Metapoética e estética ou meta-análise e exotismo, questões da Amazônia ou de todas as periferias?

Metapoética e estética ou meta-análise e exotismo, questões da Amazônia ou de todas as periferias?

Roberto Mibielli[*]

[*] Professor do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Roraima


RESUMO:

Este texto é resultado da minha pesquisa de pós-doutorado no Programa de Pós Graduação em Estudos de Literatura da UFF(Universidade Federal Fluminense). Trata-se de uma parte do estudo na qual identifico as estratégias de criação de uma imagem litero-musical para Roraima a partir da produção de dois de seus principais escritores, Nenê Macaggi e Eliakin Rufino. Discute-se, também, no texto, a necessidade que ainda temos de utilizar o discurso exótico para descrever e/ou caracterizar a Amazônia.

Palavras chave: Literatura da/na Amazônia; Amazônia e exotismo; Roraima; Literatura Roraimense


ABSTRACT:

This text is the result of my postdoctoral research in the Graduate Program in Literature Studies at UFF (Universidade Federal Fluminense). It is a part of the study in which I identify the strategies of creating a litero-musical image for Roraima from the production of two of its main writers, Nenê Macaggi and Eliakin Rufino. I also discuss in the text the need to use exotic discourse to describe and / or characterize the Amazon.

Keywords: Literature of the Amazon; Amazon and exoticism; Roraima; Literature of Roraima


Uma das questões que mais me chama a atenção nos bastidores acadêmicos das discussões sobre a literatura na Amazônia é, talvez, a mais instigante e constrangedora das questões que se pode aventar sobre a literatura de um lugar: a questão de sua existência ou não. Explico: é que uma parcela considerável dos pesquisadores que ali vivem, embora nem sempre o admitam publicamente, rechaçam a ideia da existência de uma literatura (no) local. Alguns desses preferem não considerar a existência de uma literatura indígena, outros, um pouco mais radicais, adotam uma postura de absoluta negação, em especial, em se tratando da literatura urbana produzida nas capitais de menor porte da Amazônia (o que exclui Manaus e Belém), assim como em boa parte de suas cidades, a maioria com menos de dez mil habitantes cada.

Espaço somente muito recentemente apto para a formação de mão de obra pesquisadora (mestres e doutores em geral), a Região precisou desde sempre importar uma parcela significativa de sua intelectualidade acadêmica. Para aqueles que ali chegam, de diferentes origens, a Amazônia adquiriu características muito diversas. Alguns a têm e tiveram como “inferno verde”, outros como espaço de atrasos e descaso dos governos centrais, outros ainda como terra de conflitos sociais e laboratório biológico a céu aberto. Raros, porém, são aqueles que dali destacam a literatura.

Exceção seja feita à literatura dos povos da floresta, por muitos incorporada, ou coletada, adaptada e lida, seja com um viés exotizante ou folclórico, seja com uma visão antropológica de documento descritivo dos fazeres e crenças de dadas culturas ameríndias e/ou urbanas.

De certo modo, toda essa relação de aparente desprezo pela parca produção local está implicitamente prevista no prefácio do Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos de Antônio Cândido, quando ele argumenta que: “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das musas” (Cândido, 1981, p. 9), como quem dá a entender da nossa escassez, do diminuto de nossa amplitude. Cândido, nessa passagem, embora não o faça explicitamente, dá a imediata dimensão da correlação de forças, no âmbito do universo/sistema litero-estético, entre as literaturas mais ao centro e as mais periféricas.

Esta observação, para muitos depreciativa de nossa literatura, ajuda a entender que em determinados momentos de nossa história, quando não havia nem um sistema literário minimamente constituído, nem muitos exemplos isolados de fenômenos literários que nos expressassem enquanto nação, houve a necessidade do uso de outras matrizes estilisticamente próximas à literatura que servissem à construção de uma tradição literária com menos lacunas, ou como indexador de seu início (a Carta de Caminha é, de fato, isso).
Caminha, de certo modo, tem a primazia, entre nós, de inaugurar um relato cuja ótica é exotizante. Não se pode dizer que se trate de literatura, embora o cânone escolar, aquele mesmo dos livros didáticos, não se furte de apresentá-lo dentro da cronologia de nossa história da literatura como “nosso” primeiro escriba e ao seu texto como nossa primeira manifestação literária, em termos de estilo e informativa em termos de contexto.

Mas se não é literatura, e por muitos anos se defendeu sua permanência no cânone porque o texto apresentava características e trechos plenos de lirismo, o que é A Carta do Achamento do Brasil?

Para Roberto Acízelo (2014) não poderíamos denominá-la literatura posto que não havia literatura no período em que foi escrita. Ou seja, o objeto literário não respondia por este nome e seu conceito ainda não vigorava. Em todo o caso, quando o termo passou a ser utilizado, já no século XIX, expressava valores distintos dos de hoje. Por este motivo, talvez, as regras de inclusão de textos não literários em nossa tradição e história “literárias” sejam tão permissivas.

Quem trabalha com a história da cultura da Amazônia, ou com a história da literatura na região frequentemente se depara com este problema. O elenco de obras à disposição nem sempre impressiona do ponto de vista numérico, e, quando observado a partir da perspectiva estética, obriga o historiador a tecer elogios que se alongam e soam falsos em relação à qualidade da obra analisada.

Ainda assim, também há que se considerar o descompasso existente entre os tempos/ períodos de formação do cânone central de nossa tradição literária e um possível cânone regional amazônico. Esse descompasso, em termos de tempos/etapas de formação dos respectivos sistema e subsistema literários, seria capaz de justificar o fato de poucos escritores amazônicos pertencerem ao cânone central. Outro motivo, porém, pode ter contribuído para esta rejeição. 

O que Cândido (2008) não diz, nem mesmo quando indica, no Literatura e Sociedade, haver uma literatura nacional que pode conter  particularidades de cada lugar (ele aponta São Paulo como exemplo), até por não ser este o seu objeto, é que essa relação de escassez de material na Amazônia, termina por emprestar ao texto periférico um caráter ainda maior de exotismo, um estranhamento que o torna quase mágico, documento único entre silêncios e vazios, sendo essa raridade, na maioria das vezes o seu mérito mais destacado, uma vez que esteticamente o texto nem sempre apresenta o nível de qualidade exigido para a notoriedade que alcança.

É o caso de Djalma Batista (2006) que se vê obrigado a ocupar algumas páginas do seu Amazônia: Cultura e Sociedade para elogiar médicos e advogados, de tempos idos, como integrantes da nata intelectual da Amazônia, sem que estes tenham publicado uma linha de qualidade sequer ao longo de suas vidas. O quadro, como um todo, faz parecer que isso se dá pela ausência de obras e de objetividade, gerando um panorama em que, na maioria das vezes, é obrigatório um tom de crítica mais impressionista do que técnico, que corresponda à carência de textos que possam ser analisados mais a fundo.

A característica física, no entanto, do corpus de publicações e manifestações literárias da Amazônia é da predominância numérica da publicação de livros de poesia, sobre a publicação de romances e de contos, ficando apenas excluída desta minoria a produção de crônicas, em função de seu suporte ser outro, o jornal (semanário ou diário) impresso. Mais volátil e efêmera, “A crônica, gênero muito caro ao jornalismo brasileiro até a década de 50, sempre foi, no Amazonas, medíocre e paroquial”. (Souza, 1977, p.184)

Aliás, dadas as condições de produção, edição e veiculação/comércio de textos literários na precária sociedade amazônida já decadente, dos anos pós-fausto (da primeira metade do século XX), é preciso salientar o fato de que em boa parte dos arruamentos urbanos com pretensões a cidades, desde Cruzeiro do Sul no Acre, até Boa Vista, Roraima, a arte que predominará será a da composição musical de extração popular. As canções e os grupos de seresta, conforme relatam Magalhães (1986), Oliveira (2009), Assmar & Barroso (2009) e o próprio Souza (1977), serão predominantes, muito em função do suporte.

Enquanto a música é vária e executada com os mesmos instrumentos, o livro e o jornal demandam a confecção de um novo suporte a cada execução, fato que os torna mais caros e raros que os saraus musicais da província. É na esteira destes saraus que a poesia que Márcio Souza denomina de “indigente” será veiculada. Daí predominarem a crônica jornalística leve e a poesia (que também era veiculada em jornal), segundo Assmar & Barroso (2009). Ao mesmo tempo, do ponto de vista escolar, na falta de material mais consistente que exemplifique a produção poética local, a modos medievos, indica-se para fins de estudo, como poemas fossem, as letras das músicas dos bardos e cancioneiros locais.

Além disso, como a poesia de salão, nesses casos, por um longo período – que se estende até o final da segunda guerra mundial –, necessitava mais de apuro estético-formal do que de conteúdo social propriamente dito, não se presta, neste meio, a devida atenção à vaga modernista que domina o eixo Rio-São Paulo, resultando disto uma poesia de extração parnasiano-simbolista cuja temática é, em geral, social e criticamente pobre, conforme afirma acima Souza (1977). Estas serão as manifestações litero-musicais mais comuns.

Isto não impedirá que haja poetas de ocasião, poetas bissextos e poetas mais consagrados, dispondo de um pouco mais de qualidade literária em sua produção, disputando avidamente o espaço social que lhes é determinado nessas sociedades. Em Boa Vista, por exemplo, a poesia, quando organizada em movimento, com proposta, manifesto e diretrizes identitárias, envereda por um caminho de aliança direta com a música, tendo sido o primeiro movimento poético efetivo do estado, um movimento litero-musical, o Roraimeira, a ocorrer já nos idos dos anos 80 do século XX.

De certo modo, o exemplo de Roraima é sui generis, uma vez que Nenê Macaggi, sua principal romancista, surge, publicada, no cenário roraimense uma década antes do Roraimeira, em meados dos anos 70, invertendo a expectativa anterior de que o verso tivesse primazia sobre a prosa. De fato, havia poesia sendo publicada no estado antes do romance de Nenê em 1976, mas esta poesia era veiculada não em livros, mas em jornais.

Como já afirmei alhures[1], quando procurava identificar as bases para a constituição de uma estratégia de composição de imagem identitária litero-musical para Roraima, pelos membros do Roraimeira, o poeta Eliakin Rufino, assim como a escritora Nenê Macaggi, não descuram de seus objetivos pedagógicos em favor de um discurso metapoético, que explique sua arte pela/através da (sua própria) arte como fazem os modernos em geral (desde o simbolismo).

O que se pode perceber, nestes casos específicos, é que a realidade aponta no sentido de que nas manifestações literárias programáticas iniciais de Roraima e em parte da literatura amazônida o que predomina é a ausência de um certo tipo de discurso metapoético ou metalinguístico subjacente ao texto lírico ou à trama ficcional. É quase como se os textos, mesmo num contexto moderno/modernista fossem autoexplicativos, contrariando a lógica geral da modernidade na qual, em boa parte da produção literária, se percebe a necessidade da estatuição de uma forma de fazer artístico-literário.

Em alguns casos, mesmo na realidade Amazônica mais central (tomando-se por princípio a ideia de que os centros amazônicos, por excelência seriam Manaus e Belém, suas duas capitais mais densamente habitadas), a preocupação ou necessidade de conter no âmbito da própria produção literária um segundo discurso mais técnico, mais acadêmico e que refunda e explica a arte em seu processo de composição, decorre de uma pretensão ao ineditismo, inicialmente romântica, mas amplamente difundida na era moderna, em especial em suas vanguardas. Este tipo de discurso concebido como paralelo à trama não apenas da obra, mas do modelo e/ou formato desta, funcionaria como elemento de uma metatextualidade que implicaria, então, numa chave interpretativa para que o discurso novo desta arte pudesse ser compreendido. Deste modo, boa parte daqueles que não escreveram e publicaram manifestos político-literários à parte, têm em suas obras (sejam poemas ou prosa), na forma de temática principal ou transversal, algum tipo de alusão ao modo como estas textualidades se constituem/constituíram, não raro apontando, pela via da intertextualidade, o seu lugar (filiações e parentescos) no âmbito da tradição.

Embora não seja uma regra, em alguns casos, a chave interpretativa, dada como metalinguagem ou metapoética no corpo do texto, assume um tom professoral, derivando para um discurso programático-manifesto que soa como pedagógico ou didático. É como se em todos os autores que sucederam Machado de Assis ainda ecoassem os diálogos que os narradores deste último encetaram com seu público imaginário, ora ironizando-o, ora desafiando-o a um mergulho interpretativo ainda mais profundo, o da proficiência plena[2].

É interessante ressaltar que em casos fronteiriços, como soe ser o da literatura de/em Roraima, este modelo de alusão intertextual também serviria como uma marca de pertença, uma vez que é nessas periferias que o tecido do imaginário, que sustenta a ideia de nação, começa por desfiar. Ao declarar-se membro de uma dada tradição, o autor periférico não apenas atestaria a filiação de sua produção, mas e também reafirmaria a sua pertença a este tecido imaginário.

O grande problema, passa a ser quando não há nesses lugares periférico-fronteiriços um sistema literário já instituído, ou seja, quando a literatura destes lugares conta apenas com manifestações bissextas e esparsas de poetas (em saraus da província?), cantadores e compositores (em saraus da província?), romancistas e teatrólogos, sem mercado (apenas em saraus da província?), sem livrarias e com uma realidade na qual há feiras de livros, propostas por organizações não governamentais como as do sistema “S”, das quais não participam as poucas livrarias existentes nestes estados/cidades[3]. Ou mesmo quando estes lugares ainda têm um sistema crítico incipiente, ou, do ponto de vista de alguns dos membros da academia (leia-se cursos de Letras, que são os que ajudam a determinar e perpetuar o cânone), que ignora a existência do pouco que há de forma sistemática.

Nestes casos, que creio seja também o do estado de Roraima em particular, é possível que haja um deslizamento do discurso no sentido de A) atestar e assegurar a existência destas manifestações literárias, tornando essa metadiscursividade externa ao texto, e fazendo com que seja veiculada na forma de entrevistas e outros meios que não o manifesto pura e simplesmente; B) um acirramento do discurso pedagógico que passa a pretender ser porta-voz do lugar, para quem não é dali, de modo a assumir a responsabilidade por incorporar uma imagem identitária, caricata e esquemática quase sempre voltada para quem não pertence ao contexto, de modo a afirmar sua primazia discursiva sobre o contexto retratado. Em ambos os casos o acento da metadiscursividade poética recai não mais sobre a necessidade de uma filiação a uma tradição litero-cultural, ou pertença a uma nação, mas sobre a necessidade da afirmação da existência de dado local, de dadas tradições, de dada cultura (ou culturas), apagando do texto a necessidade de explicar sua existência estético-formal, mas tornando-o emblemático para a cultura local.

Este processo de emblematização é o que leva alguns autores a caricaturizar dadas realidades (como a de Roraima, na voz do Roraimeira, por exemplo), recriando e reeducando sua cultura de modo a que esta apresente uma outra imagem de si. É quase como se se pudesse dizer que têm a pretensão a bildungsroman de um lugar e não de um dado personagem, ensinando este lugar a ser o que ele é, para si e para os que dali não são, instituindo-o pela literatura[4].

Ao mesmo tempo, este processo torna quase irreconhecível, para os que dali são originariamente, o próprio local representado. É quase como se (ou)víssemos ao longe a inversão dos ecos de um René Magritte “Ceci n'est pas une pipe!”, sobre um cachimbo perfeitamente retratado. Neste caso, nossos autores locais diriam, com quase toda a convicção que lhes pertence: “Apreciem o cachimbo-Roraima!”, mostrando uma pedra irregular, cuja sombra sugere, no fundo da caverna, uma piteira.

A tensão entre o componente estético de.um discurso metapoético e o didático-fundacional na busca pelo papel de moderadora de uma imagem da identidade local, pela literatura, favorece o surgimento de textualidades literárias que, embora imbuídas do espírito modernizante ou mesmo de vanguarda, ignoram a necessidade de se autoexplicarem, enquanto arte, em seu modo de se constituir como tal, substituindo este discurso pelo da explicação da paisagem local, no caso de Nenê Macaggi, por exemplo.

Por outro lado, essa ausência pode ser explicada também pelo movimento concêntrico da própria busca por uma forma de transformar a realidade plural do estado em algo recognoscível do ponto de vista simbólico, ainda que, pela via da redução didatizante. No caso de Nenê Macaggi esta busca está centrada numa preocupação ufanista de destacar as belezas e a imensidão da Amazônia com informações quase correlatas as de um manual do censo ou de um livro didático. E este destaque, via de regra, vem, no contexto de sua obra inaugural para Roraima – A Mulher do Garimpo (Macaggi, 2012), marcado pelo contraste que a autora propõe entre a paisagem amazônica e um cortiço onde se passam as cenas iniciais da trama, no Rio de Janeiro. Enquanto no Rio de Janeiro tudo é pobre, sujo e acanhado, na Amazônia de Nenê sobram bons qualificativos e expressões de espanto pelas grandezas envolvidas[5].

É importante fazer notar, no entanto, que, embora utilize este subterfúgio quase infantil e, por vezes, profundamente exotizante para descrever sua terra de adoção, Nenê Macaggi tinha um projeto literário para o seu primeiro romance no contexto de Roraima. Este projeto literário, dentre outras coisas, se propunha a emular enredos e personagens de outros textos (estes sim canônicos) da literatura nacional, de modo a dar a entender ao leitor mais proficiente que se deparasse com sua obra, o seu desejo de pertença e seu conhecimento do cânone que emulava.  

Nesse contexto inaugural, não se pode ignorar este esforço de pertença que fazem nossos romancistas e poetas. Aqui, em especial, trata-se da relação que o poeta Eliakin Rufino estabelece entre o Roraimeira (no qual sua produção está implícita) e as vanguardas literárias do modernismo brasileiro, no caso, a antropofagia oswaldiano-andradina. O curioso é que através deste estratagema o poeta tenta explicar o surgimento do movimento Roraimeira e o modo como, para ele, este se torna a última das vanguardas do século XX:

Talvez a nossa grande contribuição, do Roraimeira é acabar com a crise de identidade que Roraima padecia. Eu acho que até o Roraimeira não havia uma arte local mesmo: é a dor e a delícia de ser pioneiro. Em fevereiro de 1922, São Paulo, Semana de Arte Moderna, é uma revolução na arte brasileira. Os modernistas lançam uma grande pedra no lago tranquilo da influência europeia no Brasil, né? Agora, essa onda só chega em Roraima em 84: o movimento Roraimeira é o movimento modernista, que chega aqui em Roraima na década de 80. Toda a nossa inspiração é modernista: é o Modernismo, é o movimento modernista... Tardio. (Oliveira, Wankler e Souza, 2009, p.28-29)

É nesse entrecruzamento entre uma poesia programática/manifesta e o poeta didata que analisamos sua obra, observando também a poesia de outros escritores radicados em Roraima. Em entrevista de Eliakin Rufino aos professores Cátia Wankler, Rafael da Silva Oliveira e Carla Monteiro de Souza (2009), apresentada no artigo “Identidade e Poesia Musicada: Panorama do Movimento Roraimeira a Partir da Cidade de Boa Vista Como uma das Fontes de Inspiração”, o poeta destaca a atuação da vanguarda Roraimeira no que tange à mobilização em torno da ideia de criação de um movimento:

No movimento Roraimeira nós tentamos esboçar uma fisionomia cultural pra cá, porque até então se dizia que aqui não tinha cultura, isso era um comentário recorrente. O grupo Roraimeira vai reconhecer na cultura indígena a nossa cultura mais ancestral, nossa base, porque a elite local é racista, é antiíndio, eles passaram 300 anos escravizando os índios. Nós somos ‘consumidos’ pelo povão, porque a elite rejeita, porque nós somos pró-índio. (Oliveira, Wankler e Souza, 2009, p.28)

O poeta também dá claras indicações de saber qual o seu público, o seu consumidor e, portanto, o seu leitor ideal, ao dizer que é o “povão” que os consome. E, embora reconheça que o movimento que ele e seus companheiros de “vanguarda” propõem seja “tardio”, dá as indicações de que esta criação só se tornou possível graças a um projeto que, tal e qual o modernista, pressupunha a construção de uma identidade a partir da síntese da diversidade e da pluralidade envolvidas em seu contexto.

Aqui em Roraima vivem brasileiros de todas as partes do país e mais os estrangeiros da Venezuela e Guiana. A proximidade com o Caribe, a forte influência nordestina em Roraima, a marcante presença dos povos indígenas e a distância do resto do Brasil, tudo isso foi configurando um movimento cultural (música, literatura, fotografia, artes plásticas, dança) que reconhecia e acomodava todas as diferenças e apontava para a diversidade e a pluralidade como marca da nossa identidade. (Oliveira, Wankler e Souza, 2009, p. 29)

Diferentemente do projeto das vanguardas de 22, o projeto de identidade para Roraima propõe, em 1984, uma estética baseada na cultura ancestral, num espaço em que há, ainda, o conflito pela posse da terra, razão pela qual o poeta denuncia o preconceito das elites locais na aceitação desta identidade.

A consciência da responsabilidade na elaboração de uma imagem literária da Amazônia sempre esteve presente naqueles escritores que conseguiram driblar o desejo universalista de pertencimento à civilização de uma boa parcela dos poetas locais. A tentativa de refutação do modelo cosmopolita recai para alguns numa visão temática exotizante, dominada pela selva e pelos seus mistérios. O teor desses discursos, em alguns casos, toma um viés cientificista (pseudocientífico) ou mesmo científico, como denunciam alguns autores, dentre eles Péricles Moraes:

Não basta o aparelhamento scientifico. Para comprehender, assimilar e exprimir a complexidade de sua natureza o escriptor precisa ser dotado de um talento verdadeiro, auxiliado por todas as forças do espírito e da vontade, além de possuir, simultaneamente, a faculdade de perceber, de um só lance, as circumstancias particulares e sensíveis que lhe explicam as influencias passadas e presentes. Ademais, cumpre saber fixar-lhe, como um pintor, as transformações fugitivas de seus espectaculos, o effeito dos seus violentos scenarios, o mundo das idéas secretas que a vertigem de suas aguas e o assombramento de suas florestas despertam em nossa imaginação. (Moraes, 1935, p. 14)

Para Péricles Moraes, nesse trecho destacado do seu ensaio sobre a literatura amazônica publicado em 1935, intitulado Os intérpretes da Amazônia, é da união entre a acuidade científica e do zelo com o “efeito de seus violentos cenários, o mundo das ideias secretas que a vertigem de suas águas e o assombramento de suas florestas despertam em nossa imaginação” que se pode propor uma leitura efetiva da Amazônia.

A preocupação com esses dois fatores denota, em grande medida, o esmero com a inclusão da tensão nos discursos literários sobre/da Amazônia entre dois elementos que sempre foram determinantes para a identificação do local de onde se estava falando: o mistério e exotismo de suas desconhecidas matas, xamãs, mitos e tribos e a necessidade de um discurso oriundo do desenvolvimentismo científico que possa torná-la inteligível aos olhos do mundo.

Essa fórmula de concepção do discurso literário ideal acumula dois fatores (tal como concebidos então), muito caros ao período, a voz da selva (representando o exotismo, os mistérios, seus atrasos e costumes) e o discurso de teor acadêmico e/ou desenvolvimentista (o científico, o futuro, o desenvolvimento, o supostamente conhecido), e funde, portanto, o local com o universal. Deste modo, estão garantidos o exotismo que o imaginário popular reconhece e reivindica identitariamente como originário dali e de suas culturas tradicionais (que agrega valores misteriosos) e o científico e/ou civilizatório, que demonstra haver, em meio ao caos primitivo, as “luzes” da civilização.

O problema é que o discurso exótico, aliado ao didático que procura explicar um dado local (e não o didático da metapoesia ou da metatextualidade), ocupam o lugar do apuro estético-linguísitco, da escrita sintética, da metáfora, do subentendido e de outros elementos que ajudam a tornar mais valorizado o texto literário em seu conjunto estético. Ao ocuparem este espaço, estes elementos, que compõem boa parte da obra dos autores estudados, não permitem que seus textos fluam e possam ser percebidos como obras de beleza, fato que nos traz novamente ao nosso problema inicial do reconhecimento deles como manifestações literárias válidas de uma literatura amazônica (ou roraimense). 

Uma das perguntas que devemos propor, ao final deste artigo, é se, após anos e anos de embate para que a Amazônia não seja reconhecida apenas como um local exótico no mapa de um já exótico Brasil, ainda seria possível pensar a literatura e a cultura a partir deste exotismo. O agravante seria sempre o da perda da referência estética, em favor do didático e da cor local exótica, fato que poderia circunscrever boa parte desta produção às fileiras de um regionalismo de resistência; o ganho, por outro lado, talvez fosse o da criação de uma identidade mais próxima da realidade indígena e primitiva da região, assim como a fixação de uma imagem que ajudaria as pessoas comuns a refletirem sobre os conflitos pela posse da terra (entre índios, garimpeiros e fazendeiros) e suas consequências para a realidade local.

Por outro lado, tanto para escritores, quanto para nós os críticos da academia, os professores, aqueles que têm a obrigação de perpetuar um cânon, ficaria uma ou outra pergunta por responder, cujo caráter implicaria, talvez em rever nossas lutas, de longa data, contra a utilização do discurso exotizante na literatura: - Será que podemos abrir mão deste elemento de composição de nossa identidade? Será que nos é dado optar pela naturalidade das relações humanas, num espaço em que a dimensão humana aparece sempre tão acanhada e assujeitada pelo meio? O que há de verdadeiramente autêntico e honesto em desfazer a ilusão mágica que encobre a tragicomédia social de nossa história local? Qual outra possibilidade se nos apresenta, enquanto estudiosos, situados na periferia da periferia, para que nossas vozes também sejam ouvidas/lidas, senão a lida com o exótico nosso de cada dia? Banindo ou excluindo do contexto literário essa produção que se apoia no exotismo local, não nos banimos também?

É importante lembrar que, durante muitos anos, muitos de nós lutamos inflamadamente contra a literatura pretexto, a literatura que era parte integrante de provas do vestibular e que forçava nossos alunos a lerem as obras de nosso cânone central a contragosto, ocasionando a prática da leitura de resumos e outras piores como o uso da literatura para a arguição sintática ou morfológica. Pois bem, o que se viu, em decorrência do apagamento das questões de literatura em alguns exames vestibulares e outras formas de exame, foi a diminuição da importância das cadeiras de literatura nos cursos de Letras, de modo a que esta área, no que tange às licenciaturas, sofresse um encolhimento de sua carga horária geral.

Utilizando a leitura que fazemos desta outra bandeira de luta que erguemos através dos tempos, como analogia possível do momento que vivemos em relação ao discurso do exótico, enquanto peça chave no desenvolvimento de uma literatura para a periferia amazônica, é crucial que nos perguntemos: eliminando o que temos de ruim, o que alguns colegas consideram ou desconsideram como subliterário, na Amazônia, o que será feito da literatura nas periferias do capitalismo e o que será de nós pesquisadores dela?    

REFERÊNCIAS

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OLIVEIRA, Rafael da Silva; WANKLER, Cátia Monteiro; Souza, Carla Monteiro de. Identidade e poesia musicada: panorama do movimento Roraimeira a partir da cidade de Boa Vista como uma das fontes de inspiração. Revista Acta Geográfica, ano III, N°6, Jul./Dez. 2009, p.28-de 2009. P.27-37

SOUZA, Roberto Acízelo Quelha de. (org.) Historiografia da Literatura Brasileira – Textos Fundadores (1825-1888) V. I. Rio de Janeiro: Faperj/Caetés, 2014.

SOUZA, Márcio. A expressão amazonense: Do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa-ômega, 1977.

 

Received June 17, 2017; Accepted August 9, 2017


Notas

[1] Texto publicado sob o título Camadas de Identidade: do Roraimeira e as estratégias de construção e legitimação de uma identidade poética para Roraima aos poetas da geração 90/00, no livro Nós da Amazônia: literatura, cultura e identidade na/da Amazônia (Mibielli in Nascimento, Mibielli e Fiorotti orgs. 2014, p.153-76) .

[2] Em minha dissertação de mestrado (Mibielli, 2000), intitulada: Aprender com Machado: o olhar burlesco e malandro da literatura para a educação, Nitérói, UFF, 2000, analiso o caso de dez professores da rede pública de ensino de Niterói- RJ, no modo como lêem e percebem o texto Machadiano, utilizando para isto de algumas categorias (níveis) de leitura, dentre elas a do leitor proficiente, ou seja, aquele que é capaz de atingir níveis mais profundos de interpretação do texto literário.  

[3] Estranhamente as feiras do Livro de Roraima, nos últimos dez anos, não têm representadas em seus stands nenhuma das cinco ou seis livrarias comerciais oficiais do estado. A alegação do promotor (o sistema “S”, neste caso específico o SESC – Serviço Social do Comércio – com a colaboração do SESI e do SENAI) é que as livrarias exigem pagamento para participar da feira, fato em tudo contrário à lógica das feiras, nas quais, em geral, as livrarias alugam os stands de vendas. A alegação das livrarias é de que as feiras não dão lucro e que, por este motivo, se escusam de participar. Ou seja, quase não há livros nas feiras do livro locais, fato extremamente sintomático do estado da obra de nosso sistema literário.

[4] É importante salientar que devido à abertura dos garimpos de ouro e diamantes no início do século XX e da descoberta de novas e produtivas jazidas na década de oitenta do século XX, a população do estado de Roraima triplicou em menos de dez anos, fato que fez com que o estado tivesse um grande contingente de trabalhadores oriundos de outras regiões (em especial do Nordeste brasileiro) migrados para lá.  Dentre eles, professores e técnicos das mais diversas áreas, fato que deu uma outra feição cultural múltipla e plural para o estado. Para alguns, essa feição múltipla parecia ausência de cultura, conforme afirma o próprio Eliakin Rufino em sua entrevista, como se pode observar adiante.

[5] Análise minha que faz parte do texto Nenê Macaggi, Desenvolvimento e Exotismo n’A Mulher Do Garimpo. In: Maria do Socorro Galvão Simões, Luciana Marino do Nascimento. (Org.). Traços e Laços da Amazônia. 1ed.Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016, v. 1, p. 201-221

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