Literatura-mundo comparada e os mundos em português

Literatura-mundo comparada e os mundos em português

Helena Carvalhão Buescu[1] 

[1] Centro de Estudos Comparatistas, Universidade de Lisboa


ABSTRACT:

Não há verdadeira literatura-mundo fora da literature comparada. Quando digo “verdadeira” literatura-mundo quero dizer que esta disciplina deve de fato ser muito mais do que somente uma lista de textos oriundos de sistemas literários diferentes, ou mesmo transcendendo as fronteiras deles. Ela tem de corresponder a uma ideia, no sentido em que Giorgio Agamben (1995) usa este conceito como chave para estruturar seu livro sobre várias “ideias” aforísticas

Palavras chave: literatura-mundo, literatura comparada


ABSTRACT:

There is no true world literature outside comparative literature. When I say “true” world literature I mean to say that this discipline must in fact be much more than just a list of texts coming from different literary systems, or even transcending their borders. It has to correspond to an idea, in the sense that Giorgio Agamben (1995) uses this concept as a key to structure his book on several aphoristic “ideas”.

Keywords: world literature, comparative literature


Literatura-Mundo Comparada como conceito-chave para a reformulação dos estudos literários atuais

A questão que quero abordar aqui  depende da conscientização sobre diferentes tipos de possibilidades e limites  dos debates contemporâneos acerca da Literatura Comparada, em sua relação (ou não) com a Literatura-Mundo. Minha perspectiva, embora leve em consideração o panorama dos estudos norte-americanos destas questões, obviamente  central para qualquer estudioso, não se alinha completamente com ele. Uma das razões principais para isto é que o foco a partir do qual observo e descrevo a situação é diferente: se, de acordo com Damrosch (2003), Literatura-Mundo é uma refração das literaturas universais, compreensível através da figura da elipse, com dois focos, então minha própria inserção no campo ocorre  a partir de uma mudança no foco de observação e reflexão, que demanda uma descrição diferente  do que considero serem as relações atuais  entre Literatura-Mundo e Literatura Comparada.

Posso começar com uma afirmação direta, baseada na qual  prosseguirei em minha argumentação. Do meu ponto de vista, não há verdadeira Literatura-Mundo fora da Literatura Comparada. Quando digo “verdadeira” Literatura-Mundo, quero dizer que esta disciplina deve de fato  ser muito mais do que apenas uma lista de textos que procedem de sistemas literários diferentes, ou mesmo transcendem suas fronteiras. Ela tem de corresponder a uma ideia, no sentido em que Giorgio Agamben (1995) usa este conceito como chave para estruturar seu livro sobre várias “ideias” aforísticas. De fato,  pego minha deixa de seu aforismo sobre a “ideia de amor”:

Viver em intimidade com um estranho, não para torná-lo mais próximo, ou torná-lo conhecido, mas antes para mantê-lo estranho, remoto: não evidente – tão não evidente que seu nome o contenha inteiramente. E, mesmo estando desconfortável, não ser nada mais, dia após dia, do que o lugar sempre aberto, a luz constante em que aquele ser único, aquela coisa, permanece sempre exposto e fechado. (61) (itálicos meus)

O que Agamben está preconizando aqui coincide, e espero que de uma forma muito precisa, embora metafórica, com uma de minhas questões principais sobre Literatura-Mundo Comparada: que, sendo intrinsecamente comparada, tenha de manter e tornar visível tanto a intimidade quanto a resistência entre os textos, os sistemas literários abordados por ela, e as leituras que eles produzem, muito à maneira descrita por Agamben em sua “ideia de amor”. Se amor é também “manter estranho, distante”, se é criar “desconforto”, então torna-se fácil compreender porque a abordagem da Literatura-Mundo só pode ser comparativa. Não há sentido do outro sem o tertium quid comparatista – e isto é já o movimento básico de criar desconforto, reconhecendo qualidades incisivas. Vou desenvolver esta ideia com a noção Formalista de estranhamento, e a noção poética (Herberto Helder) de erro feliz. No entanto, isto não seria absolutamente possível se eu considerasse os campos da Literatura Comparada e da Literatura-Mundo Comparada como um movimento contra a subjugação de diferenças e leituras textuais.

Portanto, proponho que esta ideia deve assentar-se em uma relação comparativa, sem a qual nenhum mundo, qualquer que seja sua forma ou escala, pode ser concebido. A Literatura-Mundo deve ser Literatura Comparada, para evitar ser somente uma lista ou coleção de textos diferentes que nada, nem mesmo suas dessemelhanças, congregue. Isto também significa que o famoso tertium quid comparativo que mencionei acima não é algo que possa ou não ser usado, de acordo com as circunstâncias: sem ele (e portanto sem a figura do intérprete – e vou tratar desta questão mais adiante) não há mundo, não importa o quão pequeno, para construir ou descrever.

Uma das consequências de tal posição é que, do meu ponto de vista, Literatura-Mundo e Literatura Comparada  não são conceitos e campos mutuamente exclusivos, como foram definidos, principalmente nos anos 50, dentro do debate norte-americano sobre seu status acadêmico relativo (cf. D’haen, 2012). Muito pelo contrário, de fato.  Há muito a ser ganho  com uma compreensão de que ser capaz de uni-las através de enfoques similares de resolução de problemas é de fato um modo muito mais benéfico de proceder. Na verdade, um enfoque comparativo não é algo que se possa adicionar (ou não) à Literatura-Mundo, mas algo em que esta deve assentar-se, para ser definida como tal.

O textualismo é também pedra fundamental da Literatura Comparada. É por isto que sustento que somente um enfoque comparativo pode oferecer uma resposta adequada ao perigo apontado, entre outros, por Emily Apter (2013: 83), quando ela sublinha como a Literatura-Mundo pode se transformar em  “uma monocultura literária relativamente intratável que viaja através do mundo absorvendo a diferença”. Isto, é óbvio, tem relação com o medo da globalização que Spivak (2003) enunciou como um perigo de um conceito apressado de Literatura-Mundo – assentado em uma ideia monolítica de que o “progresso” pode agora ganhar a forma da não-diferenciação. Contudo, se lermos cuidadosamente, e evitarmos os perigos do pensamento de alguns epígonos, podemos também recordar que Damrosch postula, nas primeiras páginas de How to Read World Literature, que a circulação da Literatura-Mundo não visa à unificação, mas a como uma obra de arte se manifesta diferentemente em uma cultura outra em relação àquela na qual se originou. Poderíamos também querer recordar “Literature for the planet [Literatura para o planeta]” (2001), de Wai Chee Dimok’s, um modo de desvencilhar a literatura de procedimentos territorializantes. Ou, indo mais para trás, seria efetivamente útil recordar o conceito de comparatisme planétaire (1988), de René Étiemble, que ele expôs no começo dos anos 70.

Tiro meu exemplo, portanto, de uma descrição lusófona do que poderia ser uma perspectiva diferente de Literatura-Mundo Comparada, sabendo que isto é muito mais do que somente dizer que é uma descrição alternativa. E, para este fim, descreverei brevemente as condições e características de tal, como escala e ponto de vista.

No entanto, gostaria de começar por sublinhar que os debates atuais sobre Literatura Comparada, sendo debates sobre modos de leitura diferentes,  têm de nos fazer conscientes de que o item essencial  em jogo não é a natureza  de uma disciplina supostamente diferente, mas o modo como ela promove e convida diferentes maneiras de ativar o que fazemos com os textos: lê-los. David Damrosch (2003) definiu Literatura-Mundocomo um “modo de leitura”, em seu livro seminal sobre What is World Literature?[O que é Literatura-Mundo?] – um modo de leitura que ele corretamente conecta com tradução, e portanto com a habilidade dos textos de sobreviverem (e mudarem) fora de seu sistema original de produção. Entretanto, devo agora acrescentar que há mudanças entre diferentes sistemas literários que não dependem de tradução – este é o modo como devemos ver as literaturas ao redor do planeta que usam o português (ou efetivamente outras línguas) como sua principal língua literária. O fato de que muito países ou regiões ao redor do planeta produzam literaturas escritas em português não deve cegar-nos para o fato de que não podemos assimilar sistemas literários diferentes, reunindo-os apenas pelo critério da língua. Assim, o português como língua literária  é somente um dos fatores disponíveis, e de fato nos conscientiza não apenas de um compartilhamento, mas também de muitas diferenças literárias entre ramos europeus, sul americanos, africanos (ocidentais e orientais) ou asiáticos, que temos de levar em conta para nossa reflexão.

Tais considerações moldam o projeto no qual estou atualmente engajada, Literatura-Mundo: Perspectivas em Português. Realmente, ele deriva de uma convicção similar, embora acrescente, como vimos, uma determinação mais forte ao tentar caracterizar tal leitura não só como outra instância do que está habitualmente sendo feito mas como um desafio para ler de uma maneira diferente. É uma invenção e uma reorientação de leitura que se pode dizer que tem duas características principais: i) um enfoque comparativo, de acordo com as características que delineei antes; ii) uma consciência constitutiva do que o formalista russo Shklovsky chamou de “estranhamento” (ostranenie). A habilidade de comparar conjuntos de textos diferentes, mesmo dessemelhantes,  de sistemas que não necessariamente pertencem à mesma visão de mundo ou aos mesmos contextos culturais/históricos, desafia nossos modos estabelecidos de leitura. Ela nos faz tentar ler de outra maneira, e portanto inventar modos de abordar e ler textos que tentam responder ao estranhamento, à desfamiliarização, e ao que não pertence à mesma família, só para começar.

O que quero abordar com estes conceitos é o fato de que habitualmente tentamos encontrar os fundamentos para a comparação em similaridades e conformidades – mas também podemos praticar um maneira diferente de leitura, especialmente atenta àquilo que, em determinado texto, parece produzir ruído, ser “fora da caixa”, para introduzir dessemelhanças dentro do próprio texto, ou em sua relação com outros. Assim, de certo modo, nossa leitura deve estar atenta às “coisas que não dão certo” (ou “não deram certo”) em determinado texto – e à comparação entre textos diferentes. Também argumento que apenas grandes textos, que produzem desafios hermenêuticos, são capazes de fazer isto, de fazer o leitor supreender-se. Por outro lado, livros ou textos que correspodem totalmente às nossas expectativas iniciais, atendendo a elas da maneira mais “exata”, normalmente são minuciosamente “certos” – e sempre imediatamente esquecidos.

Temos, portanto, de abordar textos que, através de sua relação com outros textos que são dessemelhantes, exibam sua não-conformidade, e desafiem nossos modos estabelecidos de leitura. O que costumávamos encontrar nas semelhanças agora temos de estar preparados para aceitar como dessemelhanças, mas sendo capazes de conectá-las: é uma experiência que podemos relacionar com o que Aby Warburg chamou de experiência da “boa vizinhança” na constante reinvenção de sua biblioteca (cf. Buescu 2013): algo que nunca se completa, e oferece novas perspectivas desafiadores a cada vez que movemos um livro de uma estante para outra. Esta invenção da leitura é análoga ao gesto de mover um livro de uma estante para outra, algumas vezes para uma que nunca tinha sido considerada como uma estante possível, para começar.

O reconhecimento de que há leituras que produzem e promovem “coisas que dão errado” em um certo texto tem relação com o que o poeta português Herberto Helder chamou de “erro feliz”, ao descrever o trabalho que fez com traduções/versões/reproduções de literatura estrangeira para a língua (e a literatura) portuguesa. Pode-se, é claro, ligar isto à teoria da desleitura, desenvolvida por Harold Bloom, embora na perspectiva de Helder (e na minha) seja uma desleitura ou um erro que não se limita ao diálogo (e ao conflito) voluntário entre dois poetas ou dois mundos textuais. Podemos descrevê-lo, penso que de maneira mais pertinente, como uma ideia de incompatibilidades, de elementos que se destacam (ou são feitos para se destacarem) como dissonâncias nos corpos de textos. Uma leitura a partir da perspectiva da Literatura-Mundo Comparada terá de dar atenção especial ao que se destaca como leitura alienada, arriscada ou dissonante. Ao fazê-lo, ela se realça como uma consciência de deslocamento, o "erro feliz" que faz o leitor querer ler de novo, e ler de outra maneira. Não que estes “erros” tenham de terminar. Ao contrário, eles têm de ser compreendidos como ponto hermenêutico focal que continua a pulsar no texto e, ao manifestarem seu estranhamento, eles também oferecem a possibilidade de novas leituras. As consequências de tais leituras na reconsideração dos cânones nacionais têm, portanto, de ser levadas em conta também.

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