com lentitud a trabajar en base a la percepción de la diversidade del continente, centrada en algunas áreas que pluralizan su perfil internamente, por una parte en matrices culturales distintas, por outra en función de la evolución histórica de éstas (PIZARRO, 2005, p. 59).

Pizarro nota como nas últimas décadas do século XX testemunhou-se de forma mais contundente a compreensão sobre as diversas perspectivas culturais da América Latina. Trata também, da forma como se deu o despertar de um interesse de estudos em diferentes áreas do conhecimento, que vão desde a etnografia e a antropologia, passando pela sociologia das formas de vida das populações nativas, assim como de suas expressões artísticas e, também, literárias. E foi, enfim, a partir da compreensão de que não existe uma cultura, mas que existem muitas e variadas “culturas” na região, que se abriu espaço para dar tratamento mais equilibrado sobre as diferenças culturais que compõem e partilham o espaço latino-americano.

Nessa concepção, a América Latina passa a ser concebida não mais como uma região de cultura una e coesa, mas antes como “uma realidade plural e ao mesmo tempo articulada” (Pizarro, 2014, p. 9 e segs). A autora acrescenta que a pluralidade, tanto horizontal – das áreas culturais distintas –, como vertical – dos diferentes momentos histórico-culturais –, geraram sistemas políticos e culturais que são diferentes e superpostos, ao mesmo tempo, uma vez que estão relacionados diretamente às heranças de sua colonização. 

Assim, alguns aspectos relevantes são apontados por Pizarro como impulsionadores da renovação da “mirada cultural” que se tinha tradicionalmente sobre a América Latina: para ela, o primeiro, e fundamental, foi o surgimento de uma concepção de cultura mais ampla e democrática, firmada no final do século XX, na qual a noção de cultura não se restringe mais somente a uma noção de atividade própria das elites. Essa nova concepção tem a ver, desde então, com a noção de cultura como “projeção de sentido do que vamos fazendo criativa e cotidianamente”. Assim, nesta acepção, “todos fazemos cultura: quando comemos, nos vestimos, cantamos, dançamos, desenhamos”. Enfim, fazemos culturas continuamente, quando cotidianamente fazemos coisas e, por meio delas, também construímos sentidos para a vida.

Esta transformação conceitual é importante porque permitiu ampliar bastante a gama de sujeitos culturais considerados como tais pelo pensamento teórico e crítico. Além do mais, isso também permitiu colocar em evidência aquilo que antes se negava, ou seja, a diversidade social e a pluralidade cultural do continente latino-americano. E aqui vale acrescentar que esta noção muito mais democrática do conceito de cultura ganha forma e força a partir, sobretudo, da nova antropologia e da nova sociologia, mas que abarca todo o campo das ciências sociais, desde o começo do século XX.

No entanto, como tudo mais no desenvolvimento do processo histórico das sociedades, essa ampliação conceitual não acontece de forma uniforme e espontânea, uma vez que é fruto de muitas batalhas intelectuais levadas a cabo por diferentes setores sociais, que vão ocupando vários espaços e pouco a pouco transformando tanto a realidade quanto a compreensão dela. No caso, essas lutas aconteceram e ocuparam, sobretudo, os espaços dos discursos acadêmicos e intelectuais, que foram e vão lentamente amadurecendo e aprofundando as pesquisas sobre as muitas realidades que abordam e analisam.

Atentemos para o que ponto de vista de Pizarro, no trecho abaixo:

Recordemos los movimientos de los grandes sectores en situación de subalternidad que marcan el siglo y que dan lugar a Revolución Rusa por exemplo o en nuestro continente a la Revolución Mexicana, a la construcción social e ideológica de la clase obrera en las primeiras décadas, a los movimentos indigenistas y de revindicación afro-americana. El siglo XX entero es un continuum que apunta a la democratización. Este processo es natural que se democratice también el concepto de cultura. (PIZARRO, 2014, p. 10).

Como podemos notar, foi em decorrência da especificidade dos desdobramentos da história, em diferentes regiões do Continente, que diferentes povos e diversos atores sociais foram, pouco a pouco, se afirmando como sujeitos históricos e sociais. E, dessa maneira, foram também contribuindo para a alteração do modo de entender a pluralidade das formas e concepções de vida no solo latino-americano.

Um segundo aspecto importante apontado pela autora é, precisamente, o interesse dos estudos, no final do século XX, sobre o perfil interno das diferentes culturas que partilham do espaço latino-americano.  Assim acontece porque, se se admite, desde então, cultura como um sistema de projeção de sentidos, não há como não se abrir espaço para interrogar e levantar questões que remetem a quais são os mecanismos de construção de sentidos. Do mesmo modo, e por causa disso, novas questões foram sendo formuladas sobre quais são as dinâmicas próprias destes mecanismos e sobre quais são os seus modos específicos de funcionamento.

Apesar dos avanços, ainda há muito para se falar e se refletir a respeito dessas instigantes questões. Porém, o conteúdo e o sentido do que se pode dizer e afirmar sempre dependerá do lugar no qual nós estamos situados para realizar nossas observações sobre as conformações e as funções destes organismos, no desenvolvimento das formas de organização do mundo.  E, nesse sentido, podemos retomar e atualizar o conteúdo do texto que serve de epígrafe para este trabalho, de autoria de Hegel, que afirma que a América é, ainda na atualidade, o país do porvir.

Contudo, para falar de cultura na América Latina é necessário realizar um duplo movimento, com vistas a garantir um deslocamento que garanta certa transnacionalidade cultural, como prefigura Pizarro:

Para falar da cultura na América Latina é necessário um deslocamento. Não podemos falar dela de uma perspectiva chilena, argentina ou venezuelana. Para tratar de suas regiões culturais, como historiadores, precisamos de um duplo movimento: por um lado, garantir o protagonismo fundamental das regiões ou sub-regiões culturais que a constituem, percebendo o perigo que frequentemente  ameaça uma retórica de pertencimento; por outro, com as dificuldades mas com a abertura de perspectiva que oferece o espaço do desenraizamento, deslocar-se do ethos nacional, para localizar-se no espaço transnacional latino-americano, único foco possível para que os primeiros planos, os planos gerais e a grande angular se combinem numa justa perspectiva (PIZARRO, 2006, p. 37).

Logo, podemos falar e situar, desse ponto de vista, de uma pluralidade de áreas culturais diferenciadas entre si, tendo como norte critérios históricos, sociais e geográficos. É com base nestes recortes culturais e nas pesquisas realizadas por estudiosos de muitos países[1], que podemos falar, dessa maneira, da existência e da co-existência de culturas diversas, como a cultura caribenha, a cultura mexicana, a brasileira, a do cone-Sul, a andina, dentre outras possibilidades de abordagem do problema em tela.

Da mesma forma é possível também tratar da cultura amazônica de uma perspectiva que abrange uma configuração mais ampla que as unidades nacionais e que engloba vários países autônomos entre si. E por muitas razões essa constitui uma área que merece uma abordagem diferenciada das demais, dadas a configuração específica de seu amplo espaço, de sua geografia e de sua história, bem como de sua herança e, enfim, de sua constituição peculiar. E, por mais que se cultive o sonho da unidade latino-americana, como se pode negar a natureza da diferenciação desse espaço tão particular que é a Amazônia?

Essa mesma lógica permite também compreender a existência de um tipo de cultura de “fronteiras externas”, como é o caso das diferentes culturas que constituem as Antilhas e que constituem, também, a Amazônia e, ainda, a região de nosso interesse mais imediato: a região cultural circum-Roraima, tal qual veremos mais adiante. Mas o importante por hora, como podemos depreender dessa breve descrição do processo histórico-cultural, é que há distintas formas de observarmos a pluralidade existente no continente latino-americano, sob o ponto de vista que Pizarro (2014, p. 11) trata como “horizontal”.

De outra perspectiva, que Ana Pizarro designa como “vertical”, vale ressaltar a existência de um terceiro aspecto, que diz respeito à configuração cultural que pode ser observada do ponto de vista da realidade social. Esta resulta, de forma comum e transversal, da distinção das diferentes áreas geográficas do continente. Assim sendo, não podemos deixar de admitir a existência de sistemas culturais particulares e diferenciados, originados de uma história comum de exploração, mas diversa em suas formas e em sua realidade concreta.
Assim, em termos de literatura, Pizarro (2014, p. 11 e 12) destaca que a América Latina tem se caracterizado pela coexistência de quatro sistemas culturais distintos e complementares: de um lado, ela destaca a existência de um sistema tradicional erudito, em decorrência da existência fortemente notada de uma cultura tradicional, produzida pelas elites. Trata-se de uma literatura escrita em línguas metropolitanas (espanhol, português, inglês, etc.), própria dos livros, que se imprime e se vende em livrarias, e que se estabelece em relação com as classes alfabetizadas e letradas – com as classes dominantes do Continente. Em geral, esse veio da produção cultural tem sido o mais valorizado dentre todos os que se manifestam no espaço americano.

Por outro lado, e em contraste, não se pode negar a existência de um sistema cultural próprio dos setores populares. Este deriva das chamadas literaturas orais, cuja existência pode ser constatada, com variações, em toda a extensão da América Latina. Este sistema literário, cunhado e difundido por meio da oralidade, desfruta no Brasil, por exemplo, como em outros países do Continente, de grande vigor e segue, ainda na atualidade, existindo como uma forma fundamental de criar, de transmitir informações e de construir sentidos. E é nessa condição que esta pode ser apontada como uma forma de manutenção importante da memória coletiva das populações americanas.

Para Luis da Câmara Cascudo, um dos mais renomados estudiosos da cultura popular brasileira, a literatura oral do Brasil reúne todas as manifestações da “recreação popular, mantidas pela tradição” e, dessa sorte, se compõe “dos elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual. Indígenas, portugueses e africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos, cantigas de embalar, anedotas, poetas e cantores profissionais”. Ressalta ainda que, diante dos estudos da documentação do Brasil quinhentista, relatórios, ânuas,  exposições e cartas dos jesuítas, o indígena

[...] é um motivo a resolver em sua difícil colocação dentro do quadro colonial. Registrar-lhe a vida intelectual, as manifestações de sua inteligência, impressionada pela natureza ou a vida, seria colaborar na perpetuidade do Satanás. Só sabemos do indígena do século XVI, de sua existência normal, modos de agir, pensar, resolver, cantar, a exposição alarmada dos catequistas, arrolando os pecados, o que devia ser, urgentemente, corrigido (CASCUDO, 1984, p. 29). 

Dentre as específicas dificuldades de abordagem das formas da literatura oral, a compreensão das produções indígenas se apresenta como um problema a parte, porque nelas se destacam as peculiaridades de que são ainda insuficientemente registradas e difundidas, pouco conhecidas e estudadas e, por consequência, ainda muito mal compreendidas.

Pizarro também afirma que, além de um sistema cultural erudito produzido pela elite e de um sistema cultural próprio dos setores populares, há o sistema cultural indígena, de que trataremos adiante. Por enquanto, é necessário pelo menos dizer que, no âmbito literário, somente há poucas décadas tem se começado a publicar textos de escritores indígenas no Brasil e, como não poderia deixar de ser, a estudar, de forma mais sistematizada e profunda, o sistema cultural e literário dos povos indígenas na América Latina.
Para a estudiosa chilena, este constitui um campo à parte, que merece autonomia como objeto de estudo e de especulação. E assim acontece porque, conforme Pizarro (2014, p. 12) já podemos contar com valiosos estudos realizados por grandes investigadores, como existem no México e, em especial, no Peru. Também, acrescenta ela, já se pode contar com estudos expressivos realizados no Chile, uma vez que, há poetas e escritores indígenas que hoje produzem textos classificados em diferentes gêneros literários. Estes, segundo acrescenta, já se situam no sistema cultural ilustrado – o dominante, da elite.

E, assim também acontece com escritores de outros países, que são de grande importância para os estudos e a compreensão das literaturas indígenas de países como a Guatemala, o Equador, o Paraguai, a Bolívia, a Venezuela e também o Brasil, onde, grosso modo, os escritores indígenas produzem textos classificados em gêneros ligados ao campo da “literatura infantil”.

Em geral, são estes escritores que, por exemplo, criam a possibilidade de uma continuidade discursiva destas literaturas que aos poucos vão rompendo com o pensamento que predominava há décadas e que defendia a ideia um tanto “torta”, para não dizer mesmo errada, de que estas literaturas, de grande poder e valor simbólicos, existiriam somente em tempos passados. Quer dizer, em tempos outros, remotos, e que não existem mais. Antes, e sem sombra de dúvida, podemos afirmar que a “invisibilidade” desses textos tem a ver com os processos sociais e discriminatórios voltados para o mundo e as formas do pensar indígenas. Resultado, enfim, da concepção de mundo e dos projetos eurocêntricos das elites.

Por fim, um quarto sistema cultural, para ultimamos de forma sucinta esta questão, diz respeito à chamada cultura de massa que surge, fundamentalmente, a partir do século XX, e que tem a ver com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Diferenciado dos sistemas anteriores, a cultura de massas também tem um sistema e uma estética própria, bem como um público próprio e amplo. Além disso, apresenta formas de simbolização que tem a ver essencialmente com o desenvolvimento capitalista e com as necessidades de mercado da indústria publicitária.

Mas, apesar disso, é importante perceber e lembrar que esses sistemas culturais listados não são fixos e estanques, uma vez que se relacionam entre si e se transformam contínua e mutuamente. E também é importante lembrar que cada um dos sistemas culturais aqui mencionados tem seus próprios emissores, seu próprio público, bem como sua própria estética. E, ainda, que cada um obedece às necessidades simbólicas de diferentes grupos sociais e que todos eles têm a ver, ao mesmo tempo, com o que constituímos, sob o ponto de vista social e cultural, como uma sociedade heterogênea e múltipla. E dessa forma, a pesquisa sobre a cultura e sobre a literatura latino-americana vai-se aprofundando e, consequentemente, os discursos sobre o modo de compreender o continente vão-se modificando.

O certo, é que cada um desses sistemas culturais-literários, ao longo do século XX, adquire uma identidade mais clara e evidente e, ao mesmo tempo, movimentos próprios. Eles respondem, assim, a distintas instâncias, configurações e interesses de setores diferenciados da sociedade, que fundam imaginários, linguagens, interesses e estéticas. Estes sistemas dão forma à pluralidade das manifestações vivida tal como ela se apresenta no espaço geográfico-cultural latino-americano.

Desse modo, melhor não falar de uma conformação discursiva una e coesa, uma vez que o mais justo é falar que a cultura latino-americana vai se articulando a partir de várias conformações discursivas: a da elite, por um lado, e das culturas populares, indígenas e de raízes africanas, ou asiáticas, por outro. Além disso, não podemos esquecer a presença forte da cultura de massa. Todos esses sistemas produtivos de cultura, que se estruturam a partir de cosmovisões diversas, entraram em contatos de formas distintas, desde o começo do processo de colonização. Neste contexto, desde o início do século XX, a percepção do fenômeno da existência de outros sistemas culturais, que não o da elite, vem cobrando a devida atenção dos pesquisadores e estudiosos do fenômeno.
Assim, neste espaço discursivo amplo e em conjunto, que expressa fragmentação e tensão próprias, esses diferentes e múltiplos sistemas culturais configuram as expressões culturais e, por consequência, literárias próprias da América Latina. Dessa maneira, a situação discursiva na América Latina se mostra com um dinamismo maior que o que se observa em outros lugares no mundo, como é o caso de alguns países europeus durante quase todo o século XX, conforme Pizarro (2014, p. 15 e 16). Ou seja, a mistura, a miscigenação cultural passa a ser valorizada como fenômeno. Pizarro (2005, p. 59) afirma que, assim como foram se desenvolvendo os estudos sobre os diferentes sistemas culturais que organizam internamente a América Latina, foram se delineando, concomitantemente, as diferentes áreas culturais que existem no espaço latino-americano.

Observarmos, pois, avanços importantes nos estudos sobre, por exemplo, a área andina, mesoamericana e do Atlântico Sul, assim como, nos últimos anos, se têm delineado e avançado, também, importantes estudos sobre a área cultural designada de área Caribe e sobre o espaço cultural brasileiro, que aos pouco vai se incorporando ao conjunto latino-americano. Sobre este último, vale acrescentar o seu histórico isolamento em relação às demais áreas culturais latino-americanas – consequência de uma barreira ou pelo menos de uma diferenciação linguística.

Não obstante, o espaço cultural amazônico segue sendo, ainda nos dias atuais, pouco considerado no âmbito dos estudos culturais e literários latino-americanos. Dentre outras explicações para esta situação de pouca atenção dada à área cultural amazônica talvez se possa argumentar que, durante muito tempo, o isolamento, decorrente das dificuldades de acesso à região, e o imaginário coletivo originário de diversos mitos relativos à barbárie existente na maior floresta do mundo impediram o desenvolvimento de estudos culturais mais detalhados e profundos sobre esta área. Mas o que não se pode deixar de considerar é que o interesse desproporcional pelo conhecimento geopolítico da região recalcou, pouco a pouco, mas durante muito tempo, o reconhecimento de sua complexa unidade no plano simbólico.

Todavia, as investigações atualmente realizadas mostram que a Amazônia não é somente e exclusivamente um solo indígena e que, ao contrário do que se pensava e propagava, os sujeitos sociais que a ocupam são múltiplos e distintos e que o seu imaginário dá conta de uma turbulenta história pela qual passou e passa essa área. Essa nova compreensão da “ecologia humana” e da realidade amazônica tem permitido ampliar a gama de sujeitos culturais considerados legítimos e, ainda, pôr em evidência a região em termos de sua diversidade tanto social, quanto cultural. (Pizarro, 2005, p. 60).

Considerando isso, a Amazônia é agora interpretada, dentro de sua riqueza e de sua diversidade, não somente mais em sua complexidade geofísica e ecológica, como em geral era figurada, senão também, por sua extraordinária complexidade cultural. E o que temos apreendido é que dentro dessa diversidade e riqueza cultural amazônica há um fio condutor discursivo e imaginário dinâmico, ou seja, sob essa diversidade, há uma unidade simbólica, uma coesão cultural, que une e que, ao mesmo tempo, distancia a heteronímica configuração da grande floresta amazônica. 

Na Pan-Amazônia, confluem diferentes estados soberanos: Brasil, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru, Bolívia, Suriname, Guiana e um Departamento Ultramarino da França. E as formas culturais comuns dos povos da floresta têm a ver com a vida de suas populações em um dos territórios mais vastos e diversos do continente latino-americano. Trata-se, portanto, de uma região que tem gerado historicamente formas diferentes de relação do homem com a vida e que significa também formas diferentes de produções dos imaginários sociais. Afinal, múltiplas e diferentes são as línguas indígenas, caboclas, ribeirinhas e metropolitanas que se cruzam neste extenso e acalorado espaço.

Isto tudo, segundo Pizarro, retomando Rosa Acevedo e Edna Castro:

[...] apuntan sin embargo a la constitucíon de un imaginario con articulaciones comunes. Estas articulaciones tienen que ver tradicionalmente con una vida en diálogo intenso con el medio ambiente. Allí el tiempo individual y social está regulado por el tiempo de las aguas, los ciclos de río, el período de la caza, la recolección, la pesca, la horticultura. Allí la subida e el descenso de los rios regulan los hábitos alimentícios, la dislocación familiar, la organización del trabajo (PIZARRO, 2005, p. 61).

Dessa forma, a Amazônia, segundo Pizarro entende, “é uma construção discursiva que se caracteriza, primeiramente, por um imaginário múltiplo, intenso e que mantém articulações comuns”. Isto é, apesar das notadas diferenças geográficas e históricas, os habitantes dessa imensa região compartilham as formas de relação com o mundo a sua volta. E, ainda vale acrescentar nesse ponto, que esse complexo simbólico-cultural tem sido chamado, pela literatura especializada, de “culturas da selva tropical”.

Este caso pode ser constatado, por exemplo, segundo a mesma autora, pela existência de personagens tão vivos e comuns como o Curupira, o Boto, a Boiúva ou Boiúna e o mito compartido da Cobra Grande, um verdadeiro mundo de “encantamentos” com muitas e diferenciadas expressões. Todos estes mitos e personagens são possíveis de serem encontrado em diferentes línguas e em versões diferentes entre quilombolas, ribeirinhos e entre diferentes grupos indígenas da região. Essa constatação comprova que, apesar das diferenciações, há elementos comuns a todas as áreas e esferas dessa região.

Dessa sorte, a Amazônia, como espaço físico, humano e cultural, dispõe de elementos que atuam como dispositivos simbólicos, estabelecendo conexões no imaginário social da região. Isso permite construir, a partir da relação que se estabelece com o cenário maravilhoso com que se convive, um universo mítico, que responde bem às carências, e também às expectativas e às necessidades, tanto físicas como espirituais, daqueles que nela habitam. O resultado disso tudo é a elaboração de textualidades com a presença de elementos em comum e cujas relações e manifestações representam e concretizam as formas do imaginário da sociedade amazônica. Ou seja, por essa perspectiva, a cultura da Amazônia é estruturada, sobretudo, pela imaginação.

Assim, diante desse potente universo simbólico amazônico, como talvez não exista e nem se veja em outros lugares do continente, é possível falar, como ensina João de Jesus Paes Loureiro (Apud Pizarro, 2005, p. 73), do “caráter estético do imaginário popular amazônico”. E assim, tratar de “uma poética do imaginário amazônico” que, segundo este autor, é “produto da relação com a vida, com o rio, com a selva, do isolamento e do devaneio”, que mobiliza este imaginário e que se aponta como “um verdadeiro universo povoado de seres, signos, fatos, atitudes que podem implicar múltiplas possibilidades de análise e de interpretação”. Não obstante, devemos acrescentar, apesar dos avanços que temos apontado, essa é uma tarefa que precisa ser realizada em maior profundidade pelos estudos críticos.

Paes Loureiro (1995, p. 35-36), afirma que a poética do imaginário amazônico apresenta uma harmonia criativa que “preside ou mesmo domina o sistema cultural na Amazônia”.  É necessário destacar, que noção de imaginário aí implicada tem como base as acepções de imaginário adotadas por Gaston Bachelard e por Gilbert Durand e se apoia numa concepção simbólica da imaginação, numa concepção que postula o semantismo das imagens, pelo fato delas não serem signos, mas sim conterem, de algum modo, materialidade, isto é, de conterem, sentidos. Vale ressaltar agora que a noção de “imaginário”, tal como definida por Paes Loureiro ocupa um lugar especial e desempenha um papel importante no trabalho de investigação das manifestações literárias indígenas.

Mas, ainda assim é necessário ficar atento para o fato de que mesmo uma região da cultura latino-americana como a Amazônia não pode ser entendida como um bloco de cultura fechada em si, uma vez que em seus interstícios se constituem regiões culturais menores que se diferenciam fortemente entre si por suas especificidades sociais e culturais. E, por conseqüência, por suas especificidades literárias. Isso é o que veremos a seguir, com o estudo sobre a região conhecida etnograficamente como região circum-Roraima, que se localiza na tríplice fronteira Brasil, Guiana e Venezuela, onde habita o povo ye’kuana.

Enfim, a cultura amazônica contemporânea, proposta por Paes Loureiro (1995, p. 30-38) se constitui como uma “cultura dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua realidade”. [...] “Uma cultura que, através do imaginário, situa o homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da natureza e das fronteiras que o circunda”. E assim, o homem amazônico, coabitando, convivendo, ou estando diante dela, depara-se com elementos que fundem o real e o irreal numa realidade única, na qual o poético vibra e envolve tudo em sua atmosfera. E dessa maneira, o homem amazônico “cria uma cultura de grande beleza e sabedoria, transformando, assim, o seu habitat, onde desenvolve seu projeto pessoal e social de vida, de devaneios e de sonhos”.

É interessante notar, assim como Hegel, que há quase dois séculos profetizou que a América era “o país do porvir”, podemos constatar que a vasta região Amazônica também compartilha desse discurso da “ordem do porvir”, tanto pela veleidade de compreensão e apreensão de sua diversidade sociocultural quanto, segundo entendemos, por causa da riqueza das textualidades dos diversos e diferentes povos indígenas que nela habitam. Em resumo: há ainda muito por fazer. Neste mesmo sentido, os discursos de interpretação do Brasil sempre o classificam como o “país do futuro”.

Paes Loureiro (1995, p. 64 e segs.) defende que é preciso fazer alguma coisa “antes que a chama das queimadas florestais provocada por novas empresas que se instalam, assim como, com a entrada de grande capital na região e, sobretudo, com a mudança das relações dos homens entre si, não destruam, irremediavelmente, “o lócus que possibilita essa atitude poético-estetizante singular da vida, ainda presente na vastidão das terras-do-sem-fim amazônico, que tendem, não obstante, a permanecer vivas e fecundas.”

É interessante notar, ainda, que como consequência, a contribuição amazônica à literatura brasileira se fez e se faz, predominantemente, através de produtos desse imaginário, diferentemente do que ocorre com as outras regiões do Brasil. Segundo Paes Loureiro a Amazônia vem oferecendo à cultura, em geral, e aos grandes movimentos artísticos, em particular, uma grande quantidade de temas resultantes do seu rico imaginário social.

Exemplo disso é o mito Makunaima, dos índios macuxis, moradores, também, da região circum-Roraima. O mito foi recriado no romance do paulista Mário de Andrade, um dos principais nomes da moderna literatura brasileira. Na obra, o autor relata as aventuras do herói, desde a floresta amazônica até a cidade de São Paulo. A obra é considerada um dos marcos do modernismo brasileiro. Outro exemplo é a obra Canaima (1997 [1935]), do venezuelano Rómulo Gallegos, que discute o caráter do homem venezuelano, dentre tantos outros.

Antes de encerrar esta explanação, um aspecto ainda merece ser abordado: aquele que diz respeito à especificidade das manifestações literárias latino-americanas diante do inegável processo de globalização porque passam as formas de interação entre homens e instituições de diferentes partes do planeta – este fenômeno de que muitos falam e que ainda é tão mal compreendido por todos. Afinal, como não poderia deixar de ser, as culturas e as literaturas latino-americanas também são altamente afetadas por este fenômeno de alcance mundial.

Em ensaio instigante, intitulado “A cultura latino-americana, entre a globalização e o folclore”, publicado em Vira e mexe nacionalismo, paradoxos do nacionalismo literário, Leyla Perrone-Moisés (2007, p. 21) alerta para a questão de que, na “ânsia por um ‘identidade latino-americana’, o discurso da latino-americanidade pode levar a enganos prejudiciais à cultura propriamente dita”. A autora acrescenta, em seguida, quais seriam estes enganos: “o nacionalismo exacerbado, o populismo e o espontaneísmo”.

Quanto ao nacionalismo exacerbado, Perrone-Moisés adverte que:

A razão principal pela qual o nacionalismo (e o supranacionalismo) latino-americano corre o risco de se tornar nocivo ao desenvolvimento cultural de nossos países é que ele repousa sobre uma concepção inaceitável de cultura. Nenhuma cultura é auto-suficiente e estanque. Toda cultura é o resultado de intercâmbios e mesclas bem-sucedidas. Nenhuma das grandes culturas reconhecidas como tal se desenvolveu fechada ao estrangeiro: a cultura de Roma fortaleceu-se ao assimilar a Grécia, a inconfundível cultura japonesa foi criada a partir da chinesa etc. (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 22).

Assim, no terreno cultural latino-americano, o nacionalismo exacerbado, que é herança das guerras de independência e resultado da permanente ameaça de dependência que pesa sobre as economias da região, consiste nocivamente, na busca exagerada pelo o que é “autenticamente nosso”.

Porém, a autora elucida que nossas culturas latino-americanas, “constituídas por mesclas” mais evidentes e, mais ou menos recentes, “não têm por que pretender uma especificidade autóctone, mítica e regressiva”, por que a identidade original dos países latino-americanos, que “já era múltipla”, foi, em muitos casos, “apagada pelo colonialismo e, em outros, transformada pela mestiçagem”. E que nos países em que se mantiveram traços das culturas autóctones (caso do Brasil, por exemplo) aos quais se acrescentaram mais tarde as marcas das culturas africanas e dos países de imigrantes, são misturas efetuadas que, portanto, constituem nossa “originalidade” com relação aos países colonizadores. (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 22).

A autora acrescenta ainda que, por mais rancores que cultivemos, por mais violento que tenha sido nosso desejo de independência, “temos uma ligação indissolúvel com as culturas metropolitanas, a começar pelas línguas que falamos”. E, retomando Octavio Paz (que, segundo ela, ninguém pode acusar de menosprezar suas raízes mexicanas), afirma que “a cultura europeia já é parte de nossa tradição, e renunciar a ela seria renunciar a nós mesmos” e dessa forma, “esquecer nossas origens é perder nossa identidade”. E que por isso, “querer reduzir nossa identidade ao que nos restou dos índios ou que nos trouxeram os africanos, é uma regressão que pode levar a um racismo às avessas”.

Essas tendências xenófobas e belicosas dos nacionalismos, segundo a autora, têm-se manifestado, mais do que nunca, em nosso tempo de globalização. E isso é um engano maléfico, uma vez que o que prova a força particular de uma cultura “é exatamente a capacidade de assimilar sem se perder”, e, num mundo globalizado, essa “capacidade de incorporação”, “é um modelo que podemos oferecer às outras culturas”. (PERRONE-MOISÉS, 2007, p. 22) e segs.)

Outro engano que se deve evitar, conforme a autora, uma vez que tem efeitos lamentáveis, é conceber a cultura latino-americana, em geral, e a arte, em particular, como “meros testemunhos das condições socioeconômicas” do povo do continente.  Os intelectuais populistas, segundo Perrone-Moisés (2007, p. 25), têm uma concepção muito pejorativa do “povo”, pois “considerar que um país pobre deve ter cultura para pobres, e a arte tenha por única temática a miséria, é defender um tipo de populismo paternalista e politicamente inaceitável”. Alerta a autora que essa visão nacionalista e populista muito mais prejudica do que ajuda, pois impede “esse mesmo povo de receber informações mais complexas, mantendo-o numa condição de minoridade intelectual e impedindo-o de vislumbrar caminhos alternativos”. Acreditamos que talvez esse seja o engano mais ardiloso que se pode conceber para um povo.

E assim, ligado a esse “nacionalismo populista”, vem algo mais danoso ainda à cultura e a literatura latino-americana, conforme adverte a autora (2007, p. 25) a saber: o culto sem crítica ao folclore. Afinal, conforme argumenta, a “América Latina não é só folclore”. E acrescenta que “óbvio que o folclore é uma riqueza cultural que tenha que ser preservada”, conforme enfatiza. Mas que é um engano nocivo “restringir as culturas latino-americanas a seus aspectos folclóricos”, o que significa terrivelmente “impedi-las de evoluir”, e “de se inovar”. Essa atitude significa, por último, confirmar a pecha e “oferecer aos outros países – de culturas mais sedimentadas – uma imagem que eles desejam ter de nós: exóticos, vestidos de poncho e chapéu de palha, pitorescos com nossas danças e crenças, em suma, desafortunados e divertidos ao mesmo tempo.” Assim, segundo a autora, não a alma própria do povo, as fontes comuns, universais, que servem de húmus para as culturas nacionais e como elemento de raiz, mas sim o tratamento folclorizado das culturas, deve ser recusado pelos diferentes sujeitos e produtores culturais.

Em suma, dessa perspectiva devemos recusar a aversão irrestrita a elementos oriundos de outras culturas e ao estereótipo tacanha de uma “imagem folclórica” ou folclorizada. Enfim, devemos procurar fugir de patrocinar um “espetáculo de uma pobreza pitoresca”, para ser visitada por turistas com suas máquinas fotográficas, ou, ainda, a supervalorização de um “real maravilhoso”, que “só é maravilhoso para quem não vive sempre nele”. 

A autora ainda ressalta que, em nome do discurso da latino-americanidade da “espontaneidade”, de uma “alegria”, de uma “efetividade”, de uma “magia”, enfim, se concebe outro engano daninho tanto do ponto de vista cultural como do político latino-americano. Em nome desta “espontaneidade naturalizada” do latino-americano “recusa-se todo experimentalismo ou rigor artístico latino-americano”, tarjando-os, de “formalismo” e “elitismo” e considerando-os como incompatíveis com a nossa “índole” e com a nossa “realidade”.

A autora acrescenta que, da mesma forma, deprecia-se, o que é imensamente danoso para nós, o “pensamento abstrato, o discurso teórico e argumentativo e a pesquisa universitária”, todos classificados de “intelectualismo estéril”, porque taxadas pelos compatriotas e estrangeiros, sem nenhuma elevação do nível cultural. Para a autora, o resultado disso são produções que muitas vezes se baseiam numa suposta criatividade natural, e que sofrem, todavia, da ausência de uma “base” intelectual “vasta e sólida” para lhes dar suporte.

E, por causa disso, desembocam geralmente numa produção sem autocrítica e sem parâmetros confiáveis. Ou seja, uma imitação passiva carente de uma tradição intelectual e de um discurso crítico, senão uma “demonstração tranquilizadora (para eles, aqueles que recusamos) de nossa ingenuidade intelectual”. (Perrone-Moisés, 2007, p. 26)

Enfim, como podemos notar, ao longo de nosso breve percurso glosando o discurso da latino-americanidade, tanto no passado um pouco mais distante, quanto num tempo mais globalizado, vez por outra questões antigas e atuais, sobre a identidade, a originalidade e a natureza cultural e, por consequência, da literatura da América Latina, emergem com força.

Essas são questões, a nosso ver, para as quais ainda não temos (e talvez nunca tenhamos) respostas prontas e definitivas, uma vez que são ainda respostas em elaboração, não totalmente apuradas, às vezes carentes de solidez intelectual mais profunda e, portanto, não totalmente aceitas como confiáveis, porque muitas vezes são transformadas em meros contradiscursos culturais, fechados em si mesmos. 

Assim somos levados a concordar com Perrone-Móises (2007, p. 27) sobre o discurso danoso da latino-americanidade: num mundo globalizado e atual, o grande destino da América Latina não é “encerrar-se em Macondos reais, nem morrer de sede corporal e cultural num Grande Sertão geograficamente circunscrito”. Mas, acrescenta também, que não se “deveria imitar tão servilmente as nações hegemônicas”, uma vez que nosso objetivo deveria ser, antes, simplesmente “mostrar o que fizemos de diferente com o que o Velho Mundo nos trouxe”.

Por tudo isso, encerramos estas achegas corroborando o pensamento de Perrone-Moisés que defende que não se conseguirá constituir uma cultura forte e diferenciada com “isolamento cultural e nem com o cultivo de uma imagem folclorizada”; mas sim com sua entrada efetiva no conjunto de discursos culturais de nosso tempo, ou seja, com informações mais atualizadas, com armas conceituais mais afiadas e formas artísticas mais apuradas, como aquelas de que dispõem outras culturas. Porque, segundo a autora, tratar “nosso patrimônio cultural com informações atualizadas é a melhor maneira de o manter vivo e ativo”. Pensamos, como Perrone-Moisés, que este é o nosso maior papel: “lutar contra a pobreza material e conservar nossa riqueza cultural é o desafio que nós, latino-americanos, devemos enfrentar no século XXI”.

E, para encerrar, podemos, nesse ponto, afirmar e confirmar nossa crença no fato de que talvez não exista compromisso mais importante para todos aqueles que se empenham com o desenvolvimento das culturas e das literaturas americanas.

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Received May 17, 2017; Accepted August 8, 2017


Nota

[1] Cf. Conceitos de Literatura e Cultura (2005), organizada por Eurídice Figueiredo; América Latina em sua literatura, UNESCO, (1972) organizada por César Fernández Moreno; e América Latina – Palavra, Literatura e Cultura, organizada por Ana Pizarro (1993).

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