As pequenas criaturas de Rubem Fonseca e João Antônio

As pequenas criaturas de Rubem Fonseca e João Antônio

André Dias[1]

[1] Universidade Federal Fluminense – UFF.


RESUMO:

O presente artigo efetua uma análise dos contos “Ganhar o Jogo”, de Rubem Fonseca e “Joãozinho da Babilônia”, de João Antônio, com vistas a compreender como esses dois expoentes da prosa brasileira contemporânea se apropriam de temas como: a pobreza nas grandes cidades, a invisibilidade social, a alteridade e as múltiplas formas de crueldade.

Palavras-chave: Literatura Brasileira; Literatura Comparada; Prosa Contemporânea; Rubem Fonseca; João Antônio


ABSTRACT:

This article analyzes the tale "Ganhar o Jogo" by Rubem Fonseca and "Joãozinho da Babilônia" by João Antônio,  intending to understand how these two exponents of contemporary Brazilian prose appropriate themes such as: poverty in large cities, social invisibility, alterity and multiple forms of cruelty.

Keywords: Brazilian Literature; Comparative Literature; Contemporary Prose; Rubem Fonseca; João Antônio


Rubem Fonseca publicou trinta e um títulos, em mais de cinquenta anos de carreira (fora as antologias e coletâneas), criador de histórias de uma crueza esmagadora, reconhecido nacional e internacionalmente como um dos mais importantes autores brasileiros do século XX, traduzido em diversos idiomas (inglês, francês, espanhol, italiano, alemão e polonês, entre outros), dono de mais de uma dezena de prêmios literários – com destaque para o Jabuti (A Grande Arte – romance 1984 –, O Buraco na Parede – contos 1996 e Amálgama – contos 2014), o Camões (2003) e o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras (2015). Sua obra foi adaptada para a televisão (Mandrake [1983], por Euclides Marinho, direção de Roberto Farias, TV Globo; Agosto [1993], por Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, direção de Paulo José, Denise Sarraceni e José Henrique Fonseca, TV Globo), o teatro (Lúcia McCartney [1987], adaptação de Geraldo Carneiro, direção de Miguel Falabella; O cobrador [1990], adaptação coletiva, direção de Bete Lopes) e o cinema (A grande arte [1991], dirigido por Walter Sales Jr; Bufo & Spallanzani [2001], dirigido por Flávio Tambelini). Além disso, a obra de José Rubem Fonseca constitui objeto de estudo de críticos literários, de teses de doutorado e dissertações de mestrado desde a metade dos anos 70, do século passado, até o presente, o que só ressalta a força e a relevância da prosa desse escritor brasileiro.

Parece não haver dúvida de que se está diante de um criador de alto quilate, devidamente prestigiado e que, para além de sua obra, soube criar para si uma imagem de reclusão. Tal imagem propiciou a ascensão da aura de mistério que envolve a trajetória literária de Rubem Fonseca, sempre refratário à imprensa, sobretudo quando o assunto é sua obra. Muito se tem especulado sobre esse afastamento voluntário que o autor de Feliz ano novo impôs a si mesmo, quando o assunto é a mídia. De concreto, entretanto, temos o depoimento de sua filha, a editora, Bia Correa do Lago, à página “Ilustrada”, do jornal Folha de São Paulo, em reportagem do dia 07 de maio de 2015, publicada por ocasião da proximidade do aniversário de 90 anos do escritor. Segundo a editora, a explicação de Rubem Fonseca para a reclusão é simples. Para ele, um escritor precisa manter certo anonimato, sem o qual ele corre o risco de perder sua principal matéria prima, a liberdade de observar.

O advento das redes sociais e o surgimento de sites de compartilhamento de vídeos, como o YouTube e o Vimeo, entretanto, têm contribuído de modo sistemático para a progressiva perda da aura de escritor recluso cultivada durante anos por Rubem Fonseca. Basta apenas que se faça uma busca simples em qualquer um desses sites e não será difícil encontrar ocorrências relacionadas ao autor de Lúcia MeCartney. As andanças de Rubem Fonseca nos diversos encontros literários mundo afora têm chegado ao público brasileiro através dos sites de compartilhamento de vídeos. Além disso, na rede social mais popular do momento, o Facebook, é possível encontrar páginas dedicadas ao escritor ou criadas para divulgação de eventos relacionados à sua obra. O somatório desses elementos tem feito a alegria de leitores brasileiros e de outras nacionalidades interessados na obra, no pensamento e na figura de Rubem Fonseca. Tal fato, por um lado aproxima o escritor de seus leitores, e por outro, decreta o fim da imagem de reclusão engenhosamente arquitetada, pelo menos até aqui.

No cenário mundial é cada vez maior o prestígio do prosador. As incontáveis traduções de sua obra e o grande número de convites recebidos e aceitos para a participação em eventos literários, nos mais variados países, expressam a medida do sucesso do escritor. No Brasil, contudo, há pouco mais de uma década vem crescendo o registro de críticas negativas ao trabalho de Rubem Fonseca. Uma das mais recentes foi dirigida ao livro de contos Histórias Curtas, (Editora Nova Fronteira, 2015). Em resenha publicada na “Ilustrada”, do jornal Folha de São Paulo, em 05 de maio de 2015, Luís Augusto Fischer, Professor de Literatura Brasileira na UFRGS, avalia a obra como ruim. O título da resenha dá bem o tom da crítica: “De Rubem Fonseca, autor de obra tão forte, não se esperaria livro tão frágil”. Ao longo do breve texto, Fischer vai direto ao ponto, sem fazer rodeios, apresenta os aspectos que lhe parecem problemáticos na obra: “Grandes escritores evitaram publicar textos estilo ponta de estoque, defeituosos. [...] Mas um autor muitíssimo cioso de sua figura, Rubem Fonseca, um dos maiores escritores brasileiros do século 20, fez diferente em “Histórias Curtas”, resolveu dar a ler um conjunto de 38 contos, todos fracos, vários muito ruins, um ou outro de dar dó.” (FISCHER, 2015). Contínua o crítico: “As histórias são não apenas curtas, mas inacabadas. Parecem embriões, caricaturas, esboços, sem tensão ou enredo a sustentar o conjunto.” Por fim, arremata: [...] “não se deixa de sentir constrangimento: de quem construiu obra forte e duradoura, não se esperava livro tão frágil.” Nem mesmo o cuidado em qualificar a obra como frágil, atenua o duro julgamento apresentado pelo crítico. Ao final da resenha de Fischer, o leitor sai com a sensação de que a publicação de Histórias curtas não passou de um engano constrangedor.

Outro livro de Rubem Fonseca que não chegou a receber tratamento tão duro por parte da crítica quanto Histórias Curtas, mas que também não teve vida fácil foi Pequenas Criaturas. Originalmente publicado pela Cia das Letras, em 2002, a obra foi recebida à época de seu lançamento como um livro “sem impacto”. Flávio Moura em texto publicado na revista Isto é, Gente, na edição 146, de 20 de maio de 2002 tece as seguintes considerações sobre as narrativas: “Boa parte da força dos contos de Rubem Fonseca depende de uma característica que ele mesmo consagrou: o choque entre a frieza do narrador e a sordidez do assunto. [...] Em Pequenas Criaturas [...] essa estratégia é deixada de lado. Mas parece que falta alguma coisa para substituí-la. Moura destaca, de imediato, a ausência do elemento que daria liga e sustentação a, então, nova obra. Assim prossegue o crítico sobre o propósito de Pequenas Criaturas: “A proposta é tratar dos dilemas prosaicos da gente comum. [...] Agora, o vínculo é frágil e difuso, e o impacto dá lugar a uma espécie de placidez contemplativa. Aos 77 anos e com 19 livros publicados, Rubem Fonseca parece ter conquistado a serenidade. Pena que em muitos contos de Pequenas Criaturas ela se traduza em histórias desinteressantes.” A palavra final da crítica de Moura é desinteressante. Juízo pouco amigável, como se viu.

Arthur Nestrovski também se debruçou sobre Pequenas Criaturas. Este, em ensaio intitulado, “Rubem Fonseca: O Buraco na Parede e Pequenas Criaturas” – publicado originalmente no Jornal de Resenhas, em 11 de maio de 2002 e depois reunido na obra Palavra e Sombra: Ensaios de Crítica, (Ateliê Editorial, 2009) – examina os dois livros de contos e apresenta uma visão crítica menos corrosiva sobre as narrativas. Sobre o autor, Nestrovski afirma: “Rubem Fonseca escreve como mestre consumado de sua própria escola” (NESTROVSKI, 2009, p. 41). A assertiva ajuda o leitor a mensurar o modo de aproximação do crítico com seu objeto. Ou seja, Nestrovski vai se aproximar dos livros em análise levando em conta o conjunto da obra do Rubem Fonseca. Só assim será possível emitir um juízo de valor calcado no conjunto da produção do autor e não em obras isoladas. Tal procedimento favorece a emissão de um olhar que valoriza as cores vivas das narrativas, impedindo assim que a crítica se transforme na construção de uma galeria fosca.

Ao analisar Pequenas Criaturas Nestrovski faz um movimento comparativo em torno do conjunto das obras de Rubem Fonseca, que reforça tanto os aspectos positivos, quanto as imperfeições do livro em estudo. Há um equilíbrio de forças capaz de ampliar a compreensão do leitor sobre os contos que compõem o universo de Pequenas Criaturas.

Há uma diferença, contudo, entre as ambições dos primeiros livros, da década de 1960 e 1970 – censurados pelo regime militar, de lá para cá integrados ao cânone popular, escolar e universitário – e certa serenidade, ou aparente tranquilidade dos mais novos. Pequenas criaturas parece escrito num ritmo televisivo, mais do que o habitual cinematográfico. Até o realismo brutal de certos casos se conforma com limites que são, ao mesmo tempo, de ordem formal e de estilo. Como se o autor tivesse resolvido que a essa altura o que lhe cabe é escrever livremente, na intensidade de sua arte, sem ter de disputar a cada palavra um lugar ao sol da literatura. O que houver de irregular no resultado – e certos contos (no começo e no fim do livro) são obviamente mais fortes do que outros – será acomodado pelo contexto. (NESTROVSKI, 2009, p. 41 – 42).

De modo sutil Nestrovski advoga a tese de que a consagração trouxe a Rubem Fonseca certa serenidade que tende a paquerar com a acomodação. Como resultado desse flerte tem-se em Pequenas Criaturas uma obra nitidamente irregular e menos visceral do que aquelas da fase inicial do escritor.

A leitura de Nestrovski apresenta muitos pontos que me agradam e que também ajudam a fundamentar algumas observações que gostaria de compartilhar sobre esse livro. A primeira corre o risco de ser redundante: estamos diante de um livro irregular, talvez mesmo menor, se olhado no conjunto da obra de Rubem Fonseca. Entretanto, esse fato não o faz menos importante e tampouco impossibilita o encontro de uma joia rara em meio a tantos contos menos expressivos ou até imperfeitos. Dentre as trinta narrativas que compõem Pequenas Criaturas, “Ganhar o Jogo”, parece ser o exemplo bem fornido de conto raro, que de modo despretensioso acaba se convertendo em candidato a permanência no rol das histórias imprescindíveis, aquelas dignas de figurarem em qualquer grande antologia da literatura de todos os tempos. Ou então, simplesmente desponta como candidata a compor a antologia do coração das mais diferentes gerações de leitores.

Alfredo Bosi no estudo seminal sobre o gênero conto intitulado, “Situação e Formas do Conto Brasileiro Contemporâneo” afirma: “Na verdade, se comparada à novela e ao romance, a narrativa curta condensa e potencia no seu espaço todas as possibilidades da ficção” (BOSI, 1977, p. 7). Não é incorreto afirmar que “Ganhar o jogo”, de Rubem Fonseca se constitui como um ótimo exemplo daquilo que preconizou Bosi sobre as narrativas curtas. 

O enredo de “Ganhar o jogo” é aparentemente simples.  A narrativa em primeira pessoa constitui-se do relato de um sujeito pobre, consciente da incapacidade de mudar o rumo de sua vida e que resolve levar a existência como um jogo. Não um jogo entre iguais, mas exatamente entre diferentes, uma partida entre ricos e pobres. Aparentemente ele já era o perdedor, pois tinha clareza da sua imobilidade social, o que o movia, portanto, não era o interesse em ascender socialmente, mas sim ganhar de um rico. Ganhar não era ser igual, antes continuar diferente, porém vivo:

O único bem que tenho é a minha vida, e a única maneira de ganhar o jogo é matar um rico e continuar vivo. É uma coisa parecida com comprar o iate maior. Sei que isso parece um raciocínio extravagante, mas uma forma de ganhar o jogo é criar pelo menos parte das regras, coisa que os ricos fazem. (FONSECA, 2002, p. 15)

A partir de um programa de televisão sobre a vida dos milionários, que exibia o depoimento de um homem muito rico, justificando a compra de um novo iate de centenas de milhões de dólares apenas para ultrapassar um colega de riqueza e assim aplacar sua inveja, o que levou todos os presentes a gargalharem de alegria, o narrador do conto teve a ideia do jogo. Entretanto, no seu jogo o que estava em disputa era a morte de um rico. Não por recalque ou por raiva, mas sim porque a única maneira de vencer era permanecer vivo e aniquilar uma criatura supostamente inútil. Assim o fez, urdiu um plano de se colocar como garçom em um bufê que servia os ricaços, conquistou a confiança da dona simulando uma condição de subserviência total e “feliz”, para assim escolher sua vítima e concretizar o planejado: matar um próspero herdeiro por envenenamento sem levantar maiores suspeitas. 

A trama apresentada, à primeira vista, parece mais um roteiro de filme policial ou de suspense. O leitor até pode se comprazer com essa perspectiva. Todavia, analisada em suas camadas mais profundas, a narrativa pode evocar aspectos muito ricos e diversos que ajudam a pensar a ocorrência de determinadas questões caras à prosa brasileira contemporânea. O narrador de “Ganhar o jogo” expressa, por exemplo, um ceticismo em relação à existência que beira a insanidade, especialmente quando, sem nenhum drama de consciência, arquiteta seu plano de “vitória”. A pesquisadora Ângela Dias, em estudo sobre a literatura brasileira contemporânea, chama atenção para as presenças da relativização da crueldade e do ceticismo visceral nessas narrativas:

É quando a crueldade do real é radicalmente relativizada por um narrador capaz de um ceticismo tão visceral quanto a qualquer saída, que chega a dispô-lo a uma espécie de jogo com a circunstância, como se nada mais restasse a ser feito.

Neste caso, o diversionismo acontece em várias modalidades, desde a loucura, passando por sonhos, alucinações, delírios ou ainda por um memorialismo desestabilizador, até o escapismo de viagens em busca de uma alteridade nunca propriamente conhecida. (DIAS, 2007, p. 18)

O protagonista do conto de Rubem Fonseca é um jogador. Mas não um jogador ordinário ou contumaz. Apesar de seu jogo não ser elementar, também não se pode dizer que seja motivado por uma bandeira ideológica mais “nobre” ou altruísta, como a da tão enxovalhada “luta de classes”. O jogo urdido pelo narrador-protagonista é elaborado a partir de uma visão de mundo calcada na descrença total do status quo e tudo que esse elemento simboliza. Ele mesmo explicita isso, ainda no início da narrativa, após assistir a entrevista do rico que confessara ter comprado um iate maior por inveja: “Mas eu não sinto raiva de nenhum rico, minha inveja é parecida com a do cara do iate maior: como ele, apenas quero ganhar o jogo.” (FONSECA, 2002, p. 15). Nesse sentido, desponta ao longo da passagem uma visão da existência como um jogo cruel, cujo prêmio é o extermínio de uma vida.

Jogar para o narrador era mais do que “simplesmente” executar a sentença de morte de um sujeito endinheirado. Todos os seus atos faziam parte da cética “brincadeira”. Cada passo dado para a execução do plano lhe exigia a adoção de uma estratégia tenaz. Desde as demoradas manobras para se empregar no bufê mais exclusivo da cidade, até a construção da aparência de um personagem servil:

Primeiro, cuidei da minha aparência, arranjei um dentista barato e bom, o que é muito raro, e comprei roupas decentes. Depois, o que foi mais importante, aprendi no meu adestramento solitário, a ser um servo feliz, como são os bons garçons. Mas fingir esses sentimentos é muito difícil. Essa subserviência e felicidade não podem ser óbvias, devem ser muito sutis, percebidas inconscientemente pelo destinatário. (FONSECA, 2002, p. 18)

A perseverança empenhada na construção da imagem de um “servo feliz” deixa entrever no conto em questão o diversionismo, apontado por Ângela Dias em suas reflexões. A nosso ver, tal elemento se configura como um expediente imprescindível dessa narrativa. A construção das sucessivas cortinas de fumaça ao longo da história pode ser compreendida, assim, como um dispositivo a serviço do estabelecimento de uma espécie de estética da crueldade. Dito de outro modo, os procedimentos que ensejam uma encenação da servilidade na narrativa estão a serviço de uma pragmática da crueldade que, ao fim e ao cabo, está amplamente disseminada em todas os segmentos do tecido social. Nesse sentido, a obra literária funciona como uma espécie de catalizadora dos temas socialmente emblemáticos nas mais variadas épocas. A literatura, desse modo, por se configurar como um discurso sobre isso a que nomeamos de real, pode oferecer uma versão potente sobre ele. Tal fato também pode compelir o leitor a perceber o discurso literário como um elemento de provocação compulsória e permanente às diversas formas de existir no mundo social.

O narrador criado por Rubem Fonseca, quando olhado pelo prisma daqueles que ocupam as posições mais elevadas da famigerada pirâmide social encontra-se na base dessa. Situado em um ponto equidistante daqueles que, na maioria das vezes, conquistaram o “topo do mundo” pela força do capital, o protagonista da narrativapertence à fração da sociedade perversamente silenciada e destinada à invisibilidade pela ação da ordem social hegemônica. Essa situação trágica bem conhecida por quase todos os viventes do mundo concreto, na mão de um exímio escritor transforma-se em matéria de memória preciosa para a narrativa de “Ganhar o jogo”. Sem fazer concessão a sentimentalismos baratos ou se colocar na condição de escritor “militante”, o contista se apropria desse dado da realidade – a situação de apagamento social sofrida pelos mais pobres – para construir, no mínimo, um duplo efeito de sentido da narrativa. De um lado, o escritor aposta na invisibilidade social do narrador como elemento constitutivo de uma identidade de anti-herói do mesmo. Sendo o garçom um ser opaco, ele pode mover-se com discrição e desenvoltura pelos espaços da narrativa e assim executar seu plano sem levantar suspeitas. De outro, ao construir uma personagem que vive na sombra, portanto desinteressante ao olhar dos mais abastados, o escritor potencializa o caráter verossímil de sua pequena criatura. Isso, além de dar mais tutano à obra, torna a psique da personagem muito mais complexa e instigante – tal construção funciona também como um exemplo acabado de condensação e potencialização da escrita ficcional defendida por Alfredo Bosi. A passagem a seguir ilustra bem os pontos aqui levantados. Vejamos:

A polícia está investigando. Gostei de ir depor na delegacia. Não demorei muito lá, a polícia achava que eu não tinha muito a dizer sobre o envenenamento, afinal eu era um garçom burro e feliz, acima de qualquer suspeita. Quando fui dispensado pelo delegado encarregado do caso, eu disse de maneira casual:
“Meu iate é maior do que o dele.”
Alguém precisava saber.
“Já disse que está dispensado, pode se retirar.”
Quando estava saindo, ouvi o delegado dizer para o escrivão: “mais um depoimento de merda.” (FONSECA, 2002, p. 22).

O trecho destacado é quase o final da história e nele estão presentes todas as nuances da narrativa curta enumeradas até aqui. No conto “Ganhar o jogo”, Rubem Fonseca nos apresenta a condição dos excluídos da ordem social dominante, não necessariamente para defender qualquer tese sociológica. Contudo, mesmo sem essa pretensão, a obra joga forte luz sobre as práticas da crueldade que se disseminam nos mais diferentes setores da sociedade no presente. Parece evidente que a crueldade não é uma questão concebida originalmente pela e na contemporaneidade. Todavia, o conto aqui analisado ajuda a pensar como na contemporaneidade ela assume formas diversas e insidiosas. Nunca é demais lembrar que isso não é pouco.

Outro mestre das pequenas criaturas é João Antônio. O escritor fez sua estreia em livro no ano de 1963, através da publicação do emblemático Malagueta, perus e bacanaço. A obra alcançou o feito inédito de conquistar os Prêmios de autor revelação e melhor livro de contos na edição do Jabuti de 1963. Dono de uma obra profícua que transitou entre o jornalismo literário, o ensaio e o conto, Joao Antônio foi também na vida um homem de passagens. As duas mais marcantes seguramente se deram durante o tempo das primícias passado na sua São Paulo e a posterior mudança para o Rio de Janeiro, cidade onde viveu até sua morte em 1996. As cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro com suas faunas urbanas foram determinantes para o nascimento, maturação e amadurecimento dos temas, das personagens e da linguagem urdida pelo escritor.

Na literatura que produziu, João Antônio escolheu dar voz e corpo às criaturas em permanente situação de esquecimento, os que habitam a periferia do mundo perfumado e bem vestido das classes abastadas. A vida dos malandros, otários, marafonas, merdunchos (vocábulo de que tanto gostava) e toda sorte de pobres diabos que vagam pelas cidades, sem ter onde cair morto, passou a ser protagonista da prosa desse escritor incontornável. Antonio Candido ao analisar o estilo do contista afirma:

Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de “dar voz”, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor da sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Isso é possível quando o escritor, como João Antônio, sabe esposar a intimidade, a essência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele faz com que existam, acima de sua triste realidade. (CANDIDO, 1999, p. 85)

Candido ressalta a capacidade do escritor paulista em apreender a intimidade dos marginalizados e transformar essa experiência em matéria literária amplificadora da voz dos que, no mais das vezes, são silenciados. Ao adotar esse posicionamento estético João Antônio está claramente se vinculando a um dos mais importantes precursores dessa prática literária no Brasil, a saber, Lima Barreto. Aliás, a vinculação com o escritor carioca não se dá apenas por obra do acaso ou por interesse construído meramente na esfera intelectual. Ao que tudo indica, a ligação entre os dois grandes escritores se delineia no diapasão existencial.

João Antônio revive o perfil do boêmio amargo e clarividente que teve nas letras brasileiras o exemplo ardido de Lima Barreto. Mestiço, pobre, suburbano, noctívago, etílico, anarquista ou quase, homem da escrita e do jornal: quantas afinidades guardadas nas entranhas da memória! (BOSI, 2001, p. 7)

Alfredo Bosi em prefácio à edição de Abraçado ao meu rancor, publicada pela editora Cosac Naify em 2002, reivindica para João Antônio a filiação existencial entre este e o criador do major Policarpo Quaresma. Em favor de seu argumento o estudioso destacou, por exemplo, que o livro de contos foi dedicado aquele a quem o escritor paulista via como o grande precursor: “Por isso, o livro é ‘Para Afonso Henriques de Lima Barreto, o pioneiro’” (BOSI, 2001, p. 7). Vale lembrar também que o contista em diversas entrevistas sempre situou Lima Barreto como uma grande referência e também dedicou um ensaio inteiro (Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto – 1977) à vida e obra do criador de Clara dos Anjos.Nesse sentido, a narrativa prosaica e melancólica de João Antônio que capta com acuidade o processo de degradação da vida urbana – com especial enfoque para trajetória da arraia miúda e dos marginalizados – é a um só tempo tributária e credora da prosa de Lima Barreto.

Já do ponto de vista da criação de uma linguagem, a prosa de João Antônio consegue alçar um patamar elevado, encontrando pontos de confluência com o trabalho de Guimarães Rosa, conforme assinala Antonio Candido:

Sob este aspecto, João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elaborou uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente. (CANDIDO, 1999, p. 88).

No modo de ver do grande crítico literário brasileiro, entre os vários méritos da prosa de João Antônio, ganha destaque a espontaneidade da linguagem das suas personagens. Um leitor desavisado poderia supor que o contista teria se dedicado a um trabalho de transcrição da linguagem utilizada pelos estratos mais pobres da população urbana. Caso tal artifício tivesse sido adotado pelo escritor, muito provavelmente, deixaríamos de ter a espontaneidade apontada por Candido e passaríamos a ter uma espécie de mímica grotesca dos modos de fala popular. Em outras palavras, a naturalidade impressa no ritmo das narrativas pelas falas dos narradores e personagens de João Antônio cairia na vala comum do tom professoral ou pitoresco imposto por uma voz assepticamente culta ou supostamente intelectualizada. O que se vê nas narrativas do escritor paulista é o oposto disso, daí resulta seu trunfo e grande parte da riqueza de suas histórias.

Ao eleger como tema de suas narrativas o mundo dos desvalidos, João Antônio escolhe também observar os modos como vivem ou sobrevivem os humilhados e ofendidos, os desabonados socialmente, ou seja, as pequenas criaturas objeto desse artigo. Nesse sentido, a fim de melhor compreender esses seres de papel – mas que dizem muito sobre as formas de vida do mundo concreto – passaremos agora a análise da narrativa “Joãozinho da Babilônia”, conto que integra a obra Leão-de-chacára, (1975), segundo livro de narrativas curtas publicado pelo escritor.

Organizado em duas partes: “Três contos do Rio” e “Um conto da Boca do Lixo”, Leão-de-chácara fixa de vez a cidade do Rio de Janeiro como cenário privilegiado para o desenrolar de suas histórias. São Paulo ainda se faz presente como cenário, porém, agora em menor escala, conforme se observa na própria organização do livro. Contudo, tanto a cidade do Rio de Janeiro quanto a de São Paulo, a partir de agora, são elas mesmas ou quaisquer outros grandes centros urbanos onde “o filho chora e a mãe não vê”, “onde a dor não tem razão”, onde os tristes se reúnem ou onde explode a violência nas sombras dos becos e avenidas.

O que se pode dizer com segurança é que João Antônio afirma-se definitivamente como o contista da cidade (seja ela São Paulo, Rio de Janeiro ou Amsterdã), explorando os significados das vivências urbanas, ressaltando a falta de vínculos reais e a extrema violência que permeiam a vida das urbes modernas. (MACÊDO, 2002, p. 7).

O conto “Joãozinho da Babilônia” é ambientado na cidade do Rio de Janeiro, mas poderia se passar em qualquer outra grande cidade em que a solidão é companhia certa, o isolamento é a palavra de ordem e o trânsito é quase que obrigação para quem está em busca de outros e, ao mesmo tempo, de si. A trama do conto não chega a trazer nenhuma novidade ou inovação narrativa. Ao contrário, o enredo, em certo sentido, é até bastante comum: a formação de um triângulo amoroso pouco convencional. De um lado, Joãozinho da Babilônia, o leão-de-chácara maduro, vivido e “passado na casca do olho” como se dizia entre a malandragem dos tempos idos. De outro, o Doutor José Batista Pamplona, um rico político com todos os vícios comuns a esse segmento. Entre os dois, a jovem prostituta, Guiomar, “teúda” e “manteúda” do velho político. Nem mesmo a grande experiência na vida boêmia e malandra impediu o personagem que dá título ao conto de tombar de amores pela jovem prostituta. Progressivamente Joãozinho vai abandonando a prudência exigida pela profissão e permite-se enamorar pela jovem comprometida com outro.

O conto tem início com o protagonista curtindo uma bruta dor de cotovelo que o faz transitar pela cidade sem destino ou pouso certo. Aliás, a única coisa certa é a dor que insiste em arrebentar com seu peito, a ponto de levar o valente às lágrimas, o que o faz esquecer por alguns segundos a ética de seu meio, para logo em seguida tentar reunir os cacos do que sobrou para continuar no seu triste caminho:

Por último dei para zanzar, pegando o rumo da praia. [...] Mando ao diabo uma lembrança. Mas sinto um medo. Um vento frio batendo na cara e me vem um samba, dos antigos, besteirada, engrupimento, gemido lá do inferninho: vem, amor que é fria a madrugada / E eu já não sou mais nada / sem seu calor.
Num minuto, a cabeça nas mãos, devo ter chorado. [...] Se chorei, se não chorei, ninguém via. As costas das mãos, enormes, vão limpar a cara. E a madrugada geral vai continuar.
Bastava uma casa no subúrbio, quarto e cozinha. (ANTÔNIO, 2002, p. 67)

O amor irrealizável na plenitude o atingiu em cheio. Além da dor de existir fora da lógica em que estava acostumado, Joãozinho da Babilônia ainda precisava lidar com a letra do samba (“Abandono”, de Nazareno de Brito, sucesso na voz de Ângela Maria, nos distantes anos de 1950) que parecia ter sido composta para molestar mais ainda seu estado de alma. Ao longo da narrativa o leitor começa a compreender o erro de Joãozinho: ter se entregue a um amor pouco provável, de modo imprudente. Aliás, o narrador-personagem do conto de João Antônio está em sintonia com aquela que poderia ser o seu par feminino na linda canção de Luiz Reis e Haroldo Barbosa, intitulada: “Notícia de jornal”, sucesso no início dos anos de 1960 e ainda regravada até os nossos dias. Vejamos os versos finais da canção: “Errou na dose, errou no amor / Joana errou de João / Ninguém notou, ninguém morou / Na dor que era o seu mal / A dor da gente não sai no jornal”. A Joana da canção encontrava-se absolutamente só com sua dor. Joãozinho estava na mesma situação: a solidão como companhia e a angústia como condição existencial. Tudo isso havia sido motivado pelo desacerto de suas decisões. Ao se permitir amar a prostituta com dono certo, o protagonista tinha consciência de que flertava com um desenlace pouco amigável e provavelmente infeliz.

Infelicidade parece ser a palavra-chave para uma compreensão mais aguda do conto em questão. Ao longo da narrativa desfila uma enorme lista de personagens do submundo das grandes cidades: cafetões, prostitutas, bêbados, malandros, traficantes, pivetes, etc. Há também aqueles que transitam entres os mundos da ordem e da “desordem”. Será nesse entre-lugar que que se instala a figura de Batista Pamplona, doutor José Batista Pamplona ou simplesmente, Batistão, como gostava de ser chamado pelas mulheres. Homem rico, político ainda influente e boêmio por vocação desde os tempos da mocidade. Agora, entrado em anos, já não tinha o mesmo vigor, mas não perdia a pose e mantinha a fidelidade de sua audiência às expensas do dinheiro que gastava com os frequentadores (em geral mulheres) do seu círculo notívago:

Então, uma e outra bandida arrasta as asas em busca de patrões de bebida. O velho Batistão é dos que convidam, oferecidos e gaiteiros. Manda forrar a mesa. Uma outra mulher mais vivaça e faminta, aproveita e janta. Batistāo paga, precisa de auditório para as trovas. [...] Do Régio, Batista Pamplona desliza de carro particular até a Cinelândia, dali Passeio Público. Parando. Da porta do carro, dá espetáculo, cumprimenta conhecidos e gente que nunca viu para chamar a atenção. Desce e, absoluto, pisa no meio-fio.

E depois, ao que der e vier. Copa, Fátima, Leblon, Estácio, Praça Mauá, onde houver uma boca aberta, lá Batista Pamplona. Entorna até o sol raiar, vai dormir mijado num hoteleco com alguma piranha. Mesmo deixando Guiomar no apartamento do Flamengo. (ANTÔNIO, 2002, p. 73 – 74).  

À primeira vista Batistão encarna apenas mais uma figura esdrúxula nas páginas da literatura brasileira. Contudo, quando observado mais detidamente, compreendemos que as mãos de João Antônio nos legaram um tipo humano patético e rico de contradições. Sob a máscara do endinheirado esbanjador, mulherengo e capaz de pagar o que for necessário para ter o que deseja, reside um velho decadente e decrépito. Entretanto, se engana quem supõe que estejamos diante de uma vítima de qualquer coisa. Na realidade, o que norteia a trajetória do velho Batistão é a já conhecida lógica do toma lá, dá cá. Ele dava o dinheiro e obtinha o que jamais teve, de fato, a saber: amizades, afetos sinceros e acolhida desinteressada. A ética regente dos passos dessa personagem se inscreve na clareza de que o tempo é uma fábrica de monstros. Como a ruína física é a antessala da morte e o abismo sem escapatória é um fato, Batistão vê na vida desregrada o lenitivo ideal para tentar aplacar a dor de existir. Ele compra tudo e a todos na tentativa de enganar o tempo e suas dobras infinitamente corrosivas.

Ao construir a personagem de Batistão, João Antônio joga luz sobre uma questão importante: o mundo dos esfarrapados e dos marginalizados comporta pontos de intercessão com o “andar de cima”. A separação entre os mundos dos ricos e dos pobres é visual e materialmente bem definida, porém, do ponto de vista das experiências humanas, tal separação é mais difusa e, em muitos momentos, quase imperceptível. Essa questão pode ser melhor compreendida quando se observa de modo mais próximo a relação entre Batistão e Guiomar. Nenhum dos dois está de inocente na situação. Ambos sabem que a aproximação e o relacionamento que mantêm é, basicamente, um compromisso monetário – ainda que Batistão finja não saber disso. Para ela, trata-se de defender o papel moeda, fundamental para dar curso à sobrevivência em meio à marginalidade em que vive. Para ele, trata-se de barganhar com o tempo, mesmo que seja de modo ilusório. Ao desfilar com uma moça muito mais jovem, Batistão alimenta a ilusão machista – bem ao modo da formação ideológica de sua geração – de que consegue domar o tempo e assim estender ou até mesmo perpetuar o sentimento de vigor juvenil em todas as suas potências, inclusive a dos sentimentos amorosos.

Grandalhudo, balofo, um desengonço. O velhão Batista, de dentadura postiça, papadas e cabelos tingidos de caju, era uma peça Tinha mania de bravo, charuto no bico e uma máuser que não tirava do cinto nem para ir ao banheiro – coisa dos graúdos lá do Estado do Rio. Um molóide saído a mandão. Aquilo, numa briga, não prestava nem para correr ou recolher as cadeiras quebradas. Divertido, palhaço quando bebia, vermelho do pescoço enrugado onde a mulatinha se pendurava, com fingimento. [...]

Soberbo na vida, coronelão em cima da carne-seca, virava um neném na mão do carro novo Guiomar. Ali, uma dona de carnes firmes, pescoço fino, canelinha de sabiá. Uma tanajura – e sabia. Batista, coronel gamado. Ela indo lá, firme, zanguinha, arrancando as coisas. Apaixonadão, da gama preta, puxando um bonde por Guiomar. Vestindo, calçando, comprando duanas e presenteando com joias, dando um banho de loja na mina. Saquei. Mas, bico calado, vi com os olhos e lambi com a testa. (ANTÔNIO, 2002, p. 76 – 77).

A descrição do casal é feita pelo narrador-protagonista, Joãozinho da Babilônia, que rememora a ocasião em que conheceu Guiomar. O modo como Batistão é apresentado por Joãozinho é bastante emblemático, pois expõe ao leitor uma figura patética e que se deixou enredar pelo canto da sereia de uma jovem prostituta. Todavia, é preciso ter em conta que esse é o olhar de um sujeito atravessado pela paixão, vivendo o luto de uma relação interrompida. A narrativa de Joãozinho está marcada pelo horizonte histórico da sua separação de Guiomar e isso faz enorme diferença. O narrador apresenta o velho boêmio ressaltando os traços decadentes da figura. Além disso, ele também descreve a suposta cegueira do coronel em relação a seu objeto de desejo, fato que, aos olhos de Joãozinho, o transforma em um fantoche na mão da jovem prostituta. A apresentação não é de todo equivocada, porém, ela não consegue dar conta da situação em seu sentido mais amplo. A relação do coronel com a jovem prostituta, quando olhada globalmente, deixa entrever que ambos têm interesses muito bem delineados e pouca idealização. Embora a narrativa destaque o ciúme do coronel, esse ciúme – como quase todos os são – é questão de posse. A paixão, se se pode falar de alguma, é a de Batistão pela ideia de virilidade encarnada em seu objeto de deleite particular, Guiomar. A moça, por sua vez, é mais transparente em seus interesses, que visam a satisfação das suas necessidades prementes de sobrevivência. Para além do olhar de deleite e da sobrevivência, a relação do coronel e Guiomar evoca a trajetória dos infelizes, que passam a vida tentando, a seu modo, inventar a felicidade, quase sempre episódica como uma estrela cadente.

O processo de atração entre o narrador-personagem e a jovem mulata Guiomar tem início como uma forma de desagravo da moça em relação a seu “dono”, o coronel. Esse, a cercava de bens materiais, mas também a tratava como um objeto, uma espécie de bibelô ou troféu especial, que fazia questão de ostentar para reafirmação de sua virilidade perdida. Já para Joãozinho da Babilônia a fixação na moça se dá fundamentalmente em decorrência do seu desejo e de certa inclinação para a posição de conquistador, obedecendo a lógica interna do mundo marginal em que habita.

Uma madrugada, acho Guiomar no Lido. [...] Começa me lacrando que o corno velho está em Brasília. [...] O que aquela criança estava vendo num sujeito como eu, enorme, quase dois metros, com vinte anos de janela, os cabelos pintando de branco? Despistei, ainda. O velhão lhe dava boa vida e um daqueles não se arruma todos os dias. Devagar com o andor. Cortou-me – tinha nojo de Batistão. Mijava na cama.

Atento na guria. Fala da minha fala, malandreca; tem lenha e dengue e esta coisa nos junta –  vivendo de otários, na humilhação e no vexame, tendo de suportar as vontades para levantar o tutu dos trouxas, a gente tem bronca dessa raça. [...]
Atiçava um homem. Estava aí: gente minha, eu estava sentindo amizade. A provocação ia em frente, chamando resposta, me jogando que Batista a deixava em falta. Graça no jogado de cabeça, uma menininha. Meus olhos nas pernas, nas ancas. Um de seus dedos bulia no umbigo, que a camiseta da moda deixava de fora. A mão, depois, foi batucar na coxa.

Ia machucar. (ANTÔNIO, 2002, p. 81 – 82).

Se o movimento primeiro de aproximação era motivado pelo desagravo e pela ética do conquistador, em um segundo momento, parece evidente que mais coisas os atraíam. A passagem reafirma os pontos de aproximação do casal. Ambos eram criaturas do submundo, curtidas na dor das humilhações para arrancar da vida o mínimo necessário. Além disso, a moça representava uma lufada de ar marinho na vida cinza do leão-de-chácara, entorpecido pelo ofício e pela necessidade de não “baixar a guarda” para ninguém. Guiomar, por sua vez, parecia livre para exercitar sua alteridade até então interditada pela necessidade de se por na condição de objeto para o desfrute alheio.

A relação de Joãozinho da Babilônia e a mulata Guiomar, em muitos momentos, evoca a bela canção “O rancho da goiabada”, composta por João Bosco e Aldir Blanc para o disco Galos de briga, de 1976. A canção discorre sobre a condição dos pobres, dos miseráveis, dos boias-frias a quem resta apenas a possibilidade do alívio através do álcool, que abre as portas para o sonho. Aqui interessa de modo especial a seguinte passagem:

Amar/ o rádio-de-pilha, / o fogão-jacaré, a marmita, / o domingo, o bar, / onde tantos iguais se reúnem / contando mentiras / pra poder suportar... / ai, são pais-de-santo, / paus-de-arara-, são passistas, / são flagelados, /são pingentes, balconistas, palhaços, marcianos,/ canibais, lírios, pirados / dançando-dormindo / de olhos abertos à sombra / da alegoria / dos faraós embalsamados.  (BOSCO & BLANC, 1976, f. 12).

Joãozinho e Guiomar são iguais, vivem das mentiras que inventam para aguentar o tranco da vida. O encontro dos dois marca um momento de interrupção do processo de reificação dessas duas existências. Pouco a pouco ambos se permitem sonhar de olhos abertos e escolhem entrelaçar os corpos como numa dança-celebração da vida. A duração será mínima – já que a moça é assassinada de modo cruel por Batistão – mas esse pequeno espaço de tempo já é o suficiente para o estabelecimento de alguma alegria entre os espaços de suas tristezas. O encontro dessas pequenas criaturas promovido por João Antônio permite ao leitor compreender que, mesmo diante das condições de produção mais precárias, é possível estabelecer algum rasgo de humanidade para além da mediocridade do mundo.  

Antes de encerrar o percurso analítico aqui empreendido, vale lembrar uma coincidência curiosa e muito significativa: tanto Rubem Fonseca quanto João Antônio estrearam em livro através da escrita de contos, no ano de 1963. O primeiro com Os prisioneiros e o segundo com Malaguetas, perus e bacanaço. Desde os primeiros escritos ambos demonstraram vocação para a criação de uma prosa de alto nível, marcada pela investigação da alma humana nas suas mais variadas expressões, com especial destaque para o universo das pequenas criaturas. Ao enfocarem em suas narrativas aqueles que, quase sempre, estão relegados à sobra ou a invisibilidade Rubem Fonseca e João Antônio trazem para o centro da cena a humanidade, muitas vezes, rejeitada ou apagada pela negação da alteridade daqueles que estão excluídos da, suposta nova ordem mundial.

REFERÊNCIAS  

ANTÔNIO, João. Leão-de-chácara. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

BOSCO, João & BLANC, Aldir. “O rancho da goiabada”, In Galos de briga, São Paulo: PolyGran, 1976, f. 12.

BOSI, Alfredo (Org.) O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1977.

_____. “Um boêmio entre duas cidades”, In. ANTÒNIO, João. Abraçado ao meu rancor. São Paulo: Cosac Naify, 2001.

CANDIDO, Antonio. “Na noite enxovalhada”, In. Antonio Arnoni Prado, Maria Eugênia Boaventura e Orna Messer Levin (Orgs.). João Antônio: Remate dos Males, n. 19. Campinas, SP, UNICAMP, 1999, p. 83 – 88.

DIAS, Ângela Maria. Cruéis paisagens: literatura brasileira e cultura contemporânea. Niterói: EDUFF, 2007.

FISCHER, Luís Augusto. “De Rubem Fonseca, autor de obra tão forte, não se esperaria livro tão frágil”. Folha de São Paulo. São Paulo: 07 de maio de 2015. Ilustrada, p.1. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/05/1625548-de-rubem-fonseca-autor-de-obra-tao-forte-nao-se-esperaria-livro-tao-fragil.shtml Acessado em: 26/07/2017.

FONSECA, Rubem. Pequenas criaturas. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

LAGO, Bia Corrêa do. “A três dias dos 90 anos, escritor puxa ferro na academia 3 vezes por semana e vibra com vitórias do seu 'Vascão”. Folha de São Paulo. São Paulo: 07 de maio de 2015. Ilustrada, p.1. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/218376-rubens-fonseca-jose.shtml?cmpid=menupe. Acessado em: 26/07/2017.

MACÊDO, Tania. “Malandros e Merdunchos”, In. ANTÔNIO, João. Leão-de-chácara. São Paulo: Cosac Naify, 2002.

MOURA, Flávio. Pequenas Criaturas: Rubem Fonseca foge de seu estilo consagrado em novo livro. Revista Isto É, Gente. São Paulo:  20 de maio de 2002, edição 14, p. 1. Disponível em: http://www.terra.com.br/istoegente/146/diversao_arte/livros_pequenas_criaturas.htm Acessado em: 25/07/2017.

NESTROVSKI, Arthur. Palavra e Sombra: Ensaios de Crítica. São Paulo:Ateliê Editorial, 2009.

 

Received May 13, 2017; Accepted August 10, 2017

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