A trilogia ‘Os Sonâmbulos’ e a degradação de valores: epistemologia, estética e outras aproximações analíticas

A trilogia ‘Os Sonâmbulos’ e a degradação de valores: epistemologia, estética e outras aproximações analíticas

Itamar Rodrigues Paulino[1]

[1] Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA


RESUMO:

O Presente artigo analisa epistemológica e esteticamente a obra Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Dividido em tópicos, o texto resgata a biografia do escritor, evidenciando sua sensibilidade para com o ser humano, e o uso desse sentimento para compor Os Sonâmbulos, uma trilogia que apresenta o colapso dos Sistemas de Valores Humanos. O artigo investiga os três episódios com três proposições para a compreensão da obra: Pasenow e a incapacidade humana de romper com avatares; Esch e a desregrada busca por ordem e justiça, entre nostalgias e idiossincrasias; e Huguenau e a desfaçatez e o cinismo como garantias de felicidade. Além dessa análise, o artigo investiga Bertrand, narrador filósofo e suas digressões sobre degradação, desintegração e dissolução de sistemas de valores, para, enfim, tecer reflexões sobre a vida sonâmbula.

Palavras-chave: Epistemologia; Estética; Sonambulismo; Ética; Valores Humanos.


ABSTRACT:

This article analyses epistemologically and aesthetically Hermann Broch’s masterpiece The Sleepwalkers. The text is divided in topics and it rescues the biography of the writer evidencing his sensitivity to the human being, and the use of this feeling to compose The Sleepwalkers, a trilogy that presents the collapse of Systems of Human Values. The article investigates the three episodes with three propositions for the understanding of the novel: Pasenow and the human inability to break with avatars; Esch and the unruly search for order and justice, between nostalgia and idiosyncrasies; and Huguenau and the lack of courage and cynicism as guarantees of happiness. In addition to this analysis, the article investigates Bertrand, a philosopher narrator and his digressions about degradation, disintegration and dissolution of value systems as to make, finally, reflections on somnambulistic life.

Keywords: Epistemology; Aesthetics; Sleep-walking; Ethics; Humans Values.


Introdução

Hermann Broch teve o grande mérito de sobrecarregar o romance com enormes responsabilidades, afirmou Kundera em uma entrevista a Christian Salmon (1984)[2], por acreditar que o romance funciona como uma grandiosa síntese intelectual, o último lugar onde o homem ainda pode questionar o mundo como um todo, conclui Kundera. Broch tinha tanta clareza disso que reivindicava ao romance o poder de servir de síntese do mundo, isto é, como lugar onde várias formas de se escrever podem ser aglutinadas e se compor uma espécie de romance total cujo objetivo maior seria o de apresentar conhecimentos a respeito da existência humana.

Com brilhantismo intelectual, Broch desenha uma arquitetura singular para uma de suas obras mais contudentes, Os Sonâmbulos. Escrito em três episódios, o texto tem em Pasenow, Esch e Huguenau as representações de uma época em franca decadência misturada a uma nova era por nascer. Entrecortando a história desses personagens, há figuras aparentemente secundárias que provocam uma série de reflexões simultâneas, garantidas pela multiplicidade de eventos com relativa autonomia que vão sendo ajuntados, à medida que o enredo se desenvolve, para culminar com a grande temática da obra: a dissolução dos valores humanos. A lógica interna da trilogia estabelece um ritmo avassalador de desenvolvimento do enredo ao ponto de nos oferecer uma teia complexa de relações dialógicas entre várias consciências, pontos de vista e posições ideológicas que se confrontam a fim de garantir a reflexão axial da degradação dos valores: descobrir se essa época, não somente a retratada no romance, e se essa vida que se desagrega terão ainda uma realidade. Neste sentido, várias figuras ganham voz e tomam posição diante da realidade explicitada pelo narrador.

A estrutura narrativa do romance Os Sonâmbulos de Hermann Broch detém, projeta e torna ficção um jogo entre várias vozes, ensaiando e encenando as relações entre personagens, autor, narradores, ficção, realidade e imaginário que parecem ter sido pensados a partir de um ato autoral que optou por uma temática universal. Ato esse que nasce da contemplação de Broch sobre o mundo e a desintegração de valores e não deve ser tratado como uma experiência psicológica, mas como uma experiência do pensamento, que é um olhar epistemológico, que se faz estético, que é contemplativo sobre o mundo e si mesmo, e encontra abrigo em vários formatos textuais. Cremos ser essa a experiência aflitiva do eu autoral brochiano ao tentar dar conta da razão interna intensamente desordenada da lógica formalista, um logos spermatikos [ratio seminalis],para usarmos o termo de Maffesoli (2005, 116), pretensa a explodir em palavras e formatos literários o olhar inquieto do autor sobre o mundo.
Hermann Broch demonstra na trilogia uma aflição autoral que enxerga na própria narrativa a insuficiência para denunciar a degradação dos valores humanos. Por isso, na parte final da trilogia, ele se utiliza de ensaios, poemas e digressões como forma de fundir ficção e filosofia, enfatizando o tema da dissolução dos valores de uma época, em vista da solução do paradoxo de sua própria arquitetura literária: escrever e descrever uma época velha e morta, mas que ainda existe em simultaneidade com uma nova e viva, mas ainda não gerada, daí seus viventes serem chamados simplesmente de Os Sonâmbulos.

Nessa obra, o autor opta por um tipo de narrativa feita sob o efeito de um êxtase germinativo que provoca o apagar do seu “eu”, expandindo-o na vida do narrador e de diversos personagens. Na voz do narrador, o mundo exterior é recriado e a realidade imediata estilhaçada sem ser desvalorizada. Por esse processo, acreditamos que Broch ajuda o “eu” privado do leitor a apreender pela intuição e por uma investigação epistemológica o parentesco íntimo de sua própria condição humana com a do mundo exterior. A faculdade criativa desse vienense em produzir literatura tem vínculos imprescindíveis com a faculdade cognitiva de domínio do mundo encontrada nas ciências, e a faculdade especulativa e filosófica sobre a existência humana. A literatura que Broch promove na trilogia investigada não se refere a apenas criar uma narrativa ficcional, mas a romper com o formalismo narrativo, inserindo textos argumentativos para gestar conhecimento e especular sobre a ética do mundo. Isso acaba transformando a trilogia em um verdadeiro tratado de teoria do conhecimento. Certamente isso é herança de suas atividades como estudioso da epistemologia e da psicologia.

Considerando Broch nesta perspectiva, podemos afirmar que seu discurso literário é um instrumento de grande poder estratégico para oferecer uma compreensão livre da experiência humana sobre a dissolução da realidade a partir da degradação e desintegração dos valores. A experiência de narrar histórias, fomentando uma simbiose nas formas de expressar racionalidades e irracionalidades com estruturas linguísticas propositadamente escolhidas e critérios não poucas vezes escondidos nas entrelinhas da narração, até o seu esgotamento, e a chegada ao paradoxo terminal (Banerjee, 1993), parece ter sido a mais prazerosa atividade de Broch, e para nós, seus leitores, um desafio descomunal na apreensão de suas proposições epistemológicas, estéticas e éticas.

Hermann Broch, um ser sensível à sua época: notas biográficas

Hermann Broch, escritor, ensaísta, judeu, industrial, exilado. Esses adjetivos parecem o suficiente para sintetizar a vida de um escritor considerado um dos grandes nomes do século vinte, mas não o é. Broch é um escritor divisor de época. Segundo filho de Josef Broch e Johanna Schnabel Broch, ele nasceu em primeiro de novembro de 1886, em Viena, na Áustria e faleceu em 30 de maio de 1951, em New Haven (Connecticut), Estados Unidos[3]. Sessenta e cinco anos de uma vida inquieta e angustiada por causa da desintegração dos valores de sua época. Seu pai era um rico judeu industrial do ramo têxtil, que ainda jovem e pobre mudara da Moravia para Viena e se convertera ao Catolicismo, e sua mãe nasceu em Schnabel, judia filha de um atacadista. Embora pouco se saiba sobre seus estudos iniciais, Hermann Broch teve seus primeiros anos de educação em ambiente privado. Com a idade de onze anos (1897), iniciou estudos na Escola Secundária Real alemã (1897-1904) e logo em seguida frequentou o Instituto Técnico de Manufatura Têxtil de Alsace-Lorraine (1904-1906). Depois do Instituto Técnico, ele prosseguiu sua formação no Instituto de Fiação e Tecelagem de Mülhausen (1906-1907). Esses estudos destinavam a prepará-lo para um cargo administrativo na fábrica de seu pai, em Teesdorf. Ainda em 1907, ele se graduou em engenharia, viajou aos Estados Unidos para observar fábricas e moinhos e, ao voltar, desenvolveu e patenteou uma máquina de moagem de algodão.

Nesse período eclode a Primeira Grande Guerra. Ciente de seu papel social durante a guerra, ele serviu como administrador da Cruz Vermelha austríaca. No ano de 1909, casou-se com Franziska von Rothermann com quem teve, em 1910, seu primeiro e único filho, Hermann Friedrich Broch de Rothermann. Com a aposentadoria de seu pai em 1915, Broch assumiu a gerência da propriedade da família e nos 10 anos seguintes, ele planejou desistir de seu futuro brilhante como empreendedor industrial. No ano de 1919, assumiu um trabalho como crítico na prestigiada Revista Die Moderne Welt, sobretudo por conta dos contatos da amiga e mais tarde sua segunda esposa, a jornalista Ea von Allesch.

No ano de 1927, Broch vendeu a fábrica herdada do pai. De 1927 a 1930 envolveu-se com estudos de matemática, filosofia e psicologia na Universidade de Viena, onde o influente Círculo de Viena havia sido organizado. Depois de frequentar diversos encontros, Broch concluiu que a tarefa única da literatura seria a de lidar com problemas cujas soluções escapam das ciências rígidas. Decepcionado com a relutância dos seus professores em considerar questões metafísicas, Broch desistiu da vida acadêmica para se embrenhar no universo ficcional. Sua convicção era a de que os mais profundos conteúdos da experiência humana, então rejeitados pelo Círculo de Viena, teriam eco infinito na literatura. Desde então, dedicou sua vida ao estudo e à prática da literatura para, por meio dela, lidar com questões éticas e com a experiência humana.

Em 1932, com a idade de quarenta e cinco anos, publicou seu primeiro romance, a trilogia Die Schlafwandler [Os Sonâmbulos], com uma engenharia bastante distinta, cujo formato inclui narrativas, digressões e ensaios sobre desintegração de sistemas de valores. É a partir dessa obra que ele assume a necessidade de a literatura prezar pelo conhecimento, principalmente os textos romanescos. No mesmo ano, a propagação do Fascismo e do Nazismo fez Broch abandonar seus projetos literários. Nos anos de 1937 e 1938, ele trabalhou no Völkerbund-Resolution (Resolução para a Liga das Nações), acreditando que os reconhecimentos internacionais e a aplicação dos direitos humanos podiam conter a onda fascista e nazista. Sua dedicação à luta contra o Nazismo lhe rendeu uma detenção em março de 1938; sendo preso pelos nazistas no dia da Anschluss (Anexação) da Áustria pela Alemanha. Com ajuda do amigo James Joyce[4] (1882-1941) e de outros escritores, Broch foi autorizado a emigrar da Áustria.[5] Em julho de 1938, mudou-se para Londres, onde recebeu assistência do London Pen Club[6]. Da capital britânica ele se mudou para a Escócia e, finalmente, para os Estados Unidos, chegando à cidade de Nova York em outubro de 1938. Contudo, sua primeira residência foi em Princeton, New Jersey, e depois em New Haven, Connecticut. Suas dificuldades monetárias foram superadas com uma série de ajudas financeiras por meio de bolsas oferecidas por fundações tais como a Guggenheim e a Rockefeller, pois Broch, por não ter graus acadêmicos, não podia assumir atividades regulares nas universidades de Princeton ou Yale, e suas publicações não se transformaram em rentabilidade durante a guerra, ainda que fossem bem acolhidas nos círculos literários dos Estados Unidos.

Nos Estados Unidos, Broch foi ajudado por vários amigos, também exilados, entre eles Albert Einstein (1879-1955) e Hannah Arendt (1906-1975). A partir de 1940, Broch envolveu-se no trabalho com refugiados enquanto frequentou a Universidade de Yale. Nesse período, ele completou seu romance Der Tod des Vergil [A morte de Virgílio] (1945). Em dezembro de 1949, casou-se com Annemarie Meier-Graefe. No ano de 1950, publicou Die Schuldlosen [Os Inocentes], traçando narrativamente uma análise da ascensão do nazismo em relação à apatia política, sonolência acordada e desorientação psicológica da sociedade europeia. Seu último trabalho, o romance Die Verzauberung [O Encantamento] (1976), refere-se também à psicologia de massa. Broch trabalhou nesse livro desde os anos 1930, mas o deixou inacabado. Às vésperas de retornar à Europa, ele morreu de um ataque cardíaco, em 30 de maio de 1951.

Os Sonâmbulos: aportes sobre a engenharia do romance

Escrito entre os anos de 1929 e 1932[7], publicado na língua alemã em 1932; traduzido e revisado no mesmo ano para o inglês, por Edwin e Willa Muir, e mais tarde revisto por Hermann Broch de Rotermann, seu filho, Die Schlafwandler [Os Sonâmbulos] é uma trilogia em que os personagens principais, Pasenow, Esch e Huguenau representam o ser humano moderno levado aos limites existenciais em conflito interior provocado pelo pensamento racional e influenciado pelos valores idealistas da sociedade alemã. Hermann Broch se utiliza de dois aspectos fundamentais na estruturação literária: criatividade e conhecimento, para descrever a progressiva desintegração dos valores humanos na vida alemã, no período de 1888 a 1918. Neste sentido, Os Sonâmbulos é um fenômeno bastante original, que inaugura uma nova fase na história da literatura.

Broch é um experimentador das grandes sínteses e possibilidades formais na constituição de uma obra literária. Sua percepção de mundo estabelece seres solitários e em permanente confronto de valores para servirem de protagonistas do enredo. Ousado nas opções procedimentais de escrita, ele juntou a Estética e a Epistemologia, que se tornaram o suporte estrutural para alcançar uma espécie de romance total, cuja temática procurou esgotar por meio de todas as formas narrativas possíveis. De fato, Broch fez uso de aportes como a filosofia para dar consistência literária ao romance Os Sonâmbulos. Suas escolhas estéticas na formalização da obra também expressam sua inquietante busca da totalidade da obra na fragmentação do tempo. Havia em Broch uma necessidade de apresentar textualmente unidades narrativas relativamente independentes e aparentemente aleatórias. O ajuntamento estético do discurso filosófico por meio de ensaios e poemas que entrecortam a narrativa ficcional é comprovação de que, focado na busca do romance completo, Broch acaba por recorrer a todos as formas de se escrever um enredo. Neste sentido, são apropriadas as palavras de Kathlen Komar:

A fusão do gênero não-ficcional do ensaio filosófico e da narrativa ficcional no epílogo oblitera a possibilidade da filosofia reabilitar a representação da realidade bruta por algum processo lógico elevado. A filosofia pode manter sua forma lógica e seu modelo de discurso abstrato, mas a forma lógica tornou-se um molde para a realidade ilógica e problemática que procura entender. Apesar da tentativa de Broch de trazê-la de volta para o logos, em um discurso teológico com tom bíblico, a filosofia torna-se o microscópio do sistema individual radicalmente subjetivo e relativo ao invés de ser uma lupa que permite ao homem concentrar os raios díspares de uma fonte absoluta de iluminação e focar em um sistema de pensamento e valor. Assim, a separação do discurso filosófico da ficção e o privilégio da investigação racional da existência sobre a própria apresentação ficcional – que havia começado no Renascimento e ganhou força durante o Iluminismo – ganha forma quando o romance termina com a unificação dos dois à custa da capacidade de totalização da filosofia. (Komar, 2001, 118)[8]

Nestes termos, Broch apresenta uma estrutura textual que começa com a forma clássica de se escrever um romance e, na medida em que sua inquietude epistemológica é entronizada no processo de construção, os lapsos temporais e espaciais vão perdendo variação, até atingir o ápice de sua forma ao configurar uma narrativa romanesca completa de seu ponto de vista porque inclui digressões nos entrecortes da narrativa que pode mesmo ser chamada de um verdadeiro ensaio sobre o tema central da obra, a degradação, desintegração e dissolução dos sistemas particulares de valores humanos.

Em concorde com Komar, enfatizando a inclusão do ensaio filosófico no espaço da narrativa ficcional, consideramos que Broch realmente está preocupado com a unificação do discurso ficcional e filosófico em um único espaço. Neste mesmo sentido, Kundera (2006:15) pondera em sua obra A Cortina que “ao inventar seu romance, o romancista descobre um aspecto até então desconhecido, oculto, da “natureza humana”; uma invenção romanesca é, assim, um ato de conhecimento”. Não seria essa ideia que permeia a obra Os sonâmbulos? Certamente que em Broch o ‘falar’ que pensa e o ‘pensar’ que fala demandam espaços intermediários ou lugares-comuns nos quais sejam possíveis encontros propositivos e espontâneos entre o espírito e a linguagem.

A apresentação brochiana sobre o mundo exterior e interior é realizada por uma linguagem formal que permitiu a ele descrever sua história. É também uma apresentação com base na sensibilidade de um mundo sem referências fixas e com significações tão entrecruzadas que, sem um olhar estético, descrevê-lo ou narrá-lo tornar-se-ia algo complicado. É válido considerar que os romancistas dos séculos XVIII e XIX possivelmente descreviam acontecimentos dispersos e esteticamente ajuntados, desnudando e desvelando a absurda contingência oculta sob a aparência de realidade ordenada (Bauman, 1998). No mundo de Broch seria isso válido? Pensamos que sim, pois Broch adota a engenharia dos acontecimentos dispersos em três episódios, mas no terceiro episódio ele sente a necessidade estética e epistemológica de unir e adensar a absurda contingência do mundo. É o que propomos investigar daqui por diante.

Uma Trilogia para apresentar o Colapso dos Sistemas de Valores Humanos

Na trilogia romanesca de Hermann Broch, a pseudoausência de explicações literárias da realidade deveria ser superada. De fato, Broch (1996) julgava ser a literatura um caminho insuficiente para a compreensão da realidade, visto que ela não possuía força de coerção, manifestada pelo mythos, e de proposições lógicas, reveladas pelo logos. Logo, para fecundar uma nova maneira de se produzir literatura, Broch insiste numa composição feita de três histórias, inserindo nelas uma alternância desprendida entre mythos e logos. Com isto, acredita estar buscando fundamentos epistemológicos que viabilizem uma sensata percepção da totalidade do universo, sem unificar o procedimento estético, pois as internalidades da obra Os Sonâmbulos são infinitas. Hannah Arendt nos ajuda a interpretar Broch sobre a questão. Ela afirma:

A literatura não impõe nenhum édito obrigatório. Suas percepções não têm o caráter forçoso do mythos a que ela serve numa visão religiosa intacta do mundo – sendo esse serviço a justificação real da arte. (Para Broch, o grande protótipo e exemplo de tal serviço sempre foi o sistema hierarquicamente ordenado de vida e pensamento que predominou durante a Idade Média Católica.) E a arte, em especial a literatura, tampouco possui a força coercitiva, a incontrovertibilidade, das proposições lógicas; embora se manifeste na linguagem, ela carece de irrefutabilidade do logos. (Arendt, 2003, 105).

Arendt deixa claro que há limitações nas artes, principalmente na literatura, pois não possuem força coercitiva ou compromisso obrigatório com proposições lógicas. No caso de um texto narrativo sobre sistemas de valores, faltaria o grau da irrefutabilidade da narração. Então, o que fazer para incluir numa narração temas complexos sobre vida humana e garantir que a linguagem utilizada tenha grau lógico da coerção? A resposta de Arendt a uma possível produção literária nesses moldes, que é a proposta de Broch, não seria outra: “para ser de algum modo válida, a resposta teria de possuir a mesma força coercitiva que possuía o ‘mythos’, de um lado, e o ‘logos’ do outro” (Ibid,105). Isso justifica porque o narrador de Broch está sempre atento às contingências que permitem esclarecer acontecimentos em torno da existência objetiva de seus personagens no mundo ficcional, mas sempre tão bem vinculado ao momento histórico que causa um grande entrelaçamento entre ficção e realidade.

O narrador brochiano apresenta a realidade ficcional na forma de conteúdos que misturam de maneira indiscernível questões objetivas e subjetivas do mundo narrado, mas que também servem ao mundo real. No desenrolar da narração, o leitor é levado ao encontro com a realidade em que vive ao ponto de confundir realidade e ficção, juntando-se ao narrador para aflitivamente buscar uma saída ética. Nessa lógica, estamos em acordo com Komar, para quem,

... as discussões históricas mais perceptivas de Broch são encarnadas não apenas em seus ensaios discursivos, mas ainda mais poderosamente no enredo que ele tece com seus personagens de ficção e em uma narrativa simbólica que está literalmente inscrita nos corpos de seus personagens como vestígios do poder e da violência exercidos contra eles, por indivíduos ou exércitos ou pela própria sociedade. Esta história enredada em vez de teorizada ensina ao leitor uma lição muito diferente dos ensaios de Bertrand Müller. (Komar, 2001, 109)

A maneira como foi escrito Os Sonâmbulos rompe com a ideia de que para ser compreensivo um romance tem que ser racional, ainda que careça de irrefutabilidade do logos, como já mencionado. A trilogiase encontra no universo do irracional, conforme o autor sugere no próprio título: o sonambulismo. Esse propósito narrativo parece ter o objetivo de fazer crítica sobre o desamparo metafísico do período contemporâneo, visto que o sujeito transcendental kantiano parece ter desaparecido, ou ao menos seu conceito parece insuficiente para explicar certas condições existenciais notadas por Broch.

Ainda que insira as condições históricas nas quais o leitor consiga se situar, precisamente o período em que estava no poder o Kaiser Wilhelm II (1888 a 1918), Broch se desprende de registro histórico dos grandes feitos e feitores como condição para a compreensão histórica humana. Sua noção de história é diferente e está subscrita “no desenvolvimento do homem comum sobre o qual ele incorpora o inescapável estilo de uma época, bem como seus problemas inelutáveis” (Ibid,, 109). Broch desenvolve um enredo despreocupado com uma metanarrativa coerente, porque feita de pequenas narrativas aparentemente desconexas e descontínuas, cabendo ao leitor a tarefa de produzir o efeito do alinhamento histórico, embora o texto tenha sido produzido para justamente provocar o efeito da não linearidade.

A obra brochiana é um mergulho apresentativo e representativo na finitude de vários personagens e provoca no leitor uma atitude estética da condição humana enquanto drama a ser compartilhado. Neste caso, o autor também faz sua opção estética para lançar características particulares a cada um dos protagonistas de seus episódios para ao final mostrar de diversos ângulos que os personagens vivem em um mundo que já morreu e ao mesmo tempo presenciam um mundo por nascer. Por isso, os personagens brochianos são sonâmbulos e se encontram no entremeio desse processo de dissolução total dos valores e de novos valores que ainda estão por surgir.

Pasenow: Incapacidade Humana de Romper com os Avatares

O personagem protagonista do primeiro episódio [Pasenow oder die Romantik], nomeado por Broch de Pasenow, que também participa do terceiro episódio, possui de maneira latente a aparência ou a representação como o fundamento de suas decisões. A aparência que ele deseja manter é a que todos desejam ver nele, uma aparência social que não deixa fluidos internos emergirem na forma de uma explosão incontrolável. Ainda que a razão e o coração pareçam indicar que ele deva viver de maneira desprendida, Pasenow é caracterizado como indivíduo incapaz de tomar decisões que provocassem rupturas com sua condição social e seu passado. Ele é tão solidamente movido pela aparência que se vê incapaz de voltar a ser civil e cuidar das propriedades da família quando da morte de seu irmão Helmuth em um duelo (Broch, 1996, 41), pois para ele ser um oficial militar significaria ter dignidade, respeito e, certamente, autoridade, que, a seu ver, não eram vivenciadas pela sociedade civil, fadada a viver na desordem e indisciplina, valores questionáveis e degradantes (Kundera, 1994).

Por esta razão, Pasenow é caracterizado pelo narrador como objeto envolto a um rótulo dado pela hierarquia que garante a ele poder. Ele é um típico sujeito preso a avatares morais da modernidade, pregados como imperativos categóricos. Ao assumir essa condição própria, ele se apresenta apenas como um “algo”, um rótulo. Falta-lhe a substância que lhe daria identidade própria, pela essência. Incapaz de existir por conta própria, seus julgamentos e decisões sobre o que fazer em relação a sua família e a seu amigo Bertrand, não deveriam seguir as regras da aparência. Seu contrassenso, Bertrand (Broch, 1996, 52, 53, 100), voz da sua consciência em ruptura, é a expressão da sua essência e libertação dos avatares, ainda que ao custo do preconceito social, ainda que isso manifeste as dicotomias de sua existência. Bertrand seria um sujeito representativo do pensamento brochiano de que é preciso ‘sermos o que somos’, como ruptura ao ‘sermos o que devemos ser’, carregado de imperativos categóricos ao modo kantiano.

Pasenow apresentado como emblema do “romantismo”, é uma crítica risível de Broch ao realismo da Berlim de 1888. Joachim von Pasenow, militar que vive uma crise existencial complexa: o amor impossível pela meretriz Ruzena, e o casamento com Elisabeth, uma comportada moça da elite austríaca (Ibd., 29, 117, 118. Pasenow é um romântico porque se prende, desesperadamente, a valores que outros já consideram ultrapassados ou “fora de moda”. Esse sono patológico, ou sonambulismo,dá à sua personalidade uma forma pitoresca e passiva de lidar com situações desencaixadas de sua estreita maneira de ver o mundo. A aventura existencial de Pasenow faz com que ele encontre sentido somente quando recorre a uma inteligência superior, no seu entender, única entidade que parece dar harmonia e significado universal às contradições da vida porque responde transcendentalmente a conflitos particulares.

Entretanto, a resposta de Pasenow a suas incertezas não ocorre pela via da ética, mas a partir da aparência social, pois ele tem apego a valores morais os quais servem de critérios norteadores de suas atitudes e decisões, principalmente para rejeitar mudar a vida para viver o amor apaixonado por Ruzena, e se casar com Elisabeth, e manter os vínculos de sua tradição intactos, e assim acalmar sua alma, possibilitando-a viver em um mundo de valores em decadência. Pasenow faz uso de critérios surgidos de sua faculdade de julgamento estético objetivo, e assim experimentar uma grande satisfação, nascida em algo seguro para ele em todas as suas atitudes e decisões.

Esch: Desregrada Busca por Ordem e Justiça, entre Nostalgias e Idiossincrasias

O personagem do segundo episódio [Esch oder die Anarchie], de nome Esch, é visto por vários comentadores como Arendt (2003), Komar (2002) e Ryan (2002) como a franca irrupção do cinismo, algo como uma substância perdida e idiossincrática. Mas, o que Broch parece nos apresentar com esse personagem é algo mais complexo do que um simples enredo ficcional. É possível pensar que Broch, ao situar o episódio no ano de 1903, tenha se reportado ao período de efervescência emigratória na Europa do final do século XIX e ao processo colonialista alemão? Certamente que sim. Broch produz na forma de ficção, no entendimento de Ryan (2002, 126), “um diagnóstico preciso de fatos históricos, sociais e econômicos que deram origem ao entendimento do Império Alemão sobre a questão colonial ao mesmo tempo em que olhava para o surgimento do nacionalismo alemão e do nacional-socialismo”. Os fatos narrados em Esch deixam essas questões tão evidentes que parece estarmos lendo um livro de história da Alemanha no período da saída de Bismarck do poder para que o Kaiser Wilhelm II pudesse assumir e realizar as agressivas ambições coloniais da Alemanha.

Esch, protagonista no segundo episódio, ressurgido no terceiro, é apresentado como exacerbação do descaramento. Não há mais apego a qualquer fundamento moral ou ético. Diferentemente de Pasenow, Esch não está preso a situações passadas, às tradições sociais ou culturais, e sua visão nostálgica de justiça no mundo é bastante confusa. Livre de amarras do passado, mas incapaz de estabelecer equilíbrio que lhe garanta vida social ordeira, ele é um sonâmbulo, vagueando entre valores da noite e do dia, sem que enxergue o caminho a seguir e, por conta disso, segue qualquer um. Sua filosofia da contabilidade é a forma de salvar o mundo. Para ele, tudo deve estar no seu lugar pela via da justiça, mas como não consegue distinguir qualquer substancialidade em sua vida ou no mundo, e transforma tudo o que lhe é acessível em substâncias emblemáticas e sem significado algum, especialmente as pessoas. Hentjen, Erna, Ilona, Esch, Martin, Harry, Bertrand são substâncias válidas para garantir à sua vida contábil o equilíbrio das contas e os espaços que são símbolos do imperialismo.

De fato, os personagens, os locais e as situações enredadas no segundo episódio giram em torno da questão econômica. Cenas no bar de Hentjen, jogos de luta de mulheres, acontecimentos com companhias de navegação, tudo é visto como emblemas do imperialismo no mundo fantasioso e privado de Esch. Há cenas que se mesclam em um debate sobre democracia e liberdade, como a assembleia sindical em que Geyring é preso, e manifestação de desprezo de Esch a Eduard von Bertrand, seu desafeto por tê-lo demitido, e para ele o mentor da prisão do amigo líder sindical e anarquista. Há cenas em que Esch se esforça em corromper Hentjen, atraído por sua retidão moral; seu destemperado jeito de resgatar Ilona das mãos de Balthasar Korn, após um caso furtivo com Erna, irmã de Korn, que também é alvo de Esch, desejoso de arruinar sua relação com Lohberg (Broch, 1996).

Essas nuances sobre o protagonista nos fazem propor que o importante para ele é pensar a não-contradição e fatos desenvolvidos nas cenas são arduamente contraditórios para Esch. Por isso, seu esforço em superar o antitético pelo sintético. Isso pode sugerir ao leitor que as pessoas não podem viver cada qual à sua maneira; ao contrário, atitudes humanas devem convergir para um único plano de justiça, i.e., a lição a ser tirada das atitudes de Esch é que os passos em falso devem ser repugnados, odiados e considerados anti-contábeis, pois inversamente aos valores contábeis, os passos em falso provocam injustiça e forjam situações que não permitem, na perspectiva de Esch, a justiça ser vivenciada. Sobre isso Ray tece um comentário o qual concordamos:

O "erro de contabilidade" que para Esch parece ter causado uma ruptura ao redor de seu mundo se manifesta na incapacidade de Esch para distinguir claramente entre política esquerda e direita ou entre as esferas privada e pública. Conceitos nobres como a honra, justiça, respeito e responsabilidade desaparecem na mente com pensamentos furiosos de assassinato, ideias estranhas sobre rituais de sacrifício e preconceitos sobre homossexuais. A força bruta é para Esch um meio de controlar as ansiedades profundas sobre as diferenças culturais. Sua relação imaginária com Bertrand encapsula esse complexo paradoxal. (Ray, 2002, 126-127)

A angústia de Esch de ver os erros contábeis desajustados torna-se obsessão e nostalgia por equilíbrio, o que o faz uma representação nata da anarquia. Levado ao mundo dos desempregados por força das circunstâncias, Esch consegue um emprego de tesoureiro por intermédio de seu amigo Geyring. Sua vida desde então é transformar a todos em negócio e explicita o dito popular negócio é negócio. Por isso, tudo deve convergir para uma síntese. Desta maneira, ele busca soluções nem sempre plausíveis para servir de plano contábil e poder zerar a conta ao final do processo. Assim, Arendt comenta em seu texto Homens em tempos sombrios:

Fiquemos com os próprios exemplos de Broch. Segundo ele, o “valor” inerente à vocação do homem de negócio, o valor com que se mede tudo é que seria também o único propósito da atividade comercial, é a honestidade. A riqueza que pode surgir da atividade comercial deve ser um subproduto, um efeito nunca pretendido enquanto tal, assim como a beleza é um subproduto para o artista, que deveria pretender apenas a “boa”, e não a “bela” obra. (Arendt, 2003, 109).

As pessoas, na perspectiva de Esch, vivem de irregularidades e estão desprovidas de consciência, em organizações particulares, utilitárias e racionais e, em consequência, subtraem seus deveres terrenos. Isso parece não valer para Esch, pois não reconhece em seus atos as contradições que tanto critica nas pessoas. Sua idiossincrasia é tão normal quanto suas peculiaridades, vistas como desprovidas de valores nos atos das pessoas. Por isso, sua revolta ao ver Martin Geyring injustamente preso e seu desprezo por Bertrand, o suposto responsável pela prisão. Ele também tem uma relação confusa com as mulheres: tenta corromper Hentjen, apenas pela atração que sente por sua retidão moral; tenta trazer Ilona para um mundo mais regrado – resgatá-la — depois que ela começa a ter um caso com Balthasar Korn, e rechaça Erna depois de ter um caso furtivo com ela, mas ao mesmo tempo, sente um desejo profundo de arruinar a relação dela com o judeu Lohberg depois que os dois se aproximaram.

Depreendemos das análises epistemológicas sobre o episódio que Esch parece pregar substituir a vida transitória, cheia de aventuras, riscos e metamorfoses, por uma nova estrutura de vida fundada na previsibilidade racional. O grande incômodo de Esch talvez seja justamente a obrigação de ser governado por regras de um sistema de valores racionais falidos. Seu caráter anárquico sonha romper a ordem vigente com uma nova ordem, talvez cínica por conduzir suas relações pelo princípio da contabilidade em que os balaços devam ao final chegar a uma síntese não contraditória.

Para Esch, o comportamento humano não deve ser julgado a partir de princípios morais ou imorais, mas somente pela via amoral, pois os indivíduos não são seres, apenas cifras, reduzidas a um “nada” pela força do sistema mecânico. Neste sentido, não parece haver intermediação entre o “eu” e o mundo natural e social e, por conseguinte, não há superação do movimento contábil do mundo, apenas explosão de vários egos sem substância vivendo de forma desordenada e anárquica, o que torna impossível viver no presente a realidade de corpos comunitários, pois vazios de substância, os egos não são difratários, são somente “cifras” de uma contabilidade racional e sem contexto.

Huguenau: Desfaçatez e Cinismo como Garantia de Felicidade

O personagem do terceiro episódio [Huguenau oder die Sachlichkeit], que recebeu o nome de Huguenau é uma espécie de imagem resplandecente do “vazio”. Em suas atitudes não há mais substância. O mundo não tem, para ele, valor algum. Por isso, pode-se fazer de tudo para garantir a própria felicidade. No final da Primeira Grande Guerra, Pasenow, comandante militar, e Esch, publicitário de um jornal local, encontram-se num vilarejo às margens do Rio Mosel (Broch, 1997, 368-390). A incapacidade dos protagonistas dos dois primeiros episódios em lidar com a realidade, desenfreada e degradada, leva-os a buscar consolo em uma seita religiosa. Até então tudo parecia tranquilo, até que a harmonia precária é interrompida com a chegada de Huguenau, que rompe com seu passado por meio de deserção militar.

Visto pelo autor como pessoa dotada de objetividade, ele trapaceia Esch na compra do jornal local, manipula Pasenow e despreza sua autoridade. Quando a revolução de novembro de 1918 termina, Pasenow e Esch se entregam às forças do objetivismo. Huguenau é, então, apresentado pelo narrador como homem livre, que usa as pessoas, as degrada e até as mata com naturalidade. O narrador deixa claro que não tem admiração alguma por Huguenau, e apenas pretende expressar o ponto a que se chegou a degradação humana, e a que resultados se pode chegar com tais atos e atitudes, sob a tutela do livre-arbítrio. Huguenau, pois merece o título de sonâmbulo.

Preso às conveniências das coisas, Huguenau não consegue distanciamento delas, estando ele e as coisas num mesmo nível de degradação. Para ele, as únicas atitudes a serem vividas e decisões a serem tomadas devem assumir a condição de um jogo do cada um por si. Segundo Dowden (1986, 53), isso é também revelador de que Huguenau não terá uma epifania porque sua mente pragmática está fechada à possibilidade de iluminação, pois experiências que não envolvem cálculo ou ganho material estão categoricamente fora de seu alcance.

Para levar adiante a narração do terceiro episódio e evidenciar o caráter do protagonista, Broch rompe com o modelo de escrita dos episódios anteriores e desenvolve uma estrutura polifônica própria. Tal como ocorre na música polifônica com suas variações, Huguenau ou a Objetividade possui vozes variadas que não se reduzem a uma linha única de desenvolvimento. Há, assim, uma ampliação do tempo, alcançando momentos históricos em que a narrativa principal não conseguiria atingir se fosse escrita de outra forma. Há também a ampliação do espaço, com ilustração de ambientes sociais e culturais diversos nos quais os personagens circulam sem que a obra perca sua estética. Assim, os três personagens de Broch, juntos no terceiro episódio, estão envolvidos nos eventos narrados, entrelaçados no destino individual de cada um.

Quanto à guinada na estruturação da obra, há várias análises de comentadores, sobre qual intento Broch pretendia no terceiro episódio. Kundera (1984, 01), afirma que Broch utilizou um método que não o ajuda a alcançar as pretensões de transformar seu romance em uma síntese poli-histórica[9] com caracteres polifônicos, e Benson (2006, 79) concorda afirmando que “o que é objetivado e perdido em Os Sonâmbulos de Broch é a fusão de linhas de contraponto: os vários elementos (verso, narrativa, aforismo, reportagem, ensaio), permanecem mais justapostos que misturados em uma unidade polifônica”; contudo, há controvérsias a essas ponderações, pois um romance polifônico oferece vozes independentes e autônomas dentro dos mais diversificados eventos.

Neste sentido, para que a arquitetura funcione, Broch abandona no terceiro episódio seu estilo tradicional de narração, monovocalizado, tal como o estilo monódico do Canto Gregoriano[10]. Nessa lógica, o narrador perde a força da onisciência e sem o controle das ações dos personagens, contenta-se em encaminhar a narração. Em paralelo, outro narrador, Bertrand, antagonista nos episódios anteriores, apresenta digressões, poemas e ensaios para não sufocar causalmente os acontecimentos dos personagens e assim decretar o fim da obra. É surpreendente que a arquitetura de Broch para essas inserções independe dos personagens, e elas se tornam vozes sujeitas com seus próprios discursos. Broch buscou no início do século XX um formato polifônico, por dar a cada personagem e aos narradores do terceiro episódio consciência, pontos de vista, posições ideológicas, voz, autonomia, percepções próprias do mundo e diversas formas de conhecimento que se confrontam para garantir a concentração no tema central, a degradação de valores. Isto tudo para compreender porque esta época está em dissolução, ou se ainda terá ela uma realidade.

Outras vozes, outras consciências, a mesma episteme: dissolução de valores

Além dos três personagens protagonistas do último episódio, Broch insere outros como exemplos da temática da solidão humana na lida com as mudanças dos tempos. O esteta Eduard von Bertrand, estranha figura em que os outros projetam seus medos e esperanças; o soldado Gödicke, que tenta remontar sua personalidade num Hospital Militar; o arquiteto Jaretzki, que perdeu seu braço na guerra e, com isso, seu senso de integralidade; Hanna Wendling, uma esposa alienada; Marguerite, a menina órfã que vive sem morada; Marie, membro do exército de salvação apaixonada pelo judeu Nuchen Sussen, mas que vê essa paixão morrer por causa das irreconciliáveis diferenças religiosas de ambos. Ainda assim, a riqueza de narrativas não pareceu suficiente para o narrador brochiano esgotar seu pensamento sobre a teoria dos valores. Foi preciso gerar outro narrador, que não tivesse a função de mero contador de acontecimentos. Broch transforma o antagonista dos episódios anteriores, Bertrand, em narrador filósofo cuja função era expor reflexões sobre valores. Ele garante a Bertrand, como ensaísta, o direito de participar dos três momentos da obra, sendo que no terceiro ele assume a função de crítico da sociedade. Neste sentido, Komar afirma:

O próprio (neste caso Bertrand Müller) filósofo, aquele que deve chegar à totalidade de um sistema filosófico, é ao mesmo tempo autor implícito e personagem dentro do texto ficcional e, como tal, se encontra na mesma parcialidade e fragmentação que seus ensaios dissertam e buscam transcender. O filósofo não é, pois, um observador independente e privilegiado, mas um participante na desintegração que ele lamenta. (Komar, 2001, 118)

O que torna essa parte da obra ainda mais complexa é que Bertrand é o ensaísta que comenta de maneira contundente a questão da degradação, sendo ele próprio um dos responsáveis por esse processo. No ensaio da degradação humana, ele demonstra que racionalismo e irracionalismo são fragmentos que desordenam e provocam devastações na psique humana, quando se destrói a unidade ética do sujeito. Komar também comenta que Bertrand, mesmo sendo alvo das próprias críticas, no terceiro episódio, na condição de observador, recebe uma nova missão, que funciona como uma tentativa de Broch superar a terminalidade vazia de seu romance com a esperança ética:

Considerando que Bertrand Mulier comenta em seus ensaios sobre os vários personagens da trama sobre Huguenau (incluindo o próprio Huguenau), era de se esperar que ele tivesse a necessária distância objetiva para a análise filosófica e crítica. Ele é, no entanto, também um dos personagens angustiados, subjetivos e isolados dentro da narrativa que ele próprio compõe. Posando como o observador filosófico, ele não deixa de ser cúmplice na desintegração descrita nas seções não-ficcionais do livro. O ensaísta e suas opiniões são assim relativizados, mas na visão de Broch, isso libera o ensaísta para que ele escape de seu próprio discurso lógico filosófico para usar sua intuição irracional a fim de fornecer uma enunciação final da esperança, apesar de toda a lógica. (Ibd., 118-119)

Com Bertrand na condição de narrador, Broch parece definir que seus narradores têm a função ser costureiros de fatos, informações e reflexões, fazedores de tecidos, com personagens em histórias diferentes em um mesmo ambiente. Assim, talvez Broch queira afirmar a não neutralidade, a existência de questões e ideias relevantes, bem como de pontos de vista diferentes, contribuindo para um debate mais especulativo sobre o sujeito contemporâneo.

Bertrand, narrador filósofo e suas digressões sobre dissolução de sistemas de valores

Finalmente, como congraçamento de toda a narrativa do episódio, é inserido um epílogo, com argumentos fundamentais sobre a teoria dos valores. Sua temática é a irracionalidade da ação humana para sustentar falidos sistemas particulares de valores produzidos pela modernidade. O texto ensaístico faz severa crítica aos sistemas particulares de valores, afirmando que eles procedem de tendências irracionais e da tarefa de refundir a percepção irracional do mundo e seu valor ético para poder lhe dar uma forma racional absoluta. Para todo sistema de valores há uma fase em que a compenetração do racional e do irracional atinge o seu grau máximo, havendo um estado de saturação e de equilíbrio em que a perversidade das duas partes adversas se torna ineficaz, invisível, inofensiva: são épocas de zênite e de estilo perfeito.

Os dez ensaios inseridos na terceira parte e colocados na voz de Bertrand, traçam o processo histórico que trouxe o sujeito ao atual estado de degradação, a partir dos quais a vida pode ser resgatada pelo Logos. Essa degradação é resultante da organização irracional dos sistemas particulares de valores. Vejamos trechos do narrador filósofo especulando sobre a questão:

Todo sistema de valores nasce de impulsos irracionais e transformar esses contatos irracionais e eticamente inválidos com o mundo em algo absolutamente racional torna-se o objetivo de todo sistema suprapessoal de valores e uma tarefa essencial e radical de "formação".
/.../ A lógica dos fatos conduz o racional para o super-racional, e impulsiona o super-racional até os seus limites, ele inicia o processo de desintegração, a divisão de todo o sistema de valores em sistemas parciais, um processo que termina na dissociação completa, tornando de um lado a razão livre e autônoma, e a vida livre e autônoma do outro.
/.../ A unidade indivisível final na desintegração de valores é o indivíduo humano. E a menos que o indivíduo participe de algum sistema autoritário, e quanto mais ele é deixado à sua própria autonomia empírica – a esse respeito, também, o herdeiro do Renascimento e do individualismo –, mais estreita e mais modesta sua teologia se torna, e mais ele se torna incapaz de compreender os valores para além do seu ambiente imediato e mais pessoal. (Broch, 1996, 676-701).

Esses trechos explicitam a inquietação de Broch sobre o tema da obra. Em Dichten und Erkennen [Poesía e Investigación], ele descreve um entendimento de sistema de valores:

Um sistema de valores é uma estrutura constituida por uma infinidade de atividades –realizadas por diferentes membros de tal sistema de valores– todas as quais orientadas para o mesmo, infinitamente distante, objetivo, do que, por sua vez, recebem sua valorização ética ou antiética. Se, nesse sentido, as atividades são éticas, seus resultados são estéticos e como tais são assimilados pelo sistema de valores: a totalidade destes resultados, por exemplo, a guerra como um conjunto de todas as batalhas, e cada uma delas é a realização ou a concretização estética do sistema parcial no mundo exterior, uma concretização superada no instante mesmo de sua gênese e, de modo que em sentido estrito, no desenrolar da história tem deixado de pertencer ao sistema. Isso ocorre porque cada sistema é um processo contínuo e vivo que consiste no agora e no futuro. (Broch, 1974, 267-268).

Notamos que os sistemas de valores, na perspectiva de Broch, se mantêm sistemas por conta de sua estruturação ética ou antiética e concretizada numa forma estética, que é a externalização de valores positivos ou opositivos. Contudo, a organização dos sistemas não poucas vezes procede de tendências irracionais, sem valor ético. Os sistemas então são redefinidos por meio de uma forma racional absoluta. Uma vez feita essa ‘formação’ radical, ela torna-se o escopo ético de todo o sistema suprapessoal de valores. Para Broch, essa organização dos sistemas de valores é um pesadelo de avalanche desumanamente alucinante. Ele nos mostra como é ilusório, quiçá inexistente, o sentido das categorias ‘existentes’ e submetidas à condição de paradoxo terminal, estando em estágio final à espera do novo estágio. Arendt é incisiva sobre essa intencionalidade lírica e filosófica de Broch ao final do romance:

O romance em seu final transforma-se em lirismo de um lado e filosofia do outro. Isso é um exemplo do que acontece geralmente com um romance de forma de arte. Nem as paixões que tomaram emprestado do romance tradicional seu suspense, nem o universal e o espiritual que iluminam isso podem ser preservados na narrativa. A transparência do mundo pelo universal e a afeição apaixonada do individual desapareceram através da desintegração dos valores, que consiste no colapso de uma visão integral e dos caminhos de vida, e a consequente e radical atomização de suas esferas que reclamam para si que seus direitos relativos são na verdade absolutos. (Arendt, 1949, 480-481).

Arendt refere-se à atomização do sistema universal de valores que, uma vez fragmentado e aglutinado em sistemas particulares, são obrigados a reivindicar direitos absolutos para daí abarcar outros sistemas particulares, sem critério algum, exceto no que Broch afirma ser a refundição da percepção irracional do mundo (Broch, 1996, 677). Contudo, é elementar que a tarefa de transformar sistemas de valores atomizados em universais, exige um método racional. A pergunta insistente do narrador filósofo é: como isso pode ser feito em relação ao irracional? Pois um método racional circunda o irracional na tentativa de abarcá-lo, mas nunca o atinge. Logo, como é possível manter sob o controle sistêmico os valores que pertencem ao mundo da irracionalidade do sentimento interno, da inconsciência da vida e da experiência viva? Neste caso, o racional se obriga a saltar para uma ultrarracionalidade, condenável e perversa por não tolerar a ordenação em sua forma, muito menos a da irracionalidade, rompendo assim com sua própria lógica e consequente desintegração.

Assim, em termos concretos, que significado, por exemplo, pode ter o crime cometido por Huguenau ao assassinar Esch com uma punhalada nas costas, sem lamento ou remorso? Huguenau desconsidera que a vítima o acolheu em sua própria casa, toma-lhe o jornal, desqualifica-o diante de seus amigos e o assassina deslealmente quando este saíra pela rua durante uma insurreição à procura do amigo Pasenow, em seguida estupra sua esposa no momento em que ela frágil e desesperada pedia que ele socorresse seu marido. Não seria a história de Huguenau já a perda total dos valores? Aliás, Huguenau obedece apenas ao seu próprio sistema de valores, que por força das circunstâncias pode ser alterado sem que se necessite qualquer justificativa para a sociedade. Por isso, o degradante sistema particular de valores é apresentado no texto como perverso, pois promove a dissolução do sistema universal de valores em estruturas parciais, em cujas extremidades do processo situam-se a autonomia de uma vida irracional desenfreada e o não compromisso ético.

O indivíduo que vive na lógica irracional fica emancipado da racionalidade, e livre para apreender somente valores de dentro de seu espaço e que o dota de autonomia de vida irracional desenfreada. As consequências éticas são desastrosas, principalmente quando a ética é incluída nos objetivos estéticos. Por isso, o narrador enfatiza:

/.../ Seja como for, se a atitude individual para o curso da revolução, se ele se torna um reacionário e se apega a quaisquer formas, confundindo a estética com a ética como fazem os conservadores, ou se ele se mantém distante da passividade do conhecimento egoísta, ou se ele se entrega aos seus impulsos irracionais e se entrega ao trabalho destrutivo da revolução: ele continua sendo antiético em seu destino, expulso de sua época, expulso do tempo. (Broch, 1996, 699).

O que o narrador brochiano explicita sobre ética e estética é que a deformação (efeito) é uma apresentação perversa de valores. E a perversidade está no fato de se assumir cognitivamente que a própria deformação é uma forma ética. Essa deformação resultante da relação entre ética e estética apresentada pelo narrador é similar ao que o escritor Broch expõe em Dichten und Erkennen:

Agora, seguindo um raciocínio indutivo, podemos estabelecer uma tese geral, com base em nossos exemplos: sempre que o objetivo estético está incluído na atividade ética, ou em outras palavras, sempre que o efeito passa a fazer parte da atividade ética e é puxado por esta, a tendência é transformar-se numa atividade dogmática pervertida. O resultado estético desta atividade será, no sentido mais amplo da palavra, deformado. E, por mais que as categorias éticas e estéticas caminhem juntas e somente juntas constituem o conceito de valor, confundi-las provocaria um esteticismo, em qualquer sistema de valores, representaria o pecaminoso. Pecado no sistema de valores da arte e, conseqüentemente, também do romance e sua visão de mundo é kitsch. (Broch, 1974, 272)

A interrupção da narrativa lírica e a inserção de argumentos discursivos sobre valores humanos provoca um impasse, pois a pura contação de história, seja para entreter seja para instruir, fora lançada para um segundo plano, e a força dos argumentos desenvolvidos para buscar alguma saída plausível ao impasse se depara com o paradoxo terminal. É preciso então procurar frestas para a emersão de uma nova possibilidade da vida e de valores, ao menos, na internalidade da obra. Mas, como isso é possível? Os Sonâmbulos parece dar um peso decisivo nos elementos que rejeitam ações humanas que sustentam uma visão ética promotora de valores em concordância com um mundo mutante, contra visões românticas, anárquicas e realistas, apresentadas, lírica e narrativamente, como de alto teor de degradação e corrosão. Broch apresenta situações que servem para uma discussão apropriada sobre a dissolução dos valores humanos sistematizados na particularidade de grupos e na lógica individual. A saída do imbróglio provocado pela construção da obra fica suspensa e somente ganha um alento ao final, numa dimensão onírica enraizada no sujeito.

O que colhemos de Os Sonâmbulos ou Por uma epistemologia da Sensibilidade

Após nossas análises epistemológicas e da estética da obra romanesca (Barroso, 2003), se pudéssemos perguntar a Broch como viver uma existência eticamente significativa no meio de um processo de dissolução de valores de época, talvez ele respondesse sem pestanejar: – Leia novamente Os Sonâmbulos. Essa obra é uma preciosidade epistemológica e estética e faz o leitor viajar pelo interior das contradições da vida humana, sem perder de vista que sua crítica é denúncia com recheio de esperança. O uso de subterfúgios ambientais permite-nos entrar na essência dos problemas humanos sem evasões, fugas ou cortes em todo o processo narrativo. Então, o que é real passa a ser condicionado pela narração ficcional em vários movimentos estéticos, na forma sonâmbula. Por isso, o texto provoca no leitor a sensação de estar no mundo, mas sob o efeito sonâmbulo. Afinal é esse sentimento que os narradores expressam em todo o texto e seduz o leitor a sentir, o real e a representação se confundindo; a imaginação, os desejos e as pulsões assumindo poder e gerando consequências reais.

A narrativa da vida de três personagens Pasenow, Esch e Huguenau, tem fundamento na relação estreita entre conduta moral individual e risco às possibilidades do acaso, livre de condições éticas; uma conduta sonâmbula entre o desaparecimento e o surgimento de sistemas éticos de valores, que segue a ordem da degradação, desintegração até sua dissolução e o surgimento de novos sistemas. Nesse processo, os personagens têm de encontrar o comportamento adequado ao desaparecimento progressivo de valores na esperança de ver surgir novos valores (Arendt: 2003).

  O narrador filósofo arquitetado por Broch transporta o leitor para um universo no qual são evidenciados diversos tipos de degradação de valores. O narrador então propõe que a ruptura da Idade Moderna com a Idade Média levou as pessoas à perda de seus valores, pois junto à ruptura houve severa fragmentação do grande sistema cristão de valores. Houve a perda de vários valores humanos na medida em que sistemas universais foram sendo reduzidos a sistemas particulares de valores, atomizados e autonomizados, sendo necessário recuperá-los, não para resgatar o poder eclesiástico do áureo período medieval, senão para recuperar o senso comunitário. Contudo, não há como fazê-lo senão restabelecendo a sensibilidade do sujeito atual perdida pela imposição da racionalidade objetiva. É essa sensibilidade vivida, esteticamente forjada, que permite ao ser humano compreender a subjetividade da vida e responder às contradições sob o efeito de uma unidade ética, e assim poder reconstruir, ou ainda construir, valores que garantam a digna existência, sem exigir que isto seja o alcance do homem total de Hegel (2009).

O narrador brochiano no terceiro episódio se aproxima bastante de Nietzsche, para quem, em sua Genealogia da Moral (2009), é preciso ver na existência humana e seus valores – a partir dos idealistas como ideais, dos anarquistas como anárquicos e dos realistas como reais – coisas que também sejam humanas, demasiado humanas. É preciso fazer com que o sujeito humano assuma sua própria vida de ser como contraponto à vida que deve ser, visto que esta está em processo de condenação pela força da degradação de seus valores, enquanto que aquela reconstitui uma saída original e desprendida, por não categorizar as dimensões humanas e hierarquizá-las em níveis de comportamento bom ou mau. Isto é mais consistentemente dito por Nietzsche (Ibd., 2009) como transmutação dos valores.

Em Os Sonâmbulos, o escritor faz uso da irracionalidade para provocar o desabamento epistemológico racional que norteia a vida germânica desde o século XIX, quanto aos sistemas de valores. Os alemães pareciam aceitar que os valores morais eram atomizados em imperativos categóricos da tradição. Com base nessa postura kantiana, Broch (1996) postula que todo sistema de valores surge de impulsos irracionais, e que o principal objetivo do pensamento ético é transformar esses impulsos irracionais em algo absolutamente racional. Contudo, a condição de equilíbrio entre irracional e racional nunca é permanente, provocando a desintegração de um sistema universal de valores em sistemas particulares que buscam engolir uns aos outros, pelo espectro de uma Razão autônoma. Isto gera uma sociedade sem valores éticos, desintegrada e vazia; gera também crise do sujeito e uma consciência fragmentada.

A subjetividade humana, porém, encontra-se em nível mais além da razão, que é apenas uma condição do sujeito. No grande espaço do sujeito, a razão parece perder-se em suas orientações. É a partir disso, pensamos nós, que se pode começar a pensar uma estética da sensibilidade sobre degradação de valores humanos, e uma possível estética sustentadora da transmutação dos valores que venha a superar os sistemas particulares vigentes. Sob essas condições, Broch intenta superar a crise de valores imbricada na sociedade de sua época e aponta as condições da arte e do conhecimento como propostas de superação da dissolução iminente dos valores humanos, visto que ele próprio vive sob a condição da mudança, enfrentando acontecimentos que aterrorizam e ao mesmo tempo fascinam, que esclarecem e ao mesmo tempo dissimulam.

A obra Os Sonâmbulos ajuda o leitor na identificação de valores em degradante ebulição enquanto se está à espreita de novos valores. Isso demanda que Broch produza um imperativo ficcional (na verdade, um questionamento): Até quando permaneceremos sonâmbulos? Até quando a letargia que tomou conta de nós, pelo viés da razão instrumental, se fará presente em nossa consciência? O imperativo ficcional, que traduzimos na forma de questionamentos, é uma denúncia do estado paranoico e enclausurado em que nos encontramos. Talvez a proposta de Maffesoli que fala da vida que não se deixa enclausurar seja uma resposta alternativa à paranoia. Afirma ele: “de minha parte propus pôr em ação um pensamento de acompanhamento, uma ‘metanóia’ (que pensa ao lado), por oposição à ‘paranoia’ (que pensa de modo impositivo) própria da modernidade. Algo como uma sociologia da carícia, sem mais nada a ver com o arranhão conceitual” (Maffesoli, 1997, 19).

Neste sentido, é plausível afirmar que o Romantismo, a Anarquia e o Realismo se perderam na capacidade de lidar com a força do seu contrário, seja para compreendê-lo ou para integrá-lo, pois não permitiram o acesso do que é sensível, orgânico, dinâmico, imprevisível e incerto, impossibilitando padronizar a efervescência da vida. Nesta perspectiva, há ainda muito a ser investigado na internalidade de Os Sonâmbulos. O texto de Broch confirma que é possível aceitar o contraditório, o clandestino, a loucura, o insano, compreendendo que tais características integram e permitem uma percepção mais sensata da condição humana. Assim, o sujeito ganha um novo conceito, mais adequado às condições que encontramos numa época em mudança. A viagem reflexiva, pela via literária, permite ao sujeito assumir a insensatez, o riso e a alegria, o deboche prazeroso como fundamentos da vida. Essa viagem torna o sujeito alguém dotado de condição humana e de imperfeições e isto o faz um ser em permanente redefinição porque inconcluso e inacabado. É também na aceitação dessa condição que se encontra a esperança, um sentimento nostálgico de felicidade, pois ser feliz é ser a si mesmo, sem que para isso, precisemos lançar mão de subterfúgios do mal.

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Submetido em 20/11/2017; Aceito em 20/02/2018


Notas

[2] A referida entrevista foi dada a Christian Salmon, no inverno europeu de 1983, à revista Paris Review, e publicado no ano de 1984, na sua 81ª edição.

[3] Claims Resolution Tribunal: In re Holocaust Victim Assets Litigation - Case No. CV96-4849 (Accounts of Josef Broch, Johanna Broch, and Friedrich Broch), Claim Numbers: 500773/JW; 500815/JW; 500821/JW. Publicado em 21 de Junho de 2006.

[4] O irlandês James Augustine Aloysius Joyce influenciou a vida de Broch, principalmente no uso de técnicas de escrita. A amizade entre os dois se iniciou quando Daniel Brody, editor da tradução alemã de Ulysses e mais tarde o publicador das obras de Broch, enviou a Joyce, em julho de 1933, cópia de ensaio feito por Broch, James Joyce und die Gegenwart [James Joyce e a Idade Presente]. Desde então os dois mantiveram intensa correspondência. Quando Broch foi preso em 1938, Joyce estava entre os que agiram decisivamente para suplicar e garantir sua libertação e exílio.

[5] Documento Citado (Tradução livre): Claims Resolution Tribunal: In re Holocaust Victim Assets Litigation - Case No. CV96-4849 (2006:02).

[6] Fundado em Londres em 1921 por Catherine Amy Dawson Scott, o PEN Club tinha como membros Joseph Conrad (1857-1924), Elizabeth Craig (1883-1980), George Shaw (1856-1950), e George Wells (1866-1946). Associação mundial promotora de cooperação intelectual entre escritores, um de seus importantes objetivos é a luta pela liberdade de expressão, e serviço de voz em nome de escritores perseguidos, presos e às vezes mortos por expressarem suas opiniões.

[7] Para fins de referência no presente artigo, utilizamos o livro The sleepwalkers: a trilogy, de Hermann Broch, traduzido do alemão por Willa e Edwin Muir ainda em 1932 e reeditado em Nova York (USA), pela Vintage Books (Random House), no ano de 1996. A tradução foi acompanhada pelo próprio Broch, e ocorreu no mesmo ano da publicação em alemão, o que demonstra a importância da obra, que ganha contornos internacionais por intermédio da língua inglesa. No Brasil há duas traduções da obra. A primeira é feita por Wilson Hilário Borges, pela editora Germinal (São Paulo), em 2003. A segunda é feita por Marcelo Backes, pela editora Benvirá (São Paulo), em 2011.

[8] Tradução livre.

[9] Sobre o conceito de Romance Poli-histórico, Milan Kundera, em entrevista dada a Christian Salmon, define: A meu ver, a palavra "poli-histórico", deve ser definida como "aquilo que reúne todo artifício e toda forma de conhecimento de modo a lançar luz sobre a existência". Sim, realmente sinto proximidade em relação a uma tal abordagem. Em: Milan Kundera, The Art of Fiction No. 81, interviewed by Christian Salmon, The Paris Review. Paris, N. 81, 1984.

[10] O termo polifonia tem raiz etimológica na língua grega e refere-se ao ajuntamento de múltiplas vozes. O conceito parece ter nascido no século nono quando da disseminação de cantos populares entoados por várias vozes que concorriam com o Canto Oficial da Cristandade, que ganhou notoriedade e força por ter a particularidade de expressar pietismo e recolhimento espiritual; além de exigir educação pedagógica das vozes dos participantes, o que provocou “elitização” na formação de corais nos templos cristãos. Cf.: WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Cia das Letras. 1989.

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