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Leitura do matriarcado de Bachofen

Maria Aparecida Barbosa[1]

[1] Universidade Federal de Santa Catarina


RESUMO:

O artigo objetiva mapear na literatura de expressão alemã a fortuna crítica dos estudos de Johann Jakob Bachofen, historiador do âmbito da Jurisprudência e do Direito Romano. Parte do ensaio de Walter Benjamin, detém-se a respeito do grupo “Kosmiker”, à guisa de estudo literário comparativo considera explícitas menções de Oswald de Andrade em A Utopia Antropofágica. Pergunta-se de que maneira essa fortuna crítica estaria relacionada com pontos discutidos na correspondência epistolar entre Thomas Mann e Károly Kerényi concernentes à “reelaboração do mito” e, finalmente, formula-se a hipótese de gradual descaracterização do feminino que se inclina à aura da sacralização materna.

Palavras chaves: Bachofen; mito; feminino.


ABSTRACT:

This article aims to map in the literacy of german expression a critical fortune from the studies of Johann Jakob Bachofen, a professor for Jurisprudence and Roman Law. It emerges from Walter Benjamin’s essay, holds about the “Kosmiker”, as a comparative literary study considers Oswald de Andrade’s explicit mentions in the book An Anthropophagic Utopia. This paper asks how this critical fortune would be related to a between Thomas Mann and Károly Kerényi about the “Umfunktionierung des Mythos and, finaly, formulates a hypothesis of gradual de-characterization of the feminine that trends to the aura of maternal sacralization.

Key words: Bachofen; myth; the Female.


Introdução

No ensaio “Rebelião dos extratos médios – uma discussão com o Círculo Tat” – acerca do jornal conservador “Die Tat” que argumentava pela síntese nacional-socialista, Siegfried Kracauer indica os riscos de vieses espiritualizados e nebulosos com que a literatura pode se transvestir e seduzir.É com motivação parecida, de desenvolver um estudo do mito e chamar a atenção à sua dimensão subversiva – e não religiosa –, que este artigo se propõe a pensar gestos tributáveis a mitos do matriarcado sem incidir nas provocações da "arte pela arte", tampouco se reduzir a "diletantismo moralizante" (BENJAMIN, 1986, p. 112). Mesmo porque, há mais matizes na leitura acerca do mito do matriarcado do que pressupõe uma leitura antitética. São distintas as motivações que levam os escritores nas diversas épocas, a começar por Bachofen no âmbito do Direito, a recorrer ao mito do matriarcado.

A questão, que hoje em dia é mais atual que nunca, sobre as relações jurídicas dos gêneros/transgêneros, sobre as causas que determinaram as desigualdades sociais advindas de gêneros e sobre as alternativas ao poder do masculino ante o feminino, foi aprofundada no livro Das Mutterrecht: eine Untersuchung über die Gynaikokratie der alten Welt nach ihrer religiösen und rechtlichen Natur (O Direito Materno – uma pesquisa sobre a ginecocracia do mundo antigo segundo sua natureza religiosa e jurídica), de 1861, de Johann Jakob Bachofen (1815-1885). Ele foi um autor muito mencionado e pouco lido, e suas formulações, no final do século XIX e no curso do século XX, foram intermitentemente apropriadas como princípios na literatura de comunistas, socialistas, anarquistas, feministas, humanistas, nacional-socialistas, esotéricos e outros.

O apanhado e a análise desses textos permitem constatar que um aspecto valorizado por um escritor passa anos mais tarde a ser estimado pelo lado extremo do espectro ideológico. Assim, se Engels se apoia nas pesquisas de Bachofen para consolidar os primórdios históricos do comunismo dentro de uma “lei natural”, nos anos 1920 elas são desvirtuadas de maneira a sustentar uma imagem feminina que se prestava ao nacional-socialismo e, por sua vez, desde os anos 1960, são retomadas por teorias feministas e do feminino.

O emaranhado da recepção e da fortuna crítica do livro Mutterrecht decorre de uma metodologia que apresenta o mito feminino à luz de diversas disciplinas. A primeira tese do historiador do âmbito da Jurisprudência e do Direito Romano da Basileia seria a total liberdade da vida sexual dos seres humanos que teria vigorado como uma condição divina em tempos imemoriais. Engels credita a Bachofen o mérito e o pioneirismo de estudar a questão sobre “aquele estado social primitivo, admitindo-se que tenha realmente existido, [que] pertence a uma época tão remota que não podemos esperar encontrar provas diretas de sua existência, nem mesmo entre os fósseis sociais, nos selvagens mais atrasados.” (1984, p. 32)

Nesse período de obscuridade moral, o estabelecimento do direito não teria se sucedido pelo laço paterno, era o direito materno que assegurava a filiação. O amor maternal representava o ponto de luz da vida, e assim, essa linha genealógica acaba por render às mulheres um domínio absoluto num estágio chamado ginecocracia – Bachofen fala em heterismo[2]. Regia, portanto, o “ius naturale”. Bachofen diz: “em minha apresentação destacarei especialmente os passos da elevação da espécie humana de estados absolutamente animalescos à cultura do matrimônio, e nisso procurarei tornar clara a transformação gradual de ‘ius naturale’ a um positivo ‘ius civile’”(1861, p. 10). A lei natural pressupõe o homem inserido numa ordem caótica, original. Ao patamar de existência primitiva, a mulher, com sua vocação religiosa, contrapunha a humanidade, o que comprovam ritos à Demeter, deusa da terra, da agricultura, e com isso propunha um modo de vida que vai se estabelecendo mais elevado, tranquilo, inclusive monogâmico. Todavia

o princípio demétrio surge como a violação de um mandamento religioso, contraposto e original, que o próprio casamento infligia. Por mais inconcebível que seja essa relação para a nossa consciência atual, ela tem o testemunho da história a seu favor, e pode explicar satisfatoriamente uma série de fenômenos altamente notáveis, nunca antes pensados em seu conjunto. Somente a partir dele se elucida a ideia de que o casamento exige daquela divindade uma expiação, cuja lei viola por seu caráter de exclusividade. Não era para envelhecer nos braços de um único homem que a mulher foi dotada de encantos dos quais dispõe pela natureza: a lei da matéria refuta toda restrição, odeia todos os vínculos e vê qualquer exclusividade como ofensa à sua divindade. (BACHOFEN, 1861, p. XIX).

Essa seria a compreensão de Bachofen para que a prostituição subsistisse, como uma espécie de garante simbólico da sagrada natureza mítica do feminino, de se dispor ao masculino.

Bachofen assegura de antemão em Mutterrecht, que as verificações da sua hipótese contêm um patamar de significação que equivale a diversas culturas; uma coincidência de visão genérica, para além de diferenças específicas. O panorama do sumário(Uebersicht des Inhalts) do livro propicia o percurso diacrônico que ele percorreu na pesquisa por vias de ramificações que contemplavam diversas culturas: Lícia, Atenas, Índia e Ásia Central, Locros, Lesbos, Mantineia.

A informação de Heródoto de que as atribuições de nomenclatura familiar na Lícia, região grega, se davam pela linha materna corrobora o dado de Nicolaus de Damasco, de que naquela cultura o viés matriarcal no direito à herança previa o legado às filhas. Assim, na sua pesquisa comparativa Bachofen vai fortalecendo com vínculos os pressupostos da tese. A preponderância das designações, em Creta, de amor mátrio, ao invés de amor pátrio, proviria de escritos de Plutarco. Evidências de que a saga das amazonas dos elevados territórios peruanos adquire significado de real existência do matriarcado sul-americano são apresentadas (BACHOFEN, 1961, p. 127) com o apoio de relatos de Condamine (Jounal d’un Voyage à l’équateur, Paris 1751, p. 101), Spix e Martius (Reise in Brasilien, München 1831). Por sua vez, no Egito, a ginecocracia determinava a hierarquia da realeza, e essa precedência advinha do destaque divino de Isis ante Osíres. Na civilização da Grécia Antiga, a oposição do princípio demétrio contra o hetérico tem na disseminação da religião dionisíaca uma guinada funesta, tendo em vista que Dionísio surge como importante combatente das conquistas matriarcais. Adversário implacável da degeneração à qual o feminino desandara as relações sociais, perspectiva dionisíaca, mostrou-se benevolente com a lei do casamento, com a determinação do retorno da mulher ao papel de mãe, visando dessa maneira fazer reconhecer a esmagadora glória de sua própria natureza masculino-fálica (Bachofen, 1861, p. XXII). E assim por diante, o calhamaço desfia uma extensa gama de ilustrações desses estágios e postula que a ordem matriarcal “se distinguia profundamente da ordem patriarcal do ponto de vista jurídico e do ponto de vista sexual.” (BENJAMIN, 2013, p. 101).

Uma das mais convincentes passagens do livro é, sem dúvida, a referência à trilogia de peças teatrais "Oresteia", de Ésquilo, que traz a representação do julgamento de Orestes. A fim de vingar o assassinato do pai Agamemnon, Orestes mata a mãe Clitemnestra. Os jovens deuses, divindades representantes do direito paterno: Apolo, que por um oráculo incitara Orestes a matar a mãe, e Palas Atena, chamada a formular a sentença, o inocentam do crime de matricídio. A trilogia de Ésquilo desenvolve a discussão entre Orestes e as Eríneas, seres demoníacos que protegem o direito materno. Em certo trecho ele pergunta, por que é que elas o perseguem, se a mãe Clitemnestra matara Agamemnon que era o marido dela e pai dele? E a resposta das Eríneas vem comprovar a tese de um remoto período de florescente matriarcado defendida por Bachofen: “Ela não estava unida ao homem por vínculos de sangue, o qual assassinou.”. Essa seria uma tradução bem literal da resposta constante no livro de Bachofen: “Sie war dem Mann nicht blutsverwandt, den sie erschlug”. (1861, p. 45). A missão das Eríneas era punir homicídios de pessoas com vínculos consanguíneos, sendo que, desses homicídios, o matricídio era o mais imperdoável. Quando Atenas – Minerva para os romanos – dá seu voto e absolve Orestes do matricídio, as Eríneas se resignam de vez à instituição que presenciavam de um novo Direito, marcado agora pela linha patriarcal.

Embora Friedrich Engels, no livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (de 1874) admita que essa alusão à Oresteia, representa o marco da história da família, ele se contrapõe diametralmente à tese do Direito Materno, pois:

é a prova de que Bachofen acredita, como outrora Ésquilo, nas Eríneas, em Apolo e Palas Atena, isto é, crê que foram estas divindades que realizaram, na época heroica da Grécia, o milagre de derrubar o direito materno e substituí-lo pelo paterno. É evidente que tal concepção, que considera a religião como a alavanca decisiva na história do mundo, conduz, afinal de contas, ao mais puro misticismo. (ENGELS, 1984, p. 9)

Fez-se necessária a digressão, com a revisão do livro de Bachofen e o de Engels para respaldar, na sequência, a reflexão da poesia e das posições do grupo que se reunia entre 1897 e 1904 no Bairro Schwabing de Munique, o que este artigo igualmente mapeia. É sabido que uma das bases fundamentais do pensamento dos “Kosmiker” remonta sua interpretação idiossincrática da hipótese de Bachofen, segundo a qual se considera somente a regressão em direção à antiguidade. Seus rituais tinham por fim a adoração de uma condição humana pré-histórica. Assim, história para os cósmicos seria não somente em direção ao tempo passado, mas um movimento para a ruína/o decaimento (Verfall). Dentro dessa concepção, racionalismo e orientação rumo ao progresso se contrapõem ao que é genuíno e autêntico. A poesia e a prosa em fragmentos eram as formas de articular esse pensamento que prezava o misterioso, o obscuro, a fascinação pelas imagens irracionais e ancestrais da cosmogonia. A esses atributos adicionava-se a distinção dos gêneros, a condição hermafrodita que pai e mãe em si reuniriam.

Feminilidade não significa mais um polo da tríade simbólica, porém o meio que liga os polos, na medida em que ela significa maternidade, e maternidade quer dizer o lugar que guarda e nutre do mesmo modo a vida por vir e a pretérita. (KLAGES, 1981, p. 1329)

Complementando essa postulação difusa de gênero, o catolicismo para Schuler, teria extinguido a “força iluminadora” (lichtbringende) do homoerotismo e contribuído para a condição dos laços do casamento. Nesse sentido, nutria ódio irrestrito ao casamento burguês (DÖRR, 2007, p. 206).

Os poemas do livro Auto do Possesso (1949), de Haroldo de Campos, contêm o gesto de se voltar a deuses babilônicos, sumérios e romanos, apresentando uma erudição mitológica, aproximada à mistura alucinada e órfica a que o escritor Oswald de Andrade alude em seus ensaios sobre o matriarcado. À guisa de estudo literário comparativo com este artigo que tenta traçar um mapeamento das afinidades com a literatura de expressão alemã, importa aludir aos efeitos que a literatura antropológica de Bachofen, sobretudo o livro Das Mutterrecht, surte no pensamento fecundo de Oswald de Andrade, o que explicitamente se manifesta no livro A Utopia Antropofágica:nos ensaios "A Marcha das Utopias", "Variações sobre o Matriarcado", "O Achado de Vespúcio". indico para essa discussão a pesquisa de Felipe Vicari (2017) que alia ao debate antropológico questões do direito e da literatura.

A literatura de língua alemã recupera ao longo do século XX afinidades com noções do caráter telúrico, órfico, conforme Bachofen trazia da mitologia e da história do Direito, algumas vezes aventando vínculos tão estreitos entre o feminino ligado ao masculino que conduzem à sugestão de indistintos, de gênero humano: “os mistérios da religião ctônica adquirem com a ligação da mãe com seu filho magnífico resplendente um desenvolvimento (...) uma esperança mais elevada” (1861, p. 225). Essas aberturas em geral redundam em compreensões das mais variadas.

Entre tantos poemas que exaltam o espírito do decaimento, o poeta Stefan George dedicou a Schuler (Ingenio Alf. Scolari) “Porta Nigra”, que integra a série Zeitgedichte (poesias do tempo) do livro O Sétimo Círculo. Desperta dos tempos antigos a figura de Manlius, a fim de zombar sarcasticamente do tempo presente. No último verso se apresenta o enunciador em primeira pessoa como o jovem que na cidade de Trier, cuja fama concorria com a irmã Roma, noite após noite se ungira com perfumes persas e se postara ao umbral da Porta Nigra para se prostituir.

Recepção renovada

Após a primeira edição (1861) somente 1926 testemunha a publicação dos textos selecionados no livro Der Mythus von Orient und Occident. Eine Metaphysik der alten Welt - J. J. Bachofen (O mito do oriente ao ocidente. Uma metafísica do mundo antigo – J. J. Bachofen), cujo prefácio, "Bachofen der Mythologe der Romantik", era de autoria de Alfred Baeumler, filósofo que mais tarde vai aderir ao nacional-socialismo. A partir da edição sucede um renovado interesse pelo matriarcado na República de Weimar, conforme afirma Soheir na pesquisa Der Archetyp der Grossen Mutter (o arquétipo da grande mãe) em que investiga a literatura de Hermann Hesse e Gerhardt Hauptmann e constata afinidades das personagens femininas de Hermann Hesse com o arquétipo pensado através da psicologia de C. G. Jung. Se antes o mito se difundira sobretudo através dos Kosmiker, agora a edição dos textos seletos é que marca a recepção da pesquisa de Bachofen no âmbito de expressão alemã.

O prefácio nega a importância histórica da pesquisa de Bachofen em detrimento de sua metafísica. Quando da edição dos seus próprios textos, em 1937, Baeumler transforma o prefácio em ensaio e o insere com poucas alterações no volume. Uma alteração é o direcionamento expresso no título do estudo que faz preponderar o caráter apolíneo do mito do matriarcado com a remissão aos estudos de Johann Joachim Winckelmann acerca da antiguidade clássica. Em "de Winckelmann a Bachofen", portanto, Baeumler afirma o seguinte: "No prefácio [da edição de 1926] se tratava sobretudo de uma nova determinação do aspecto clássico-apolíneo. Aqui [por sua vez] se desenvolve a evidência da necessária relação entre mito e nação (Volkstum), um sentimento fundamental do romantismo de Heidelberg”. A reedição do prefácio alinhava o liame com o nacionalismo, que foi um viés relevante no romantismo literário do grupo de escritores sediados na cidade de Heidelberg.

Na reapresentação dessa literatura, Baeumler refuta a hipótese do socialismo que, ao mostrar o desenvolvimento da humanidade em condições comunistas, recorre às teorias de Bachofen, colocando-o como um dos fundadores desse viés histórico. O romântico Bachofen, totalmente voltado ao passado, e Marx, o apaixonado revolucionário e fanático do futuro, perfariam a maior antítese do século XIX.

Erich Fromm discorda dessa observação de Baeumler e faz notar que um rudimento de dialética bastaria para demonstrar que os opostos frequentemente possuem mais em comum do que se seria de se supor. O ensaio de Fromm acerca da teoria do matriarcado, Die sozial-psychologische Bedeutung der Mutterrechtstheorie (o significado social-psicológico da teoria do matriarcado), que foi publicado em 1934 na Revista do Institut für Sozialforschung, é bem conhecido dentro dessa recepção renovada após a edição dos anos 1920. Ele parte da notável originalidade compartilhada por três obras publicadas quase na mesma época: A origem das espécies (1858), de Darwin; a Crítica da Política Econômica (1859), de Karl Marx e o Direito do Matriarcado (1861), de Bachofen. Seriam três pesquisas concernentes a questões científicas especiais, que suscitaram para além do círculo dos especialistas o vívido interesse também de estudiosos e diletantes. Quanto a Marx e a Darwin, o impacto seria compreensível. O que complica no caso da teoria de Bachofen é o fato de que a concordância entusiasmada com sua teoria do matriarcado proveio de duas visões e concepções políticas diametralmente opostas. O psicanalista denuncia, então, a maneira como a aspiração ao amor maternal, num novo contexto em que a questão vinha sendo tratada, passava a ser substituído por uma perturbação que invertia essa aspiração e exigia a tutela e a veneração da mãe. Essa inversão da atitude natural para com a mãe repercutia ademais em todo uma simbologia que lhe era conferida, de país, povo, terra. Tais interpretações e teorias nacional-socialistas conduzem à descaracterização do feminino e lhe conferem um viés apolíneo que tende à aura da sacralização materna.

Em 1988, no prefácio à edição italiana de Mutterrecht o mitólogo Furio Jesi defende a necessidade de uma edição integral da obra de Bachofen ao seu idioma, queixando-se igualmente das sequelas da descaracterização que a recepção, na maioria das vezes por parte da política de direita, lhe teria impingido.

O nebuloso, o pantanoso

Em História de uma amizade, Gershom Scholem informa que Walter Benjamin se ocupava das leituras de Bachofen em 1916. Numa carta a Florian C. Rang, datada de 1922 mas não publicada, Benjamin recomenda a leitura do livro Mutterrecht. O primeiro texto que Benjamin publica acerca do assunto é a resenha de 1924 do livro de Carl Albrecht Bernoulli: Carl Albrecht Bernoulli. Johann Jakob Bachofen und das Natursymbol. Ein Würdigungsversuch. Em 1927 resenhará também Johann Jakob Bachofen, Griechische Reise.

O livro de Bernoulli que ele resenha primeiro seria uma recuperação de Bachofen, sob as lentes de um membro frequentador das reuniões do Bairro Schwabing, Ludwig Klages – autor do livro Sobre o Eros Cosmogônico. Mais tarde, numa carta datada de 20 de julho de 1934, que escreve a Gershom Scholem Benjamin vai dizer que na ocasião estava lendo diretamente os textos de Bachofen, que até então lera somente através desses dois livros: o de Bernoulli e o de Klages. Logo, na resenha, Benjamin observa que com os estudos de Ludwig Klages as doutrinas míticas do matriarcado saem do esoterismo e passam a esboçar um sistema dos fatos naturais e antropológicos, que fundamentam a cultura antiga, apoiando-se no reconhecimento que Bachofen faz da religião patriarcal ctônica (da agricultura e da morte). Dentre as realidades da "mitologia natural", que Klages em sua pesquisa dos milênios de esquecimento procura recuperar à memória humana, estariam em primeira linha as chamadas "imagens", parcelas reais que surtem efeito somente no êxtase e sob cuja força um mundo se descortina dos sentidos mecânicos através do meio humano. Imagens seriam almas, fossem almas de coisas ou de pessoas; longínquas almas do passado configuram o mundo no qual a consciência do primitivo, comparável à consciência de sonhos do homem atual, acolhe suas percepções.

É no sentido de encorajar enfrentamento ao estudo de Klages, que Benjamin saúda o livro de Bernoulli:

Esse empreendimento é tanto mais frutífero, porquanto ele ao mesmo tempo conduz consigo uma discussão com Klages e sua rejeição desesperada da condição do mundo "técnico" e "mecanizado". Uma discussão, que não ultrapassa o centro filosófico, ou melhor teológico, do qual Klages dirige sua profecia de catástrofe com uma virulência, que deixa as tentativas de outros juízes da cultura, como a que o círculo de Stefan George articula, parecerem assunto encerrado. De vitoriosa não se pode chamar essa disputa, embora nós mais que o próprio Bernoulli estejamos convencidos de sua necessidade de maneira bem mais rigorosa. Ela fica, desse modo, ainda a desejar. (BENJAMIN, 1999 III, p. 43)

Na sequência da resenha Benjamin diz que Bernoulli deixa uma névoa de Boudoir – “Boudoirdunst” –, que exigia nova atenção. Depreendo, assim, que vinha de longa data germinando a intenção de escrever um artigo sobre a questão do mito do matriarcado – o que, de fato, ele inicia em 1934 conforme correspondência de 25 de maio de 1934 com Jean Paulhan, Diretor da Nouvelle Revue Française, a que se destinava a publicação, e no decorrer do ano em outras menções. Em carta a Adorno (BENJAMIN, 1999 III, p. 968) confessa a dificuldade que enfrentava em se contrapor à exposição de Klages no sentido que lhe interessava, justamente de uma passagem das imagens arcaicas às dialéticas como formulara antes contra Brecht, de uma doutrina de ideias materialistas.

O planejado artigo é publicado somente 14 anos após a morte de Benjamin em Les Lettres Nouvelles (Jg. 2 [1954], Heft II, 28-420. A Nouvelle Revue Française, por sua vez, certamente através de um convite de Jean Paulhan, traz no volume 302, de 01/11/1938 a resenha de Roger Caillois, “Du règne de la mère au patriarcat, de J. J. Bachofen”. 

Em março de 1935, Horkheimer lhe escreve dizendo-se especialmente interessado no artigo “Bachofen”, pois acabara de escrever um texto concernente à autoridade e à família, no qual a questão do matriarcado surgia subliminarmente. Ao que Benjamin responde que o artigo certamente não lhe acrescentaria tanto, porque considerando que Bachofen não fora traduzido ao francês o artigo consistia em grande parte da apresentação bibliográfica (BENJAMIN, 1999 II-3, p. 967)

Em dezembro de 1934 Benjamin envia a Adorno “Franz Kafka – pelo décimo ano de sua morte” que fora aprimorado simultaneamente à escritura do artigo em francês “Johann Jakob Bachofen”. Inevitavelmente a interpretação das personagens femininas de Kafka nesses estudos está contagiada pela pesquisa acerca de Mutterrecht, isso pode ser acompanhado no item “o homenzinho corcunda”:

a época em que Kafka vive não significa para ele evolução frente os primórdios (Uranfänge). Seus romances falam de um mundo pantanoso. A criatura aparece nele no estágio que Bachofen designa de hetérico/hetaírico. Que esse estágio esteja esquecido não quer dizer que a criatura não vá aflorar no presente. Mais que isso: ela está presente justamente devido ao esquecimento. (BENJAMIN, 1999 II-2, p. 429)

É do solo pantanoso dessas experiências que as figuras femininas surgem, como criaturas palustres, por exemplo, a ambígua Frieda que lembra de sua vida pregressa: “belos tempos, você nunca perguntou do meu passado”. Isso conduz ao seio – desenvolve Benjamin sua interpretação – sombrio de eras remotas, quando se realiza aquela copulação, “cuja luxúria infrene”, para falar com Bachofen, “é odiada pelas forças puras da luz celeste e justifica a designação ‘luteae voluptates’ (prazeres imundos), de que Arnobius se servia”. (BENJAMIN, 1999 II-2, p. 429)

A maneira casual das figuras nas conversas com K., como se ele há muito soubesse daquilo que elas dizem, e tivesse apenas esquecido, Benjamin interpreta como “jogo da memória associada à devoção é assume papel bem misterioso”. Um esquecimento do mundo primordial, nunca de ordem individual. “Odradek é a forma, que assumem as coisas no esquecimento” (BENJAMIN, 1999 II-2, p. 431)

Chamando a atenção para o fato de Walter Benjamin empregar três vezes o atributo “nebuloso”, ao se referir à literatura de Kafka, o pesquisador Werner Hamacher (1948-2017) constata e desenvolve em “el gesto en el nombre” (2012) a ideia do fracasso como uma das figuras mais importantes do modernismo. A escritura em linguagem desvalida, sem a segurança epistêmica (verdadeira, racional, científica) estaria num âmbito intermediário que ele chama “hermadrodita” (Hamacher, 2012, p. 6) É da dificuldade de decidir se Kafka seria visionário, sábio, se escreveu parábolas ou ficção que Benjamin instaura o caráter de malogro, de fracasso, de inconcluso, para essa literatura. Nela, na literatura ambivalente, turva, nublada das parábolas de Kafka, em que o escritor desaprova uma tarefa do relato exemplar, com moral eminentemente clara, a nuvem estaria chamando a atenção para si, frustrando o ensino na representação e borrando a linha que demarca uma fronteira entre literatura e vida. A consequência formal dessa ambiguidade seria a transformação formal do texto parábola que, não servindo à introdução dialética de uma moral, postergando, retardando a moral mais e mais num exercício semelhante ao de Sherazade, redunda em novela, em ficção.

O ambíguo, o ardiloso

Não obstante a complexidade da literatura de Thomas Mann, na medida que os mitos perfazem veio dos mais importantes dos grandes romances desse escrito, este artigo não poderia renunciar a pensar em alguns textos fundamentais para a reflexão.

É de 1925 o ensaio de Thomas Mann, “Die Ehe im Übergang – Brief an den Grafen Hermann Keyserling” (o casamento em transição – carta ao Conde Hermann Keyserling), uma apologia homoerótica publicada a convite de Hermann von Keyserling no livro Das Ehe-Buch, eine neue Sinngebung im Zusammenklang der Stimmen führender Zeitgenossen (o livro do casamento, uma nova concepção afinada com as vozes de contemporâneos). Ele relega do ao XIX, não ao XX, a relação da mulher, da dona-de-casa, com o homem num modelo da tradição patriarcal burguesa. O homoerotismo, o vínculo de amor e sexo entre homens nutria aceitação favorável, em vez de ser visto somente à luz de monstruosidade clínica – “nicht nur im Lichte klinischer Monstrosität gesehen” (1925, E-book). Características do casamento – duração, fundação, continuação, procriação da espécie, responsabilidade, não condiziam com o homoerotismo. De certa maneira, Mann defende no ensaio uma noção de amor livre, no sentido de não ter em vista fecundidade, perspectiva, consequência, responsabilidade, senão “arte pela arte”, sem dúvida amoral, admitia. Com colocações tão ousadas, Thomas Mann surpreendia.

Acima de tudo, porém, ele rechaça no ensaio a ideia de restauração, da veleidade do retorno, da retomada do velho e digno, do restabelecimento do sagrado destruído. Seria uma tentativa vã, pois não há retorno. Toda fuga em formas históricas destituídas de vida é obscurantismo; recalque que gera somente mentira e doença, ao negar a vida em suas inesgotáveis forças regeneradoras, para a formação de nova dignidade, forma e cultura.

Nos primeiros dias de 1934, após Thomas Mann ter publicado o primeiro livro da tetralogia José e seus irmãos, O Livro de Jakob, o jovem mitólogo Karl Kerényi envia a ele, com uma dedicatória, um artigo que traduzira ao alemão “Unsterblichkeit und Apollon-Religion”. Kerényi assegurava que em comparação com a literatura recém-publicada a teoria mítica se encontrava num estágio atrasado. No início da correspondência epistolar que a partir daí se estabelece, Thomas Mann fala das dificuldades de retomar a mitologia, tendo em vista a apropriação ideológica que o nacional-socialismo empreendia. Admitia ignorância quanto às investigações voltadas aos mitos eruditos da antiguidade greco-romana, rememorando, contudo, agradáveis lembranças das leituras de tantos livros que lera na infância. Àquela época, porém, inclinava-se principalmente aos problemas do real e do contemporâneo, ao invés de se interessar por essas discussões.

Há na literatura europeia contemporânea uma espécie de rancor contra o desenvolvimento do cérebro humano que me parece uma maneira tola e esnobe de auto-negação. Permita-me confessar, não sou amigo do chamado movimento hostil ao intelecto e ao espírito, representado por Klages. Bem cedo o temi e o combati, por vislumbrar nele consequências brutais e anti-humanas, antes que se tornassem manifestas. (...) Contudo, uma aproximação ao matriarcado de Bachofen compreende exercício simultâneo de recuperar certa amplitude órfica. (MANN, KERÉNYI, 1967, p. 30)

O húngaro insta no desenvolvimento da troca de cartas com Thomas Mann pelo Umfunktionierung des Mythos (reelaboração do mito). Ao ler em 1925-6 a tradução húngara do romance A Montanha Mágica ele conta que lhe instigara a personagem Settembrini, na qual identificava a perspicácia e a precisão da linguagem. Aos estudiosos da história das religiões atrai de modo especial a condição do homem próximo às circunstâncias da morte. Na constelação dos personagens do romance, a matéria, portanto, lhe chamara a atenção. Em Settembrini acreditava reconhecer a qualidade hermética relacionada ao atributo que remonta à Grécia antiga, à realidade anímica do deus Hermes. Esse caráter que conferia fidedignidade ao deus consistia na faculdade espiritual bastante elevada de se sentir à vontade tanto no reino dos mortos como no dos vivos. É ele por exemplo quem guia Orfeu na busca de Eurídice – pense-se em poemas de Ovídio, de Rilke. Aludindo à origem brasileira da linha materna do escritor, que era filho da brasileira Júlia Mann, Kerényi atenta aos olhos escuros e a outros atributos físicos conferidos ao personagem Settembrini. À grande distância desse caráter articulava-se, com o procedimento da montagem que era a maneira como o escritor se referia ao seu método, Naphta, o demoníaco dogmático.

Nos anos 1960, ao organizar a correspondência epistolar para a edição que compôs, Kerényi avalia retrospectivamente a ingrata tarefa a que Thomas Mann se propusera em prol do humanismo sempre utópico, sempre insuficiente num mundo carente de sentidos, de afetos. Os documentos contidos naquelas cartas lhe apresentam algo como um consolo em tempos difíceis. A essas cartas, somo outra contribuição de Mann. Ao caráter do feminino que Bachofen foca com sua pesquisa e que no curso dos séculos foi se esmaecendo, seria necessário aproximar o último e inacabado romance de Thomas Mann, datado de 1951. Quatro décadas a fio o escritor se dedicou à escritura desse livro. Mas é, enfim, no protagonista de As Confissões do impostor Felix Krull que ele logra sugerir uma criatura de espírito livre e dotada da exuberância de tempos míticos matriarcais: Felix, designado, não por acaso, e em sintonia com o espírito das narrativas da infância do seu criador.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo, 2011.

BACHOFEN, Johann Jakob. Das Mutterrecht: eine Untersuchung über die Gynaikokratie der alten Welt nach ihrer religiösen und rechtlichen Natur. Stuttgart: Verlag von Krais & Hoffmann, 1861.

BAEUMLER, Alfred. “Von Winckelmann zu Bachofen” [1926]. In: Studien zur deutschen Geistesgeschichte, de Alfred Baeumler. Berlin: Junker und Dünnhaupt Verlag, 1937.

BENJAMIN, Walter. “Johann Jakob Bachofen”. In: Tiedemann, Rolf/ Schweppenhäuser, Hermann (Orgs.) Gesammelte Schriften Band II-1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1999.

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Submetido em 03/12/2017; Aceito em 01/03/2018


Notas

[2] Naturalmente, entre as mulheres que viviam do aluguer do corpo, havia as “finas” e as... de esquina de rua ou de encruzilhada, aliás normalmente designadas de modo diferente: por um lado, as hetairai, “heteras” ou “cortesãs”, que, à maneira das suas predecessoras da época clássica, pretendiam ser “companheiras” dos seus amantes, para o que sabiam proporcionar-lhes outros prazeres além dos da carne. Samósata. Luciano de. Luciano. Tradução do grego, introdução e notas Custódio Magueijo. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2012. P. 37

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