Memórias de Chateaubriand no Brasil

Memórias de Chateaubriand no Brasil

Regina Zilberman[*]

[*] Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


RESUMO:

François-René de Chateaubriand publicou Atala em 1801, obtendo rápido sucesso na França e nos lugares onde foi traduzido e lido. Seu impacto em autores brasileiros, como Teixeira e Sousa, Gonçalves de Magalhães, José de Alencar ou Machado de Assis, pode ser constatado, ao se analisar o modo como o Indianismo passa a ser praticado pelos românticos nacionais. Também nas Memórias póstumas de Brás Cubas Machado de Assis dialoga com a obra de Chateaubriand, embora a referência apareça de modo sutil e truncado. O trânsito de Chateaubriand pela literatura brasileira ao longo do século XIX faculta a reflexão sobre a circulação de ideias e poéticas, considerando a oscilação entre endosso e negação, certificação e apagamento.

Palavras-chave: Atala; Chateaubriand; Teixeira e Sousa; Memórias póstumas de Brás Cubas; Machado de Assis.


Abstract: François-René de Chateaubriand’s Atala was published in 1801, achieving success in France and in places where it was translated and read. Its influence on authors such as Teixeira e Sousa, Gonçalves de Magalhães, José de Alencar and Machado de Assis, can be stated by analyzing how European Indianism was adopted by Brazilian romantics. Additionally, in The posthumous memoirs of Brás Cubas, Machado de Assis deals with the works of Chateaubriand, although the references appear in a subtle and truncated mode. The appropriations of Chateaubriand by Brazilian writers throughout the nineteenth century enable the understanding of the circulation of ideas and poetics, considering the oscillation between endorsement and denial, certification and deletion.

Keywords: Atala; Chateaubriand; Teixeira e Sousa; The posthumous memoirs of Brás Cubas; Machado de Assis.


Não era cedo para fazer versos cristãos. Chateaubriand, desde o alvor do século, louvava as graças nativas do cristianismo,
e descobria, cheio de Rousseau, a candura do homem natural.

Machado de Assis (“Garrett”, ASSIS, 1959a, p. 255)

Em 1801, François-René de Chateaubriand (1768-1848) publicou a novela Atala, ou Les amours de deux sauvages dans le désert, que originalmente deveria fazer parte do ambicioso O gênio do Cristianismo. René, de 1802, também precedeu o lançamento daquele livro, obra em que coloca a religião católica no centro das preocupações artísticas do escritor francês (SERRY, 2004, p. 129).

Editorialmente, as duas novelas foram muito bem sucedidas, e Atala viu-se logo traduzida para outros idiomas. Em Portugal, foi publicada primeiramente em 1810; em 1819, a Tipografia de Manuel Antônio da Silva Serva lançou, na Bahia, a versão brasileira, seguida em 1820 pela edição da Impressa Régia, de Lisboa. Nessa cidade, em 1827, é a Régia Tipografia Silviana que a imprime. A triste história da jovem americana enraizava-se na tradição luso-brasileira, afetando o modo com que, dos dois lados do Atlântico, se entendiam as relações entre Europa e Novo Mundo.

A circulação da obra de Chateaubriand no território brasileiro não se restringiu, porém, à publicação e leitura de Atala, pois René, pertencente ao mesmo ciclo, foi também bastante popular. As convicções religiosas do autor, somadas à valorização do indígena americano, convinham a intelectuais que acreditavam ser sua incumbência fundar e, ao mesmo tempo, consolidar uma literatura nacional. Além disso, as principais referências de nossos letrados em matéria de História da Literatura – Ferdinand Denis (1798-1890) e Almeida Garrett (1799-1854), entre os europeus, Gonçalves de Magalhães (1811-1882) e Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891), entre os brasileiros –, cultuavam, sobretudo o primeiro, o escritor bretão, em especial O gênio do Cristianismo e Os mártires. Logo, aceitar as sugestões de Chateaubriand era, simultaneamente, integrar-se às vertentes do pensamento historiográfico, emergente nas primeiras décadas do século XIX.

No país que alcançara recentemente a independência, a questão apresentava duas facetas, de certo modo, contraditórias: de um lado, era preciso alavancar uma literatura nacional, para superar o espectro desenhado por Magalhães, segundo o qual “a poesia do Brasil não é uma indígena civilizada, é uma grega, vestida à francesa, e à portuguesa e climatizada no Brasil” (MAGALHÃES, 1836, p. 146); de outro, cabia narrar a história dessa literatura praticamente ausente, tarefa a que o autor de Suspiros poéticos também se propõe, sem sucesso, contudo. Uma alternativa era recorrer ao pensamento dos estrangeiros que reconheciam valor na cultura americana original, anterior à ocupação europeia, integrando-a a uma visão de mundo cristã, bônus recompensador para quem não gostaria de romper com a tradição religiosa originária do Velho Continente e que legitimara a colonização da porção territorial americana que competira à metrópole lusitana.

François-René de Chateaubriand, popular em sua pátria e, depois, em várias nações do Ocidente, tinha muito a disponibilizar a seus pares brasileiros, possibilitando que se reflita sobre o modo como ocorreram as “trocas e transferências literárias e culturais” (JOBIM, 2008, p. 105) no alvorecer da história da literatura nacional.

O Indianismo

A associação entre os povos indígenas e o continente americano, segundo a qual os primeiros legitimamente representariam o segundo, remonta às primeiras décadas da conquista e povoamento do território situado a Oeste da Europa. O sucesso, em 1557, do livro do alemão Hans Staden (1525-1576) – História verdadeira e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América –, com título e imagens alusivas aos rituais antropofágicos praticados pelos tupinambás, colaborou para fortalecer a representação do indígena como bárbaro.

Essa concepção altera-se nos séculos XVII e XVIII, quando pinturas que decoram suntuosas residências da aristocracia europeia incluem imagens alegóricas dos continentes então conhecidos. A América é representada por caciques ornados de penachos coloridos, como se vê na antessala do Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes (v. Figura, em anexo). Belos e atléticos, os indígenas mudavam de status, mas mantinham seu papel, antropomorfizando a região geográfica onde residiam, sem que se estabelecessem distinções étnicas ou culturais entre eles, conforme a interpretação dos artistas plásticos.

Em língua portuguesa, é na literatura dos viajantes e cronistas do século XVI que os habitantes da colônia lusitana aparecem sob o ângulo cruel de suas práticas e concepções. Na esteira do relato de Hans Staden, Pero de Magalhães de Gândavo (1540-1579), na História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de 1576, refere-se ao “bárbaro gentio”; e, na célebre formulação relativa a seu vocabulário, o cronista informa que suas palavras “carece[m] de três letras, convém a saber, não se acha[m] nela[s] F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei”, justificando porque “vivem desordenadamente” (GÂNDAVO, 1576, s. n. p.).

Nos séculos seguintes, os luso-brasileiros preferiram acompanhar o prisma oferecido por artistas franceses e alemães. Os indígenas, ainda os representantes credenciados do mundo americano, deixaram de ser expressões da barbárie primitiva, exibindo-se enquanto seres racionais, habilitados, ao contrário do que declarara Gândavo, a se expressar com argumentos lógicos e plenos de recursos retóricos. Cacambo, o cacique guarani que protagoniza O Uraguai, de Basílio da Gama (1740-1795), expõe com irrefutável coerência por que os portugueses e espanhóis devem evitar guerreá-los, deixando seu povo em paz. Em “O sonho”, de Alvarenga Peixoto (1742-1792), o “Píndaro americano”, como o designa o poeta, manifesta de modo cortês sua lealdade a Portugal:

Sou vassalo, sou leal;
como tal,
fiel constante,
sirvo à glória da imperante,
sirvo à grandeza real.
(PEIXOTO, 1960)

Quando o Iluminismo se mescla às ideias expostas por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754, ou em Do Contrato Social, de 1762, o nativo americano recebe um atributo a mais, sendo promovido a exemplo do “homem natural” ou do “bom selvagem”, valorizado por aquele filósofo. O brasileiro Antônio Pereira de Souza Caldas (1762-1814) pode ter sido sensível àquelas ideias, razão provável do prestígio de sua “Ode ao homem selvagem”, de 1785, elogiada pelos primeiros historiadores das literaturas em língua portuguesa.[1]

Nesse poema, o eu lírico manifesta entusiasmo diante da “augusta imagem de esplendor subido”, que “se figura” diante dele. Presencia sua nudez, que admira porque ele está “de graça e de valor vestido”. Por sua vez, “no rosto a Liberdade traz pintada / De seus sérios prazeres rodeada” (CALDAS, 1821, p. 128). Tal como os árcades, identifica a racionalidade superior desse sujeito:

O Razão, onde habitas? na morada
Do crime furiosa,
Polida, mas cruel, paramentada
Com as roupas do Vicio; ou na ditosa
Cabana virtuosa
Do selvagem grosseiro? (CALDAS, 1821, p. 129)

Ao final, o eu lírico lamenta a perda do “primitivo estado”, que explica por que “o lindo canto das Musas se trocou em triste pranto” (CALDAS, 1821, p. 131).

Embora formados intelectualmente pelo Iluminismo e praticantes da poética arcádica, os poetas brasileiros não poderiam ser considerados ateus. Ainda assim, não se identifica perspectiva religiosa, menos ainda cristã, em seus versos, o que condiz com o pensamento filosófico e a poética que abraçam.[2] Por sua vez, as décadas finais do século XVIII, convulsionadas pela revolução de 1789 na França e pelos movimentos separatistas que, impulsionados pelo sucesso da emancipação norte-americana, começam a se manifestar nas colônias do Novo Mundo, não propiciam a retomada de concepções espiritualistas ou religiosas. Pelo contrário, estimulam a valorização da cidadania e do Estado laico, ao lado de uma poética que vê o modelo a imitar nas expressões do Classicismo, herdeiro do Humanismo antropocêntrico da Antiguidade e dos primeiros séculos do Renascimento.

É esse pano de fundo que particulariza o lançamento de O gênio do Cristianismo, de Chateaubriand, precedido pelas novelas Atala e Renê.

Indianismo com Cristianismo

A rejeição ao Classicismo, proposta pela poética romântica, foi acompanhada da recusa do paganismo, evidente nas imagens dos deuses e heróis greco-romanos que povoavam os versos arcádicos em circulação na segunda metade do século XVIII. Desde o Renascimento, os mitos clássicos eram recorrentes nos gêneros nobres resgatados da Antiguidade, mesmo quando se mesclavam a eventos posteriores à decadência de Atenas e Roma, como as Cruzadas, em Jerusalém libertada (1580), de Torquato Tasso (1544-1595), ou a travessia ultramarina de Vasco da Gama, em Os Lusíadas (1572), de Luís de Camões (1524?-1580?). Dante Alighieri (1265-1321) soubera saltar as fronteiras que separavam os mundos pré e pós-cristão, mesmo quando incluíam protagonistas da Bíblia hebraica, como Moisés, deixado na sala de espera do Inferno, ou da poesia clássica, como Virgílio (70 a. C.-19 a. C.), que guia o autor por aquele espaço abissal. Camões não fora tão hábil, o que custou caro ao poeta português, tendo sido criticado por colocar, lado a lado, o ideário cristão, que move a travessia de seu herói na direção da Índia, e a colaboração dos deuses olímpicos, como Júpiter, Vênus e Tétis, cujo auxílio garante aos navegadores a concretização de suas metas imperialistas.

Foram os românticos que resgataram o poema épico de Camões, por se tratar de uma epopeia nacional e por considerar que as intromissões pagãs constituíam mero ornamento, sublinhando o teor religioso e cristão do conjunto dos versos.[3] O idealismo romântico, sobretudo em línguas românicas, era predominantemente católico e conservador, tendo sido a conversão de Chateaubriand sintomática da adesão àqueles valores espirituais e políticos. A ambição do escritor francês concretiza-se em O gênio do Cristianismo, de que Atala faria parte, mas de que se independizou graças ao sucesso alcançado.

Atala narra o amor infeliz entre a jovem indígena que nomeia a obra e Chactas, que, idoso, narra o episódio marcante de sua juventude. A moça é mestiça e educada conforme os princípios do Cristianismo; embora não pertença a nenhuma ordem religiosa, fez um voto de castidade, o que a impede de desposar o amado. Dividida entre a promessa de manter a virgindade e a paixão, Atala suicida-se, para desespero e solidão de Chactas.

A narrativa segue o padrão de representação do mundo americano, em que a paisagem natural predomina, compondo uma unidade com as personagens nativas. Mas introduz igualmente figuras que representam o mundo europeu e civilizado – o espanhol Lopez, que educa o menino Chactas, após sua tribo Natchez ter sido derrotada pelos inimigos Muscogees; e o Padre Aubry, que acolhe o casal, quando este foge dos Seminoles, que o haviam aprisionado. Lopez é também o pai de Atala, e Aubry, o religioso que procura liberar a moça de seus votos, fracassando em seu intento, o que conduz ao final trágico da novela.

A presença do europeu aliado ao indígena contraria o padrão até então acompanhado pelas narrativas e poemas que transcorriam em cenário americano. Também inovadora é a condição de que, para tornar o nativo apto a representar o “bom selvagem” ou o “homem natural” do pensamento rousseauniano, cabe fazê-lo passar pela conversão religiosa, abrindo mão de seu politeísmo original. A fusão racial é a face aparente da adoção de uma nova fé, monoteísta, de modo que, para Chateaubriand, e para seus seguidores, o homem americano é “bom” se não se mostrar tão “selvagem” ou tão “natural”, já que abraça a crença cristã, de que Chateaubriand é partidário.

O êxito do livro pode ser medido pelas edições de que foi objeto. Mas também por repercutir em autores brasileiros que se apropriaram de suas sugestões. Iracema, de José de Alencar (1829-1877), publicada em 1865, narrativa igualmente nomeada a partir da heroína que deve permanecer casta por ser filha do pajé de sua tribo tabajara, constitui o exemplo mais notável. Franklin Távora (1842-1888) acusa Alencar de plágio, o que pode parecer excessivo (LIRA NETO, 2006); mas é certo que o escritor cearense conhecia bem a novela de Chateaubriand, que emprega como parâmetro para avaliar o que A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães (1811-1882) tem de apreciável, nas cartas de 1856 impressas no Diário do Rio de Janeiro. Em uma delas, considera que “o terceiro e o quarto canto têm algumas inspirações felizes; a resposta de Aimbire ao jovem francês que lhe pede sua filha por esposa é, na minha opinião, digna de Chateaubriand nos Natchez ou em Atala” (IG, 1856, p. 33).

Da sua parte, Machado de Assis (1839-1908) vale-se de procedimento similar dez anos depois, quando compara a novela de Alencar não com Atala, mas com Renê, com o fito de evidenciar a excelência do texto brasileiro:

Iracema vai dar conta a Martim daquela boa nova; há uma cena igual nos Natchez; seja-nos lícito compará-la à do poeta brasileiro.

“Quando Renê, diz o poeta dos Natchez, teve certeza de que Celuta trazia um filho no seio, acercou-se dela com santo respeito, e abraçou-a delicadamente para não machucá-la. "Esposa, disse ele, o céu abençoou as tuas entranhas."

A cena é bela, decerto; é Chateaubriand quem fala; mas a cena de Iracema aos nossos olhos é mais feliz. (ASSIS, 1959a, p. 79-80)

Se o objeto da dívida se altera, no cotejo proposto por Machado, o credor permanece o mesmo. Em Como e porque sou romancista, Alencar relembra que aprendeu a língua francesa lendo no original a obra de seus escritores, chegando assim ao conhecimento de grande parte da produção de Chateaubriand, por quem nutre profunda admiração: “Quanto à poesia americana, o modelo para mim ainda hoje é Chateaubriand” (ALENCAR, 1963, V. I, p. 117).

Contudo, Alencar não importa do escritor francês a perspectiva cristã que acompanha o protagonismo de Atala. Iracema é o fruto proibido do Éden americano em razão da posição de sacerdotisa que ocupa entre os tabajaras, levando Alencar a deslocar o ato da conversão para outra personagem, Poti, que, após ritual apropriado, abraça a fé esposada por Martim e assume nome de Felipe Camarão. Um seguidor que adere com mais propriedade ao legado do Indianismo francês é Teixeira e Souza (1812-1861), autor de Os três dias de um noivado, publicado em 1844 pela Tipografia Imparcial, de Paula Brito (1809-1861).

Uma Atala brasileira

Ainda que o título sugira uma narrativa de costumes, Os três dias de um noivado consiste em um poema indianista, talvez o primeiro no contexto da poética romântica, como sugere José Verissimo (VERISSIMO, 1963, p. 163). A ação passa-se na região de Cabo Frio, terra natal do autor, à época dos primeiros colonizadores do território americano. As personagens são indígenas catequizados, que, todavia, não perderam os vínculos com sua cultura original. O protagonista é o poderoso cacique Corimbaba, que deverá desposar Miry'ba, cuja vida salvou e por quem se apaixonou. Miry'ba é também indígena, filha, porém, de um europeu, a quem julga morto, mas que reaparece nos últimos episódios do texto. Quando presencia os dois juntos, Corimbaba, que desconhece ser aquele senhor o pai da moça, é tomado pelo ciúme e mata a esposa. Ao descobrir a verdade, suicida-se, o que determina o clima melancólico do final da intriga.[4]

A dívida para com Chateaubriand evidencia-se de imediato, dadas a origem étnica da figura feminina principal, filha de um europeu que o noivo desconhece, e a catástrofe que conduz à morte dos amantes. Mas Teixeira e Sousa não almeja esconder a adesão à poética do primeiro Romantismo, configurada na prática indianista do escritor francês. Assim, no primeiro canto, compara sua heroína a Atala, ainda que o fito seja afiançar a superioridade de sua personagem:

Tu, que dos ermos ásperos, inóspitos
Do grão Meschacebeu viste os arcanos;
Que debuxaste dos agrestes íncolas
De involta aos usos seus beleza exímia,
Na melindrosa virgem das palmeira,
Com sublime pincel, Bardo sicambro,
Tua Atala gentil, tão pura, e meiga,
Perdoa, inda era menos que Miry’ba!
(SOUSA, 1844, p. 23-24)

E, temeroso de que o leitor pudesse não saber quem era o “Bardo sicambro”, faz questão de esclarecer em rodapé: “Mr. Chateaubriand: alusão à sua Atala” (SOUSA, 1844, p. 160). Em outra nota, vale-se do testemunho do poeta francês para justificar escolhas poéticas: “É na boca da desditosa Atala, que o célebre Mr. de Chateaubriand coloca este triste e melancólico canto, cuja primeira estância, e que serve de estribilho às outras, imitei” (SOUSA, 1844, p. 162).

Outros pontos aproximam os dois poemas: como na obra de Chateaubriand, Os três dias de um noivado inicia com caudalosa descrição do local onde transcorrerá a ação; além disso, os indígenas foram previamente catequizados pelos padres católicos, o que chancela sua benignidade e afasta-os do horizonte da selvageria e da barbárie com que foram representados no período colonial. Por outro lado, o poema de Teixeira e Sousa se filia não apenas ao emergente Romantismo, configurado sobretudo no exemplo da obra de Chateaubriand, mas também à tradição neoclássica em língua portuguesa:[5] adota a narrativa em versos brancos, como no Uraguai, de Basílio da Gama, ainda que dispostos em estrofes de tamanho irregular; e, como no Caramuru, de Santa Rita Durão (1722-1784), os indígenas suplantam a barbárie quando catequizados, a exemplo a caracterização de Corimbaba, que “dos padres de Jesus bebido havia / Deles costumes brandos e suaves, / Té mesmo erudição” (SOUSA, 1844, p. 19-20).

Também indício do compromisso com o neoclassicismo é o retrato de Miry'ba, cuja apresentação destaca sua beleza, enfatizada por comparações com figuras míticas, restaurando um pressuposto que o Romantismo vinha excluindo:

Se a linda americana Argivos vissem
Por Helena ou Campaspe a tomariam!
Nem muito fora se a roubara um Paris,
E por ela caísse em cinza inulta
Outra abrasada Ilion.
(SOUSA, 1844, p. 22-23)

Os rastros da Atala francesa não foram suficientes para Teixeira e Sousa dar o passo na direção de um Romantismo pleno, posição que, poucos anos depois, será ocupada por Gonçalves Dias (1823-1864), em Primeiros cantos, de 1847, em vertente, porém, pouco comprometida com o ideário religioso professado por Chateaubriand. É Gonçalves de Magalhães quem, em A confederação dos tamoios, de 1856, não perdeu oportunidade de introduzir pinceladas advindas do Indianismo francês em seus versos, como José de Alencar aponta. Não se tratava, porém, de uma apropriação tardia ou de um retrocesso, porque Iracema, produzida quase dez anos depois, ainda carrega consigo traços da infeliz seminole, prolongando por mais de cinquenta anos a sobrevida de Atala no Brasil.

Entrementes, Machado de Assis torna-se leitor e devoto do “Bardo sicambro”.

Chateaubriand viajante e as memórias de Brás Cubas

A admiração de Machado de Assis por Chateaubriand mostra-se desde seus primeiros escritos. Em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, publicado em 1858, a reprodução de uma frase daquele autor basta para avalizar o argumento do jovem brasileiro:

Compreendam-nos! nós não somos inimigo encarniçado do progresso material. Chateaubriand o disse: "Quando se aperfeiçoar o vapor, quando unido ao telégrafo tiver feito desaparecer as distâncias, não hão de ser só as mercadorias que hão de viajar de um lado a outro do globo, com a rapidez do relâmpago; hão de ser também as ideias". (ASSIS, 2008, V. III, p. 1004)

A seguir, reitera a adesão, indicando que “este pensamento [...] é justamente o nosso”, incluindo na mesma oração que se trata de uma concepção “daquele restaurador do cristianismo”. Na “Notícia sobre a atual literatura brasileira – Instinto de nacionalidade”, de 1873, ensaio em que reproduz algumas das posições expressas em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, Machado não volta a mencionar Chateaubriand; mas já o fizera em ano anterior, ao examinar, em 1866, a Iracema, de José de Alencar. Além disso, não deixa de se associar ao escritor francês nas Americanas, livro de poemas lançado em 1875, em que paga a dívida, ainda que tardia, para com o Indianismo.

Assim, na primeira edição do livro, em 1875, Machado inclui a “Cantiga do rosto branco”, extraída das Voyages en Amérique, de 1826, em que tem o nome “Chanson de la chair blanche”. Naquele livro, dedicado quase que integralmente à descrição dos povos indígenas da América do Norte, Chateaubriand destaca aquela canção, por representar a prática da poesia entre os Moscogulges, que, em suas festas, propõem contendas de canto de que participam as mulheres:

Os moscogulges são renomados pela poesia e pela música. Na terceira noite da festa do milho novo, reúnem-se na galeria do conselho e disputam o prêmio do canto. [...] As mulheres concorrem e frequentemente obtêm a coroa. (CHATEAUBRIAND, 1882, p. 240-241. Tradução nossa)

Ao introduzir o poema, Machado repete a informação de que a narrativa pertenceria originalmente “à tribo dos Molcogulges” (ASSIS, 1959b, p. 358), tendo sido traduzida “em prosa” por Chateaubriand. Da sua parte, Machado prefere apresentar a obra em versos, devolvendo-a, de certo modo, à sua versão original. E acrescenta que “tinham aqueles selvagens [os Molcogulges] fama de poetas e músicos, como os nossos Tamoios”. A comparação com a população ameríndia prossegue ao final da nota introdutória, quando o poeta observa: “Sobre o talento das mulheres para a poesia, também o tivemos em tribos nossas. Veja-se fernão cardim, Narrativa de uma viagem e missão” (ASSIS, 1959b, p. 358).

A comparação entre a abertura em um e outro gênero sugere como o escritor brasileiro mantém-se, mas não muito, fiel à fonte francesa:

Chanson de la chair blanche

Cantiga do rosto branco

La chair blanche vint de la Virginie. Elle étoit riche: elle avoit des étoffes bleues, de la poudre, des armes, et du poison français. La chair blanche vit Tibeïma, l’ikouessen. (CHATEAUBRIAND, 1882, p. 241)

Rico era o rosto branco; armas trazia,
E o licor que devora e as finas telas;
Na gentil Tibeíma os olhos pousa,
E amou a flor das belas.
(ASSIS, 1959b, p. 359)

Seja na nota introdutória, seja na tradução, Machado de Assis faz ouvir sua voz autoral. Primeiramente por equiparar práticas poéticas entre os povos nativos do norte e do sul da América, chamando a atenção para as habilidades artísticas de nossos indígenas, tema que fertilizara o debate intelectual sobre a propensão dos primeiros habitantes do território para a criação literária.[6] Depois, porque Machado não apenas contradiz a forma escolhida por Chateaubriand, como interfere no conteúdo do texto, conferindo-lhe identidade própria. Porém, não altera o teor da fábula, que narra o encontro entre o homem europeu e a mulher indígena, de que nasce uma relação amorosa mal-sucedida. Em ambos os textos, o choque cultural e étnico é exposto desde a perspectiva dos nativos americanos, que designam o estrangeiro por sua “carne branca” e pelas ricas propriedades trazidas do Velho Continente.

A “Cantiga do rosto branco” é excluída do conjunto de versos indianistas de Machado de Assis, quando, em 1901, ele organiza Poesias, do qual constam também os textos, mas não todos, das Crisálidas e Falenas originais, lançadas respectivamente em 1864 e 1870. Os demais poemas permanecem, e alguns não são menos devedores a Chateaubriand, como o que abre a coletânea, “Potira”, a “moça cristã das solidões antigas” (ASSIS, 1959b, p. 255), vítima da barbárie de um conquistador europeu.

O roteiro americano de Chateaubriand não aparece apenas no livro de 1826, de onde Machado de Assis extrai o poema que traduz. A passagem pelo Novo Mundo retorna, em foco retrospectivo e menos indianista, em sua obra póstuma, Mémoires d'outre-tombe (1849-1850). É esse texto que, aparentemente, teria inspirado as Memórias póstumas de Brás Cubas, impresso na Revista Brasileira em 1880 e, em livro, em 1881, ou, ao menos, o título e o tema escolhido. Contudo, é ainda o Chateaubriand viajante que se esconde nas entrelinhas de “Óbito do autor”, capítulo de abertura daquele romance, em o narrador comenta, ao testemunhar a reação de Virgília, amante dele à época da juventude de ambos, à sua morte, ocorrida poucos minutos antes:

E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o voo desde o Ilisso às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, – a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às ribas de uma África juvenil... (ASSIS, 1959c, p. 13)

Mais adiante, no capítulo V, “Em que aparece a orelha de uma senhora”, o narrador retoma a comparação, ainda sem identificar o nome da pessoa que o visitara no dia de seu falecimento: “Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporâneas suas, a anônima do primeiro capítulo, a tal, cuja imaginação à semelhança das cegonhas do Ilisso...” (ASSIS, 1959c, p. 23).

A referência intertextual não é esclarecida pela narrativa, ao contrário de outras tantas apropriações que o narrador faz questão de identificar. Linhas antes da primeira citação, Brás Cubas lembra Moisés e o Pentateuco, com o qual compara seu romance, e, logo depois, relata como se encaminhava para o “undiscovered country de Hamlet” (ASSIS, 1959c, p. 12). Nos trechos recortados, porém, a fonte fica obscurecida, pois o autor é apenas o “ilustre viajante”, que presenciou o voo das cegonhas, desde o Ilisso que banha Atenas, até as praias africanas. Poucas páginas adiante, as aves são de novo indicadas, ainda mais indeterminadas, pois desaparece até a alusão ao autor que recorda o episódio.

É na versão hipertextual de Memórias póstumas de Brás Cubas, disponibilizadas pelo site www.machadodeassis.net, que se desvela a procedência do comentário:

As "cegonhas do Ilisso" figuram no livro Itinerário de Paris a Jerusalém (1811), de Chateaubriand (1768-1848). O livro é considerado o fundador do gênero "diário de viagem". A passagem a que o narrador alude está no primeiro capítulo, "Voyage de la Grèce". A viagem das cegonhas do Ilisso aparece, também, no canto XV da obra Os mártires, do mesmo autor. Na Grécia antiga, o Ilisso era um rio divinizado, da região da Ática, que atravessava a cidade de Atenas e desaguava no golfo Sarônico, ao sul do porto do Pireu.[7]

Com efeito, Machado procede a uma mescla de citações, extraindo de Os mártires a referência às cegonhas que voam desde as margens do rio Ilisso – “Vejam estas cegonhas que se elevam neste momento desde as margens do Ilisso” (CHATEAUBRIAND, 1810, V. III, p. 13. Tradução nossa) – e da Viagem à Grécia a rememoração do narrador viajante: “Vi, quando estávamos na colina do Museu, as cegonhas em formação de batalhão voando na direção da África. Há dois mil anos elas fazem assim a mesma viagem” (CHATEAUBRIAND, 1811, V. I, p. 189. Tradução nossa). A combinação de trechos distintos, mas próximos por se referirem ambos a um mesmo cenário, a Atenas simultaneamente moderna e clássica, pode ser atribuída ao narrador póstumo, cuja memória da leitura de duas obras distintas de um único autor pode tê-lo levado a fundi-las. Aparentemente, o que lhe interessa é sugerir a imensidão da distância temporal entre o passado, época do caso amoroso com Virgília, e o presente da velhice dos dois, por intermédio da distância espacial que separa a península da Ática e o litoral africano. Não seria necessário ao leitor do trecho conhecer as obras originais que deflagraram a citação de Brás Cubas, bastando-lhe ter em mente o intervalo geográfico entre os continentes europeu e africano.

Por que Machado de Assis, criador de Brás Cubas, teria feito essa ginástica intertextual para dar conta do exercício de imaginação de Virgília, que, diante do agônico ex-amante, retorna momentaneamente à juventude? A primeira hipótese é a de que o escritor brasileiro não estivesse interessado em que fosse identificada, em seu romance, a presença de Chateaubriand, em 1880 um artista e intelectual fora de moda, optando então por referir-se unicamente ao “ilustre viajante”. A menção, vaga, seria acessível apenas a bons conhecedores de, pelo menos, mais de uma obra de Chateaubriand, mas esse provavelmente seriam ainda admiradores do novelista francês.

Machado mascara, assim, a procedência da citação, não apenas por suprimir o nome do responsável pelos textos, mas também por aglutiná-los em uma única formulação. Por outro lado, como uma delas provém de Viagem à América, que indiretamente faz parte das Memórias do além-túmulo, o capítulo de abertura e o capítulo V do romance confessam a dívida a esse livro, ainda que, de novo, omitam a fonte primeira. Trata-se, pois, de uma confissão de débito, mas truncada, como se fosse constrangedor deixá-la na integridade e facilmente reconhecível.

Uma segunda hipótese é a de que Machado de Assis desejou conferir verossimilhança ao protagonista das Memórias, formado intelectual e esteticamente pelo Romantismo, como ele relembra no capítulo XXII:

Não, não direi que assisti às alvoradas do Romantismo, que também eu fui fazer poesia efetiva no regaço da Itália; não direi coisa nenhuma. Teria de escrever um diário de viagem e não umas memórias, como estas são, nas quais só entra a substância da vida. (ASSIS, 1959c, p. 95)

Testemunha da emergência e adepto do Romantismo, ele teria sido leitor de Chateaubriand, sendo o trecho relativo às cegonhas do Ilisso resquício daqueles tempos. Por sua vez, vale lembrar que pertence àquele autor a Voyage en Italie, publicada pela primeira vez em 1827, obra a que se aplicaria a definição de “diário de viagem”, gênero recusado por Brás Cubas, ao contrário das memórias, escolhido por ele. Por um caminho ou por outro, Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, não escapa à teia tecida por Chateaubriand, ainda que busque minimizá-la, porque, à época de produção daquele romance, a referência ao escritor francês já não transferia seu prestígio a quem o citava. De algum modo, porém, uma outra memória, mais profunda, fala, e é essa que deixa escapar os lapsos de que o discurso do protagonista é testemunha.

A obra de Machado de Assis, desde o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura”, até Memórias póstumas de Brás Cubas, ponto de partida, segundo o romancista, de uma nova fase de sua produção ficcional, faculta, pois, acompanhar o percurso da participação de F. de Chateaubriand na literatura brasileira do século XIX. Um ídolo, uma voz a imitar, um exemplo a copiar; depois, um autor a ser apropriado, diante do qual cabe tomar respeitosa posição, mas, de alguma maneira, passível de ter suas formulações alteradas ou utilizadas para atestar a superioridade das criações nacionais; enfim, uma lembrança remota, talvez a evitar. Afinal, o Romantismo se extinguia no começo dos anos 1880, quando as Memórias póstumas de Brás Cubas começavam a aparecer nas páginas da Revista Brasileira; e o Indianismo saía de moda, embora Machado de Assis ainda o pratique em 1875, quando a geração mais jovem, representada pelo Franklin Távora das Cartas a Cincinato, questionava sua pertinência. Por último, e não menos importante, o escritor fluminense assumia, naquele romance, um ateísmo radical, de que é exemplo o capítulo VII, em que narra o delírio do protagonista em fase terminal. O idealismo e o catolicismo de Chateaubriand, evidentes ainda nas Americanas, tornavam-se insustentáveis, e o abandono daquele autor, que, como as cegonhas do Ilisso, é transportado para praias distantes, é sintoma de que o escritor alçava voo no caminho de nova etapa de sua vida artística e intelectual.

Chateaubriand: memória e esquecimento

A permanência da obra de Chateaubriand na memória da literatura brasileira estende-se das primeiras traduções de suas obras às referências que vão se esgarçando ao longo das últimas décadas do século XIX. Nas primeiras décadas do período, bastava um simples comentário daquele escritor para resgatar um autor ou uma obra, como o que manifesta a propósito de Os Lusíadas, de Luís de Camões:

Era ainda um rico assunto o dos Lusíadas. Custa a conceber como um homem do gênio de Camões não soube tirar dele maior proveito. Mas convém notar que esse poeta foi o primeiro poeta épico moderno, que vivia em um século bárbaro; que há coisas patéticas e algumas vezes sublimadas nos seus versos, e muito para notar-se é que foi o mais desgraçados dos homens. (CHATEAUBRIAND, 1956, V. I, p. 194)

Ao proclamar a validade dos versos do épico lusitano, atribuir-lhe posição de relevo na história da literatura e destacar seus pesares, Chateaubriand confere novo status à obra de Camões, facilitando sua incorporação ao cânone romântico. O próximo passo é admirá-la incondicionalmente, como procedem Ferdinand Denis[8] e Almeida Garrett, que o homenageia na epopeia fundadora do Romantismo lusitano, e mesmo Machado de Assis, autor da peça Tu só, tu, puro amor, encenada em 1880 para homenagear o terceiro centenário da morte do poeta seiscentista. 

Também as primeiras manifestações indianistas foram instigadas pelos escritos de Chateaubriand, pois ele avaliza a improvável aliança entre Cristianismo e vida natural, extraindo o “bom selvagem” de sua condição primitiva e politeísta, e jogando-o nos braços da civilização ocidental. Nem todos os indianistas acolheram o viés católico exibido por Atala, e Gonçalves Dias talvez seja o exemplo dessa recusa. Mas o outro Gonçalves, Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa, sentiu-se muito à vontade, ao se apropriar de sugestões centrais provenientes da narrativa da infortunada moça.

É a esse padrão que pertence o Indianismo de Machado de Assis, materializado nas Americanas. Mas, em poucos anos, abandona aquele paradigma, como sugere a alusão não confessada em Memórias póstumas de Brás Cubas e que, tomada nessa perspectiva, converte-se em imagem da poética do romance, pois, tal como as cegonhas que tomam o caminho do Sul, o escritor escolhe um rumo próprio, colaborando para que o legado do romântico francês esmaeça, até se tornar quase irreconhecível.

Ao assim proceder, Machado de Assis, que, na juventude, buscara nas palavras de Chateaubriand a validação de suas ideias, colabora para o desaparecimento daquele autor em sua história pessoal e na trajetória da literatura nacional. Exemplifica, dessa maneira, o modo dual e contraditório como se dá a circulação das ideias, arte e cultura, especialmente quando se trata de uma nação dependente: à importação voluntária, equivalente a uma migração de ideias, sucedem, primeiramente, a metamorfose, em que se mesclam o que vem de fora e o que já é praticado, e depois o apagamento ou negação. 

À adesão incondicional do começo sobrevêm a recusa, a rejeição ou o esquecimento do final. Mas os resíduos permanecem, operando em termos de latência (GUMBRECHT, 2014), por isso, exigindo algum tipo de expressão, que pode ocorrer de distintas maneiras. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, manifesta-se de modo truncado e enganador, mas o lapso é igualmente revelador do lugar, agora secundário e inferiorizado, que Chateaubriand veio a ocupar na literatura nacional.

Menos visível, mas nem por isso menos significativo, a memória de Chateaubriand em nossas letras do século XIX ressoa em seu tempo, implicando um procedimento, de uma parte, de ordem metodológica, de outra teórica, ao apontar para a hipótese de se ouvir o sujeito que já perdeu a voz.

REFERÊNCIAS

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ASSIS, Machado de. Iracema. In: ___. Crítica literária. São Paulo: Mérito, 1959a.

ASSIS, Machado de. O passado, o presente e o futuro da literatura. In: Obra completa em quatro volumes. Org. Aluizio Leite, Ana Lima Cecílio e Heloísa Jahn. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.

ASSIS, Machado de. Poesias. São Paulo: Mérito, 1959b.

ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Mérito, 1959c.

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CHATEAUBRIAND, F. de. Les martyrs, ou Le triomphe de la religion chrétienne. Paris: Le Normant, Imprimeur-Libraire; Lyon: Ballanche, Pére et Fils, Libraires, 1810. V. III.

CHATEAUBRIAND, F. Itinéraire de Paris a Jérusalem et de Jérusalem a Paris. 2. ed. Paris: Le Normand, Imprimeur-Libraire, 1811. V. I.

CHATEAUBRIAND, F. de. Voyage en Amérique. Paris: Calmann Lévy, 1882.

CHATEAUBRIAND. O gênio do cristianismo. Trad. Camilo Castelo Branco. Rio de Janeiro: Jackson, 1956. V. I.

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Magalhães. D. J. Gonçalves de. Os indígenas do Brasil perante a história. Memória oferecida ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Rio de Janeiro, Tomo XXIII: 1860. 1o Semestre, p. 3-66.

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VERISSIMO, José. História da literatura brasileira. De Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 4. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.

 

Received May 28, 2017; Accepted August 8, 2017


Notas

[1] Para Ferdinand Denis, a “Ode ao homem selvagem pode comparar-se, poeticamente, aos mais belos hinos sacros do mesmo autor” (DENIS, 1826, p. 576. Tradução nossa). Segundo Almeida Garrett, “a cantata de Pigmalião, a ode O homem selvagem são excelentes também” (GARRETT, 1998, p. 70). Joaquim Norberto de Sousa Silva enfatiza: “Que de mais belo, que de mais sublime que não sejam a cantata Pigmaleão e a ode O homem selvagem?!” (SILVA, 1998, p. 124)

[2] Talvez por isso tenham-se tornado suspeitos. Souza Caldas, que era sacerdote, foi acusado de herege e blasfemo por causa de suas afinidades com o Iluminismo e as chamadas “ideias francesas”, sendo processado pela Inquisição e condenado a retirar-se ao convento de Rilhafoles, em Portugal.

[3] Escreve Madame de Staël (1766-1817), na biografia dedicada a Luís de Camões: “Fez-se injustiça relativamente a essa aliança; mas não nos parece que ela produziu, em Os Lusíadas, uma impressão discordante; sente-se muito bem aí que o cristianismo é a realidade da vida, e o paganismo é o adorno das festas” (STAËL, 1812, v. 16, p. 619. Tradução nossa).

[4] Antonio Candido chama a atenção o “injustificado ciúme – pois a casta criatura nada mais fazia que abraçar o pai, reputado morto, mas reaparecido de supetão” (CANDIDO, 2000, V. 2, p. 69).

[5] No juízo de Antonio Candido, “atavismos arcádicos” (CANDIDO, 2000, V. 2, p. 69).

[6] Cf. o estudo que Gonçalves de Magalhães publicou na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1860 (Magalhães. 1860).

[8] Ferdinand Denis justifica seu apreço por Camões, calcado na afirmação de Chateaubriand: “Não dissimulo seus defeitos. Sei que ele é talvez muito frequentemente historiador; que não destaca muito a ação principal; que peca às vezes pelo gosto; mas é preciso lembrar, com Chateaubriand, que foi o primeiro épico moderno” (DENIS, 1826, p. 125-126. Tradução nossa).


ANEXO

 

America
Figura:
Teto da antessala do Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes
Fonte: Arquivo da autora

 

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