Literatura, arte e mercado. Sucesso no fracasso?

Literatura, arte e mercado. Sucesso no fracasso?

Lucia Helena[*]

[*] Universidade Federal Fluminense/ Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Pesquisadora do CNPq


RESUMO:

O artigo trata das interrelações entre a obra Diário de um ano ruim (2007), J. Coetzee, o romance Diário da queda (2011), de Michel Laub e as artes do espaço, com suas instalações, tais como apresentadas nsa documentas de Kassel. Investiga o que há em comum entre esses três atos de linguagem e conclui, após breve apresentação da historicidade da Documenta e breve comentário das obras, que elas representam no panorama da atualidade global uma intervenção estética de alta qualidade técnica e ética, uma vez que todas elas discutem e promovem a busca da liberdade e da democracia em um momento histórico marcado pelo recrudescimento do fundamentalismo e do terrorismo.

Palavras-chave: J. M. Coetzee, Diário de um ano ruim, Michel Laub, Diário da queda, Documenta; liberdade, intervençao etica e estética.


ABSTRACT:

The article deals with the interelationships between J. M. Coetzee’s Diary of a Bad Year (2007), Michel Laub’s Diary of the Fall (2011), and the performing arts of space, with its installations, as presented in the Kassel’s Documenta. The essay investigates and analyses what these three acts of  language have in common. The conclusion of this effort of interpretation sheds light on their representation of an aesthetic and ethical intervention of great quality. All of the works discuss and promote a search for liberty and democracy in a world dismantled by the upheavel of fundamentalism and terrorism.

Keywords: J. M. Coetzee; Diary of a Bad Year; Michel Laub, Diary of the Fall, Kassel’s Documenta; Aesthetic/Ethical Intervention.


Queremos pensar/tecer algumas considerações sobre um amálgama complexo, cheio de interações e obstáculos e que implica a difícil articulação entre literatura, arte e mercado. No momento que atravessamos, especialmente no Brasil, a situação da literatura e das artes tidas como cultas é questionada ora como um produto de pouca vendagem, ora como uma generalidade do etnocentrismo ocidental. A situação atual preocupa e tem conduzido a crítica a discutir as minorias, a literatura das margens, dos sempre excluídos pelo cânone não só da literatura, mas os excluídos individual e socialmente por classe, etnia, gênero. Em que pese a extrema importância deste viés, creio que cabe também indicar, como pretendemos fazer neste artigo, um valor não só artístico, mas também democrático, que enlaça as artes visuais e a literatura ditas canônicas, o que hoje, salvo erro ou distorção pela risco de generalidade, consistiria em uma literatura escrita por não-excluídos, como Michel Laub e John Maxwell Coetzze, este último um prêmio Nobel em 2003, colocado, por este laurel, na crista da onda mercadológica, uma vez que, no dia seguinte à premiação, todos os livros traduzidos para o Português tinham uma faixa esclarecendo que aquele autor havia sido distinguido por tal honraria o que, segundo o mercado, o retiraria do rol dos excluídos, ainda que Coetzee seja um autor  de origem africânder, filho de holandeses, radicados na Cidade do Cabo, na África. Ele é um escritor libertário, embora nunca tivesse feito parte do main stream da literatura de protesto ou claramente comprometida com a causa dos negros, embora tenha escrito um livro maravilhoso, Vida e época de Michael K., que trata da opressão dos africanos negros pelo poder discricionário dos colonizadores brancos que fizeram de outros homens praticamente massacrados pelo preconceito e pela repressão, o que podemos simbolizar em Mandela e  sua batalha, mesmo por anos prisioneiro, em prol da liberdade de seu povo e de sua própria possibilidade de andar pelas ruas com a voz aberta contra a execrável opressão a que nunca assistiu silenciosamente. Laub, o outro escritor que vou comentar, é de ascendência judaica e trata, dentre outras questões, da experiência do exílio e da memória na qual seu personagem retém demonstrações na infância de que os oprimidos também podem oprimir, mostrando aspectos que normalmente são calados, por uma idealização binária entre nós, os inocentes, e os outros, culpados.

Pensando nisto e tomando como ponto de vista o fato de que a arte tem absorvido, sem ser uma cópia do real, mas uma transformação e mediação das relações entre o imaginário da ficção e a historicidade e contingência dos homens, considero importante relacionar estes escritores e seus trabalhos em prol da arte, mas também da democracia e da discussão acerca dos deslocamentos da subjetividade, encaminho uma relação entre a produção dos escritores citados e a criação, no pós-guerra alemão, da hoje famosa mostra de arte, a Documenta de Kassel.

Partindo da criação desta exposição europeia, consagrada na atualidade da Alemanha, vemos que ela também é obra de artistas que discutem sutilmente exclusões e desenraizamentos não diretamente vinculados aos temas do gênero, da etnia e das questões de classe, produzindo um debate que ultrapassa, graças ao caráter amplo da ficcionalização que produz, a terra do significado único, do mundo monolítico que alguns insistem em resgatar em regimes de opressão e fundamentalismo espalhados pelo mundo. Esta articulação entre a literatura e as artes em geral se dá pela mediação do ficcional, a “terra do paradoxo” capaz de abrigar sonhos e utopias e de abrir para a liberdade.

Levando adiante estas considerações iniciais, convém trazer ao leitor que não esteja familiarizado com a Documenta, algum subsídio para construir um panorama necessário deste evento, que até hoje continua. Serão considerados, em especial, alguns de seus momentos, sem a intenção de colher as Documentas sob uma descrição historiográfica e linear.

De 6 de junho a 16 de setembro de 2012, durante cem dias e algumas noites, aconteceu na Alemanha a décima terceira megaexposição de trabalhos artísticos intitulada Documenta (de Kassel - nome da cidade em que ela se localiza), considerada um dos eventos mais importantes do mundo contemporâneo, no qual se reúnem personalidades do moderníssimo, do moderno ou do que é considerado o melhor e mais tradicional no mundo das artes do espaço, a partir do Modernismo. Ao longo de três meses, artistas, acadêmicos e amantes das artes participaram, no verão do hemisfério norte do ano de 2012, de uma contundente demonstração do que a apresentação de um Documenta pode trazer de abertura para as artes em sua luta em prol de questões estéticas e democráticas. Mais uma vez a pacata cidade de Kassel, de aproximadamente 200 mil habitantes naquele momento, se deparou com a peregrinação contundente dos seguidores da arte. Segundo informações que podem ser facilmente obtidas na internet, a cada cinco anos ocorre a Documenta, que se tornou uma das mostras de arte contemporânea mais respeitadas internacionalmente. Por esse motivo, a localidade de Kassel é chamada de “Cidade da Documenta” (desde 1999), que a partir do ano de 1982, tem exibida em uma parte turística de seu território a instalação A picareta, de autoria de Claes Von Oldenburg[1],  como símbolo da cidadezinha alemã.

Os primórdios da Documenta remetem ao ano de 1955, e tiveram como palco uma Alemanha devastada pelo rastro do nazismo. A própria documenta, segundo se divulga, foi criada como uma reação ao devastamento cultural imposto pelo sistema nazista ao país, pois dele foram banidas várias vertentes da arte e da cultura alemã como um todo, a exemplo do Modernismo. A mostra intitulada Documenta surge, portanto, após o final da Segunda Guerra Mundial e tem por objetivo preservar e reativar tendências artísticas ameaçadas pelo nazismo, a fim de reposicionar a Alemanha no circuito da cultura internacional. Arnold Bode, arquiteto exilado pelo sistema hitlerista quando ensinava pintura Universidade de Berlim, com o fim da guerra, retornou e tornou-se professor de arte e design. Proveniente da cidade de Kassel, Arnold foi quem idealizou o primeiro evento, realizado no contexto do Festival Nacional de Paisagismo, exibição que, em seu surgimento em 1955, atraiu para Kassel 130 mil visitantes.

As primeiras atividades da Documenta aconteceram em espaços públicos, nos jardins da cidade e em ruínas dos prédios históricos, como é o caso do Fridericianum (finalizado em 1779 e concebido como um dos primeiros museus do continente europeu e atua até hoje como sede principal da exposição). Em 2012, houve a décima terceira edição deste evento e desta vez, ele utilizou um maior número de espaços, espalhados pela cidade como palco para as obras selecionadas. Seu panorama foi muito mais eclético, tendo incluído desde a conhecida exibição em museus, até outros e inesperados espaços, como hotéis, a secretaria de finanças da cidade, um bunker, um campo de concentração, um hospital desativado, um escritório, várias habitações privadas, casas de baile e até um cinema. Muitos dos locais escolhidos em 2012 são construções do período pós-guerra que se encontravam desfiguradas de sua concepção original. Em sua maioria, foram idealizadas pelos irmãos Arnold e Paul Bode, que muito influenciaram a reconstrução da cidade na década de 1950. A reutilização desses locais – que hoje servem como espaços de exposição, considerando o novo conteúdo que eles abrigam – foi a forma encontrada para promover uma revisão geral sobre a Alemanha e sua situação no período pós-guerra.

O alcance da exposição de 2012 se estendeu às cidades de Cabul, no Afeganistão, Alexandria, no Egito, e Banff, no Canadá, num empreendimento bastante amplo que, espero, não descaracterize a função transformadora da Documenta para transformá-la, no campo das artes, em um padrão FIFA, como se vê hoje em dia nos esportes, com conglomerados lucrando muito e administrando superpoderes.  

Por cem longos dias e algumas noites – considerando que a programação se estendeu noite adentro, além da distinção do fuso horário das cidades-sedes da mostra – o material em exibição foi levado a um público muito maior e em locais muito distantes graças aos recursos tecnológicos atuais. Com o avanço da tecnologia, por exemplo, usando-se desses recursos, não se precisa ocupar mais um enorme auditório, pois nossas atividades costumeiras, como professores de literatura, tais como congressos, seminários, palestras, podem ser acompanhadas em computadores portáteis e outros gadgets com a mesma função, não só dentro dos muros dos auditórios das universidades, mas também ao longo das cidade, do país e até fora do país, bastando que o evento seja acessado pelo site que consta da programação distribuída pelas redes sociais. 

Novos meios tecnológicos, mercados diferenciados, mercadoria no mundo virtual, nossos pensamentos e palavras são veiculados em tempo real, um verdadeiro recorde em relação às antigas sessões plenárias, a portas fechadas, num trabalho desgastante que era a prévia do livro, cujo alcance, em velocidade, é menor do que a nossa voz e vídeo levados à distância, simultaneamente ao que se realiza em um determinado aqui e agora. Todavia, se isto parece ser um grande multiplicador, também nos priva da presença e do calor do público maior. Prós e contras considerados, não se pode e nem se deve sacralizar ou demonizar o mercado e o meio que é a mensagem ou a massagem. Do mesmo modo, também não se pode esquecer que, com o fim do mecenato da aristocracia reinante até o século XVIII e com o surgimento do mercado trazido pelo capitalismo inglês daquela época, os artistas, as artes e suas obras tornaram-se, todos, parte das mercadorias do mundo burguês e capitalista formado a partir de novas formas contratuais escritas, das quais a Inglaterra do Robinson Crusoe é um exemplo tácito.

A literatura, as artes e o mercado formam a partir de então um par-ímpar: a arte em face do mercado, arte vista e vendida como mercadoria, uma arte cada vez mais mercadejada e uma arte que, cada vez mais, também parece criticar e temer o mercado de força devoradora. Lembremo-nos da ironia de Andy Warhol, ao preconizar os 15 minutos de fama fugaz de cada um, não se precisa nem ter um trabalho que de fato se destaque, mas basta que se apareça em uma mídia forte, como a televisão dominante em um determinado local. Após o avanço da tecnologia para o mercado e a divulgação mercadológica da arte e/ou da literatura, ninguém está fora do risco de ser celebrizado e/ou mesmo tragado, fugazmente, em função do mercado. No entanto, ficar em uma enumeração dicotômica, não nos leva muito longe, pois as artes e o mercado não merecem ser tratadas de modo maniqueísta e administradas por uma lógica muito pobre para que se possa se encarar um problema que cresce de complexidade cada vez mais rapidamente, e se avoluma em importância, demandando um trabalho interpretativo e questionador mais profundo, que cubra de forma sutil e com delicadeza, a angulação prismática do problema.

Focalizando de perto a Documenta, vê-se que ela abre um mercado que se vincula à retomada da memória reprimida e ao holocausto, bem como quis promover a reformulação do mundo e, ainda, pensar e repensar as artes antes ditas “artes plásticas” e suas separações pelo sistema das artes elaborado por Hegel no Romantismo, artes do espaço hoje chamadas “instalações”. No passado, como agora, para além de nacionalismos e nacionalidades, pela linguagem verbal de alguns de seus títulos, emitem-se ressonâncias culturais que as outras artes fazem à literatura (e vice-versa) e aos movimentos literários das vanguardas históricas de pré e pós-duas grandes guerras e, até, de trabalhos clássicos. Pode-se mesmo dizer que um dos mais fortes paradigmas a chamar atenção nas diversas realizações da Documenta em Kassel, e no impulso de recuperação, crítica e transformação que as gerou, é o vínculo entre memória, exílio, perda e ficcionalização da memória, do modernismo para cá.

É interessante notar que este paradigma também se encontra bem representado por certa forma de pensar e fazer literatura, como a do gaúcho Michel Laub, em Diário da queda (2012); a do sul-africano hoje australiano J. M. Coetzee, em Diário de um ano ruim (2011) e, antes, pelo trabalho fascinante de outro brasileiro, o escritor Carlos Süssekind, em Armadilha para Lamartine (1976).

Cabe perguntar e melhor situar a indagação: por que será que a memória se torna, com seus associados – o esquecimento e a revelação, a palavra e o silêncio, o denegado e o recalcado – o recorte privilegiado para as várias Documenta e para certa literatura e certa crítica que não se desejam nem paralisadas nem mudas? O momento finissecular do século XIX para o XX, a exemplo de Proust e de Machado de Assis, sublinhou com finura a discussão da memória e da busca do tempo perdido, bem como a suposta recuperação do antes no que vem depois, e no que isto tem de possível e de impossível, além da imensa dose das singulares ocorrências do precário e do cruel. Esta foi uma lição que não restou quieta, nem na Europa, nem no Brasil, na melhor literatura.

O belo texto de Michel Laub, Diário da queda (2012) é um exemplo disto, com sua fábrica de trama sensível, capacidade de reflexão sobre a literatura e que agora enlaçamos com o trato da memória e da ficcionalização nas várias Documenta de Kassel. A expressão vida diária, que denota a relação entre passado e presente, esteve no seio das intenções da criação, em 1955, da Documenta de Kassel na investigação que procedeu (e ainda procede) na vida diária do mundo alemão e deste no espaço do capitalismo globalizado. E a expressão o “diário” consta, de modo explícito, do livro de Michel Laub, Diário da queda, e também do de Coetzee, Diário de um ano ruim. Ela surge como palavra maldita, sustentáculo e traição, móvel de reflexão tentadora, ao sugerir não apenas algo que será registrado como forma de memória capaz de captar e registrar o tempo, mas também o íntimo, além de simular a pessoalidade convencional do que, de certo modo, seria jornalístico e diário, urdindo e ficcionalizando as fronteiras muitas vezes tênues e ambíguas do território pantanoso da intimidade e da mundaneidade.

Laub oferece um texto bem cuidado e bem escrito, de estilo minimalista, que segue as pegadas de um narrador que maneja tanto a memória lembrada, quanto a inventada, elaborando uma construção em prismas que partem de uma espécie de resíduo das montagens cubistas, funcionando como móvel do memorável e cruel diálogo do filho que perpetua roubos no diário do pai, vingando-se dele neste gesto em que reverbera o texto de outro autor e outro romance, Armadilha para Lamartine (no jogo bem entramado da palavra da figura narrativa do filho com a narrativa da figura paterna) e, no livro de Michel Laub, com o jogo da leitura e da escrita do narrador, com a memória do avô no registro deixado quando este descobre que estava no início do mal de Alzheimer, uma doença que se acentua como sendo a moléstia do esquecimento. Em Coetzee, a expressão o diário remete não só ao que saiu nos jornais durante o período de um ano, mas também a um processo de intimidade e de adoecimento, o Mal de Parkinson do Senhor C., num relato que assume a uma forma híbrida na qual se entrecruzam ensaio e romance, além de jornalismo, num processo que renova uma velha e magnífica chave de construção da narrativa, apoiada na tradição ocidental mais remota, a dos textos em palimpsesto, textos sobre textos, apagamento e reescrita de papiros, nas trilhas da memória e nas armadilhas da desmemória, para o reaproveitamento do material raro e caro. Construir, lembrar e esquecer são três núcleos fortes da arte contemporânea, seja nas exibições das treze documentas realizadas até agora, seja nos três livros que trazemos até o público aqui presente.

Tudo isso leva a repensar o que gregos pré-socráticos um dia definiram como a trajetória dos homens, ou seja: o movimento difícil e tenso entre a aletea (a luz e a revelação) e o pseudo (o erro, o esquecimento, a sombra). Enfim, para o pensamento grego do século V antes de Cristo, os humanos conviveriam, entre si e consigo, com o empilhamento de lascas brilhantes e de sombras opacas, na dinâmica de um movimento formado por fragmentos de memória e de esquecimento, permanecendo envoltos numa ambiência que nos aprisiona a todos na incapacidade de se definirem com exatidão as instâncias do claro e do escuro, da loucura e da sanidade, do excesso e da boa medida, questões de que o Bruxo do Cosme Velho, o nosso Machado de Assis, tirou tanto proveito com ironia, elegância e capacidade de ser um precursor que o coloca no plantel dos grandes escritores nacionais e internacionais, como é hoje reconhecido.

O riquíssimo texto de Michel Laub – como se fosse o labirinto em que se havia encerrado o Minotauro – recomeça várias vezes –  com um personagem narrador voltando sempre (ou simulando fazê-lo) ao diário do avô, construindo sua escrita sobre a escrita de outrem, à maneira de um palimpsesto, estratégia a partir da qual se tem uma imagem primeiramente em tríade: o avô, o pai e o neto; e em duplo: o filho, o neto; e o avô, o pai. E com a imagem do pai e do avô, ao mesmo tempo remetendo à vida vivida e a configurações de duas personas narrativas que remetem e partem de duas vidas ficcionalizadas, que se entrecortam, cruzam e descruzam muitas vezes.

Em o Diário da queda, de Michel Laub, culpa e sadomasoquismo, solidão e rememoração conjugam perspectivas e sentimentos que alimentam o jovem narrador torturado pelo ato de remoer, afundando-se não só por essas memórias, mas também pelo mundo oceânico do alcoolismo em que se lança ao fugir de suas obsessões, encerrando-se numa armadilha de solidão e isolamento. Outra obra que retrabalha a questão da memória e do diário, precursora da de Laub, por muito antes dele desconstruir fórmulas passadas e que deve ser trazida neste momento, no campo da literatura brasileira, é o intrigante texto Armadilha para Lamartine publicado por Carlos Süssekind, em 1976, como anunciado em outro momento deste texto. Livro singular, ele se realiza por uma escrita em palimpsesto, como se fosse um papiro no qual se reescreve, sobre antigas versões, outras formas de dizer e de estar no mundo. Outra aproximação deste livro com o de Laub é que o diálogo com o tema da loucura e o da embriaguez remete a um mundo ao mesmo tempo apolíneo e dionisíaco, dilacerado e esmagador nos seus contrastes e contradições, habitado por fantasmas da imaginação e do delírio, no qual a narrativa traça o percurso da (de) formação do jovem, a partir da escrita do diário do pai, que o interna como louco, diário de que o filho se apossa, enquanto narrador segundo, praticando um roubo e um gesto que se quer ao mesmo tempo vingativo e cruel e que, em tensão, ambiguamente posto, funcionaria, do mesmo modo, como purificação da violência disseminada pelo gesto do pai de aprisionar o filho em um manicômio.

Já em Diário de um ano ruim, de Coetzee, o Mal de Parkinson faz com que o Senhor C. perca a sintonia fina dos músculos da mão e não possa cumprir a tarefa que lhe propôs um editor alemão, a de registrar, por um ano, o que de mais importante saia nos jornais e fazer ensaios sobre estes assuntos. A narrativa mistura ensaio e romance, tematizando o desejo de escrever e de ser capaz de exercer a libido, no intenso e silencioso tumulto interior de um homem que envelhece, abrindo-se e fechando-se sobre o contemporâneo: sobre o que vai pelo mundo íntimo dos homens e pelo que vai pelos jornais. Nesta trajetória, o texto simula um diálogo entre as opiniões fortes –  as quais se voltam para o mundo exterior; e as opiniões fracas, que implicam o mundo das coisas íntimas e sensíveis, como o sonho e a obra de Dostoievski. Mas nada disso é feito de forma esquemática, pois mundo e interioridade se misturam na ótica triádica do Senhor C, de Anya, sua digitadora e de Allan, o amante desta, num dialogismo de fazer inveja a Bakhtin.

Registrar a memória, procurar reinseri-la em si e, nisto, encontrar-se com o outro e reencontrar-se, é também, e inapelavelmente, confrontar-se com o esquecimento e a fragmentação, numa textualização na qual a escrita é uma forma ser, de dizer e de adoecer, nos três livros examinados brevemente. Como queria Lispector, escrever é uma maldição, mas uma maldição que salva. Esse caráter de salvação, tão buscado por Lispector à luz da linha e da entrelinha, não é tranquilo como eixo de interpretação nos três autores aqui citados: Laub, Süssekind e Coetzee. Nas três obras, a nostalgia da salvação é revista e rasurada, como num mercado de identidades que se afirmam e anulam, e num deslocamento de subjetividades que se esvaziam e se perdem, em miríades de lascas brilhantes, num brilho cego e sem lembranças, que se depara com a escuridão do segredo da errância da vida para a morte, da sanidade e da loucura sempre articuladas e temidas, e sempre em busca de uma memória que não se completa nunca, que resvala e nunca se entrega.

Mas isso não é de todo mau. Essa memória enfronhada no agora não pretende mais reconstruir o que veio antes, como queria Dom Casmurro fazer na Casa de Matacavalos, nem está mais proustianamente em busca do tempo perdido. Nela, é o presente de uma consciência dilacerada e vigilante, que brilha e apaga, no lusco-fusco de um agora, onde a vida e a ficção se tramam. Isto remete às voltas que o mundo dá, lembra os lances de dado e os enlaces de elos, como nos três romances aqui abordados nos quais três subjetividades estão em cruzamento. Romances nos quais uma escrita em palimpsesto constrói a dimensão do um no outro, talvez a mais rica de todas, em uma sociedade planetária programada para a solidão, para a planificação e para a repetição não criativa de chavões e modelos que se reproduzem, infinitamente, simulando o curso do desejo e apagando o eixo do desejante, transformando os seres em personas, em seres modelados, postos em mercado, mercadorias, em vidas desperdiçadas, como antecipa Zygmunt Bauman.

Sobre isto é fundamental, a caminho do fim destas considerações, que se fale de uma instalação, muito bonita, exibida pela indiana Sheela Gowda, na XII Documenta de Kassel, em 2007.[2] Sheelanos oferece um lindo poema visual, intitulado “And” [E]. Não é mais o eu voraz e farto, que não se contém, como nas utopias da entidade o EU, no Romantismo, mas o E, o And, que fazem prosseguir, que ligam um espaço ao outro e no outro, num mundo de coisas e seres que se enlaçam. E que, sublinhe-se, não se excluem, nem se fecham numa unidade homogênea, totalizante, totalizadora nem totalitária.

Os textos literários abordados neste artigo inserem-se no “paradigma do E” e, não, no paradigma do “Eu”: o sujeito que nela fala não se pretende pleno. Sendo frágil e muitas vezes estando esvaziado, é aberto e propõe uma abertura para o outro. Que nada seja, para o outro, você, leitor, meu ouvinte. E, não esqueçamos, o E pode abrir o Eu para o mundo.

Para além da picareta, nossa primeira imagem, instrumento de trabalho, tão literal e” real” (e como a realidade é necessária, para não nos desumanizarmos!), a imagem da instalação[3] de Sheela Gowda não surge como algo fácil a seus leitores. Ela demanda muita interpretação e muita abstração. Um dia, em uma turma de pós-graduação, uma aluna me perguntou: “Afinal, professora, quem lê Coetzee? ”. A pergunta talvez denuncie o fato de que esta literatura de que lhes falei não é exemplo de sucesso mercadológico, num certo sentido de mercado e de mercadoria.

Será que está embutido no fracasso de vendas, um êxito da qualidade? Esta situação pode ser considerada uma regra? Fracassar com o grande público seria, hoje, a demonstração de sucesso da literatura e da arte que desafiam a pasmaceira mental e a voracidade material deste momento histórico? Será que é preciso “fracassar’ nos lucros ou na ambição meramente material para bem suceder? Aliás, o que é ser bem-sucedido? Será que é não ser um loser – como na tão conhecida expressão popular norte-americana? São tantas as perguntas sem resposta.  Lembrando de uma personagem de Maria Gabriela Llansol que diz: –  “Perguntar quem sou é pergunta de escravo. É preciso perguntar quem me chama”. E quem chama Coetzee? E quem chama Laub para perto de seus olhos e de suas leituras? Afinal, quem lê Coetzee? E Laub? Aos que leem estas páginas, esperamos que a breve seleção de considerações aqui reunidas possa vir a instrumentalizar a discussão destas e de outras questões vinculadas à propagação das artes e da literatura pelo mercado, após o momento terrível do holocausto e da era dos extremos, conforme a expressão usada pelo conhecido do historiador inglês Eric Hobsbawm para nomear o século XX.  Este ainda mais breve século XXI sugere que as marcas da destruição e do totalitarismo estejam próximas de serem extintas? Sem profecias, the world is out of joint.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

______. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

COETZEE, John Maxwell. Diário de um ano ruim. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

______. Diary of a bad year. London: Harvill Secker, 2007.

GOWDA, Sheela. And. Disponível em: http://www.dw.com/pt-br/itiner%C3%Ario-pela-12%/C2AA-documenta-de-kassel-2/a-2749250

HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos. O breve século XX 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. Revisão técnica Maria Célia Paoli.  2. ed.  9. Reimpressão São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

LLANSOL, Maria Gabriela. O livro das comunidades. Geografia de rebeldes. Porto: Afrontamento, 1977, p. 98.

OLDENBURG, Claes Von. A picareta. Imagem disponível em: http://www.dw.com/pt-br/a-documenta-de-kassel-um-panorama/a-2619744

SÜSSEKIND, Carlos.  Armadilha para Lamartine. Rio de Janeiro: Labor, 1976.

 

Received May 7, 2017; Accepted August 10, 2017

Notas

[1] Cf. a imagem de A picareta, símbolo de Kassel, no site: http://www.dw.com/pt-br/a-documenta-de-kassel-um-panorama/a-2619744 . A instalação foi colocada na cidade a partir da X Documenta, que ocorreu em 1982.

[3] Segundo observações do curador Rogel Buergel, no mesmo site indicado, creio que se pode estender o que ele diz sobre as imagens de fios vermelhos, que constam de uma outra instalação de Sheela Gowda, os fios vermelhos que se veem nesta instalação também podem remeter, quem sabe, a uma abstração minada de sugestões metafóricas, como a das tecelãs indianas. E na tessitura dos elos que envolvem o ato de tecer, uma insistência que constato entre as duas imagens, a arte e a literatura tecem, para os homens, suas pontes para o pensamento, o não simétrico ao real, vislumbrando novas possibilidades para a liberdade da criação e da convivência, como acentuam os escritores comentados e suas obras que escolhemos para este breve comentário.

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