O riso e o erotismo como fundamentos epistemológicos da escrita romanesca de Milan Kundera

O riso e o erotismo como fundamentos epistemológicos da escrita romanesca de Milan Kundera[1]

Maria Veralice Barroso*

* Pesquisadora associada do Grupo de Pesquisa Epistemologia Romance, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília – UnB. Docente na Secretaria do Estado de Educação do DF- SEEDF. 


RESUMO:

O presente artigo, tem por objetivo realizar uma análise do conto Personne ne va rire[2], procurando nele delinear o surgimento do que poderia ser compreendido como um importante componente da espinha dorsal do projeto estético romanesco de Milan Kundera: a personagem de Don Juan. Destacando o riso e o erotismo como elementos constitutivos do donjuanismo, consequentemente, como fundamentos da escrita ficcional kunderiana, intenta-se uma incursão epistemológica por esta narrativa, buscando, a partir dela, ampliar as possibilidades acerca do que nos é possível saber sobre a existência, quando tomamos por objeto de investigação o espaço literário do romance moderno.

Palavras chaves: Milan Kundera, erotismo, riso, Don Juan, romance moderno, epistemologia


ABSTRACT:

The aim of this article is to analyze the short story 'Personne ne va rire', in order to delineate the emergence of what could be understood as an important component of the backbone of Milan Kundera 's Romanesque aesthetic project: the character of Don Juan. Highlighting laughter and eroticism as constitutive elements of Donjuanism, and consequently as the foundations of Kunderian fictional writing, an epistemological incursion is attempted through this narrative, trying to expand the possibilities about what we can know about existence when we take as object of investigation the literary space of the modern novel.

Key words: Milan Kundera, eroticism, laughter, Don Juan, modern novel, epistemology


O espírito do romance é o espírito de complexidade.
Cada romance diz ao leitor: “As coisas são mais complicadas do você pensa”.

Milan Kundera

 

A análise que aqui se pretende está calcada nos princípios delineados pelos estudos epistemológicos desenvolvidos nos círculos teóricos da Epistemologia do Romance cujo surgimento se deu no início dos anos de dois mil diante das inquietações do pesquisador Wilton Barroso (2003), que, já naquele momento, identificava a narrativa literária como espaço de intercâmbio entre o filosófico e o literário, na medida em que tanto o exercício de um quanto a de outro, está interessado no conhecimento do Ser.

Mais do que o diálogo puro e simples com a filosofia, há narrativas literárias que ambicionam o desenvolvimento da prática filosófica. Sendo assim, entende-se que, na atividade de análise do texto ficcional, o diálogo entre o estético, o hermenêutico e o epistemológico constitui-se em experiência relevante na medida em que o processo de leitura “interativa” – a palavra é aqui usada pensando na ideia de interação entre texto e leitor desenvolvida por Wolfgang Iser ao ampliar os estudos da estética da recepção[3] (1999) – do estético conduz o leitor a um espaço no qual ele se pergunta, se interroga e se transforma. Se no leitor comum, desprovida de intenções, a relação interativa com o objeto estético resulta em “ampliação dos horizontes”, tal como do alto dos estudos recepcionais preconizava Robert Jauss (2002), para o leitor pesquisador do texto literário, esta relação está mediada por intenções previamente elaboradas.

Aproximando-nos de uma compreensão semelhante à de Immanuel Kant acerca da relação sujeito objeto, no que se refere ao conhecimento, entendemos que para o leitor que toma um texto literário como objeto de estudo, ainda que não necessariamente destituído do gosto ou do aprazível, suas escolhas ultrapassam estes limites, elas são normalmente mediadas pelo desejo de conhecer, de saber algo acerca ou para além do objeto. A percepção sensível que leva à intuição resulta da relação com o objeto estético sendo, portanto, o passo inicial rumo ao entendimento, instância na qual lhe será permitido formular conceitos, bem como avançar para o próximo degrau, onde lhe será possível depreender ideias referentes ao imaterial tal como alma, mundo, liberdade... No pensamento kantiano, essa última instância resulta da experiência e pode ser entendida como uma faculdade superior do conhecimento, já no âmbito literário – no qual situa nossa discussão –, entende-se que, ao chegar à definição do que será seu objeto, o leitor pesquisador já tenha percorrido uma longa trajetória, nela buscando compreender o sentido de personagens, palavras, situações... Sem dúvida, foi este percurso pela obra de Milan Kundera que permitiu o recorte de Personne ne va rire como o texto do qual serão subtraídas as reflexões contidas neste estudo.

Amparada pelas orientações epistemológicas, o recorte aqui efetuado está assegurado por algumas compreensões prévias, das quais nos interessam pelo menos três: primeiro, a obra romanesca de Milan Kundera resulta de uma construção gradativa mediada por intenções do autor no que se refere ao desenvolvimento da estética romanesca, bem como da prática do pensamento filosófico. Segundo, sendo uma construção gradativa, a escrita ficcional de Milan Kundera está interligada, por temas, personagens, situações, elementos estéticos... que se repetem, permitindo ao escritor, por meio destes fundamentos, uma prática contínua e constante de fazer e refazer a estrutura do próprio pensamento. Este aspecto auxilia no entendimento de ser cada texto parte de um projeto estético romanesco. A terceira compreensão está pautada no entendimento segundo o qual, sendo um projeto estético, Kundera quer consolidá-lo como uma tradição estética que, enraizada no século XVII na escrita de Cervantes, ramificou pela modernidade.

Ainda que nem sempre sejam mencionadas no curso das análises, transitaremos pela narrativa Personne ne va rire munidos das compreensões acima transcritas, as quais, em vários momentos, corroboram com afirmativas e ou conclusões aqui subtraídas.

 

Personne ne var rire, apresenta-se como a narrativa que abre a coletânea de contos de Risibles amours.[4] Embora se apresente oficialmente como o segundo livro publicado no conjunto da obra romanesca de Milan Kundera, grande parte dos contos de Risibles amours precede a escrita de La plaisentarie[5], primeiro romance Kunderiano. Sabe-se que as narrativas de Risibles amours estão longe de atingir a complexidade estético reflexiva com que Milan Kundera vai gradativamente adensando a sua escrita, entretanto, ao reconhecer a obra romanesca desse escritor como um projeto cuidadosamente elaborada e construído, seria difícil pensar o edifício literário, por ele erguido, negligenciando a importância desses escritos. As narrativas constitutivas desse livro são uma espécie de embrião do projeto estético literário de Kundera.

De modo geral, as narrativas de Risibles amours –como o próprio título sugere – estão investidas da presença de elementos risíveis, os quais se direcionam às relações amorosas comumente interligadas à sexualidade. Diante da leitura deste livro é possível afirmar que o riso e o erotismo são, desde o início, condutores do processo de criação estético romanesca de Milan Kundera. Se o que nos impulsiona no processo de análise é o desejo de ampliar saberes acerca da existência, a partir desse entendimento será permitida a formulação da ideia segundo a qual a opção de Kundera pelo riso e o erotismo foi motivada sobretudo em razão do que afirma Anthony Giddens(1993), quando assevera que a sexualidade é o lugar de conexão entre o eu e o mundo uma vez que

É algo que cada um de nós “tem”, ou cultiva, não mais uma condição natural que um indivíduo aceita como um estado de coisas preestabelecido. De algum modo, que tem de ser investigado, a sexualidade funciona como um aspecto maleável do eu, um ponto de conexão primária entre o corpo, a auto-identidade e as normas sociais. (GIDDENS,1993, p. 25)

Tal como preconiza Giddens, na estética kunderiana o corpo também se torna um intermediador entre a objetividade e a subjetividade das personagens; sendo assim, o criador parece compreender que nenhum outro Ser seria tão representativo de seu universo literário quanto a figura moderna que traz como fundamentos centrais de sua constituição o elemento sexual aliado ao risível: Don Juan.

Será então no solo das narrativas de Risibles amours que observaremos o donjunismo ser fecundado para mais tarde enraizar-se e frutificar nos romances de Milan Kundera. É com esta compreensão que aqui buscaremos lançar o olhar sobre esta obra, nela destacando o riso e o erotismo enquanto componentes donjuanescos capazes de conduzir à significativas reflexões sobre a condição humana no curso da história. Uma vez que Don Juan e suas variações são desencadeadoras da relação do eu com o mundo como disse Giddens, provavelmente será em razão disso que a distribuição final dos contos no livro, do modo sugerido por Kundera[6], fará que, por meio de um princípio variacional, todas as temáticas dialoguem diretamente com as perspectivas donjuanescas. Assim, ao se valer da fusão entre erotismo e riso originalmente constitutivas das ações de Don Juan, o romancista tece um quadro narrativo, estético, lúdico e cognitivo valoroso sobre a existência. 

Em conformidade com o que nos diz Giddens de um ponto de vista sociológico, de um ponto de vista estético e epistemológico Kundera também entende que o eu só poderá ser pensado dentro de situações concretas da vida, uma vez que a existência se constitui na relação do eu consigo mesmo e com o mundo a sua volta (2005).  Em Milan Kundera, a valorização da Literatura enquanto espaço de prática da Filosofia se dará fundamentalmente por meio do entendimento deste aspecto. Segundo ele, diferentemente da Filosofia que elabora seu pensamento sobre o Ser a partir de abstrações características de sistemas filosóficos, a narrativa literária dispõe de personagens, seres concretos, capazes de experienciar as diversas possibilidades daquilo que está sendo pensado (1988). Será neste sentido que o escritor dará às suas criações literárias uma espécie de selo filosófico ao denominá-las “egos experimentais”.

Os egos experimentais são construídos e colocados em ação mediante as intencionalidades do autor, que, neste caso – fazendo uso da razão, tanto quanto da inspiração –, busca além da representação – e em especial por meio dela – o conhecimento sobre o Ser. Simpatizante da estética de Hermann Broch – romancista cujo esforço exaustivo se deu no sentido de fazer da narrativa literária um espaço legítimo da prática filosófica, como assim nos dá a ver Hannah Arendt (2008) –,  ao nosso ver Milan Kundera confirma sua condição de esteta/filósofo quando se apresenta como um escritor partidário e praticante do que irá denominar de “Romance que pensa[7]”. 

Ao transitar entre o estético e o epistemológico, Kundera quer se distanciar do conhecimento resultante da razão cientificista aproximando-se de um conhecimento sensível semelhante ao que no estudo intitulado “Elogio da razão sensível”, nos sugere Michel Maffesoli (1998). Trabalhando no sentido de retirar a literatura da zona de previsibilidades ou certezas, sua opção será pelo riso enquanto comicidade representativa da destronação, tal qual nos fala Mikhail Bakhtin (1999) e/ou pela acidez corrosiva que, segundo o próprio Milan Kundera (1988), colheu na ironia de Hegel.

Quanto ao erotismo, as intenções estético/epistemológicas de Kundera – na tentativa de fazer emergir um conhecimento sensível –, evidenciam o desejo de fazer deste elemento outro aspecto que reforce a dubiedade e ambivalência necessários ao romance literário. Por isso, ao lidar com a sexualidade erótica procura atentar ao que nos diz Octavio Paz (1999) quando este se propõe a pensar o erotismo marcante constitutivo da obra do Marquês de Sade. Conforme Paz,

O erotismo é a experiência da vida plena, pois nos aparece como um todo palpável, no qual penetramos também como uma totalidade; ao mesmo tempo, é a vida vazia, que olha a si mesma no espelho, que se representa. Imita e se inventa; inventa e se imita. Experiência total e que jamais se realiza de todo porque sua essência consiste em ser sempre um mais além. (PAZ, 1999, p. 34) (grifo do autor)

E será a partir da compreensão do caráter ambivalente do riso e do erotismo na escrita literrária kunderiana que tentaremos observar  a totalidade da vida plena, pois através do (anti) herói de Personne ne va rire, Kundera ensaia sua trajetória romanesca. Entretanto, nossa ação será conduzida pela única certeza que nos será permitida no âmbito do romance literário: a de que, a cada passo dado nesta atividade, haverá diante de nós «um mais além».

 Ninguém vai rir

O homem e a História, estes serão os elementos reivindicados para as reflexões em torno da primeira variação do donjuanismo utilizada por Kundera. Vale também destacar que, no conjunto de sua obra romanesca, a criação ficcional que protagoniza esta narrativa, bem como toda a problemática que ela apresenta serão retomados e desenvolvidos de modo bem mais complexo e amplo em La plaisanterie, primeiro romance do escritor.

Em Personne ne va rire, a personagem central não pode ser compreendida integralmente como um Don Juan, todavia, muito de sua personalidade se constrói em diálogo com o mito moderno. Associada ao risível e ao erotismo, a transgressão das normas e valores sociais constitutivos dos atributos desta personagem ligam-no à imagem donjuanesca. Sendo assim, defendemos a tese de que o protagonista desse conto funciona como uma preparação para a entrada em cena de Don Juan, a qual efetivamente só ocorrerá no segundo conto deste livro, Le pomme d’or de l’éternel désir[8].

Ambientado nos anos sessenta e no espaço da dominação Russa sobre a Tchecoslováquia, Personne ne va rire é um conto narrado em primeira pessoa. Nele, o protagonista, profissional de História da Arte, conta suas aventuras e desventuras quando tenta se desvencilhar da obrigação de dar um parecer desfavorável a um artigo de péssima qualidade escrito por um amador: o Srº Zaturecky. Embora fosse, para qualquer um, evidente a má qualidade do artigo, o mesmo fora redigido por alguém que nutria por ele (o protagonista) grande respeito e admiração. Como era raro que pensassem assim a seu respeito, sentia-se injustiçado em ter que ser ele mesmo a destruir tão belos sentimentos sobre si. Diante dessa constatação, colocando a si mesmo e à própria vaidade acima do aparentemente correto, violando, portanto, as exigências de austera seriedade e de transparência que circunscreviam os espaços sociais em que circulava, o protagonista se recusa a dar o parecer: é exatamente aí que começa a sua saga no conto, cuja batalha inicial destaca o embate indivíduo versus coletivo naquele contexto.

Uma vez que não seria prudente anunciar claramente sua decisão, para fazer valer o propósito de não redigir o parecer, o protagonista lança-se em uma aventura que, em termos de ação, se assemelha àquelas vividas pelos heróis épicos. Mas como bem observou Georg Lukács (2000), o mundo da epopeia é aquele cuja ideia de alteridade é inexistente. Em suas palavras, Lukács deixa ver que, diferentemente do herói romanesco, “o herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo” (2000, p. 67). Segundo ele, “desde sempre se considerou traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade” (2000, p. 67).

Nisso reside a primeira e grande contradição do herói. Ele habita uma sociedade cuja valorização é da unidade contida na epopeia e não da alteridade própria do romanesco, mas, ingenuamente e contraditoriamente, o herói kunderiano inicia sua aventura no momento em que toma uma decisão de cunho puramente pessoal e, nela, prossegue valendo-se de mentiras e subterfúgios. Neste primeiro momento, Kundera nos faz ver que em uma sociedade cuja alteridade é negada como risco à harmonia social, a individualidade contida na decisão dessa personagem é um desafio e um contraponto a tudo que o regime totalitário representa para a vida das pessoas e para o espírito da arte que agora assume: o romance moderno.

Seguindo a perspectiva que requer simultaneamente o metaficcional e o existencial como conteúdo de sua arte, ao assumir o romance como projeto artístico, Kundera começa por fazê-lo a partir de uma demonstração clara de valorização atribuída às diferenças entre os seres. A valorização da alteridade como elemento regulador das relações sociais, leva o escritor à busca incessante de aspectos que façam sobressaltar traços pessoais em cada indivíduo. Seguindo essa linha de raciocínio é possível afirmar que a insistência donjuanesca observada no conjunto da obra passa necessariamente por essa busca do autor. E parece ser exatamente essa busca a levá-lo a adotar o erotismo e o cômico, inscritos em Don Juan, como condutores de suas reflexões nesse seu primeiro conto.

 Riso e erotismo versus a harmonia social

Em Personne ne va rire, o erotismo resulta da e se alimenta na relação do protagonista com a namorada Klara que, sob vários disfarces, ele mantém clandestinamente em casa. O riso, por sua vez, é impulsionado pelo absurdo da mentira, por ele criada sobre uma possível investida sedutora do Srº Zaturecky sobre Klara. A comicidade da situação se eleva em razão da descrição física e psicológica desse senhor que faz dele um Ser completamente antierótico. Além de alimentar o riso e com isso desacreditar o autor e consequentemente o artigo, o fato criado pelo protagonista justificaria, perante os outros, a sua recusa em não assinar o parecer, mas ironicamente, será este o fator responsável por fazer entrar em cena, em defesa da honra do marido, a esposa do Srº Zaturecky. Embora aumente o tormento do protagonista, ao inverter a ideia de sedução e os papéis donjuanescos, a presença dessa senhora em cena intensifica ainda mais a comicidade da narrativa.

Tendo as ações conduzidas pelo riso e o erotismo, dois aspectos de caráter estritamente individual e reveladores da alteridade, para fazer valer a vontade individual, o protagonista se interpõe à soberania das vontades coletivas, as únicas aceitas na sociedade na qual vive.

Os perigos representados pela sexualidade perante o projeto de ordenamento da sociedade foram pensados e minuciosamente observados pelas lentes foucaultianas (1988) ao se disporem a recompor a “História da sexualidade”. Tal como sugere Foucault sobre a sexualidade, Bakhtin (1999) nos dá a ver que, na história do homem, o riso representou um perigo às ortodoxias na medida em que atuou, muitas vezes, como destronador delas. Assim, enquanto traços da personalidade do protagonista – escolhido para abrir o projeto literário romanesco de Kundera – tanto o riso quanto o erotismo se chocam com as estruturas sociais vigentes. Pois, como bem alerta a namorada Klara – representante das transgressões aos discursos normativos acerca das relações amorosas –, a época não é para brincadeiras, porque tudo está sendo levado a sério nos dias de hoje (2011a, p. 21). E será no sentido de constranger o espírito livre do protagonista – considerado uma ameaça social – que as instituições reguladoras, incidirão sobre a intimidade do nosso herói, colocando em evidência os limites entre o público e o privado.

Decorrente da seriedade, a vigilância excessiva sobre os indivíduos se faz notar pela relação entre as instâncias da vida pública e da vida privada do protagonista. Na vida pública ela se evidencia no trabalho e, sobretudo, na reunião do comitê de rua. Por esse último, será julgado “pela vida dissoluta” que levava e a qual, segundo essa instituição, “produzia má impressão na vizinhança”. Assim, a reunião do comitê tem início quando um homem grisalho anuncia que já estavam, há algum tempo, de olho nele. Já o término dela se dá diante desta grande interrogação de uma participante, «comment se fait-il que la vie dans notre pays ne vous incite qu’à boire et à séduire les femmes ?[9]»(2011a, p. 26). Após a grande reflexão,  ela lhe anuncia os desejos e a sentença coletiva «soyez certain que nous ferons connaître sur ce point notre opinion à qui de droit[10]»(2011a, p. 26).

Em La Plaisanterie, o primeiro romance de Milan Kundera, a saga do herói Ludvik pela História tem início quando uma correspondência pessoal endereçada à namorada é violada pelos membros do partido comunista. Aqui é a incisiva ameaça e interferência do comitê na intimidade da personagem o que também impulsiona suas aventuras pela História. É essa violação dos espaços pessoais que faz o herói kunderiano se dar conta da fragilidade da liberdade individual e da vida privada nesse contexto. Com o julgamento do comitê, tornava-se claro para ele que, nesta organização social, o homem privado é obrigado a se desvelar por inteiro. Percebia claramente que, neste contexto, sua vida íntima podia ser observada tanto quanto sua vida pública. Para as instituições reguladoras, entre uma e outra, não havia nem poderia haver distâncias nem distinções. Mesmo sua casa não era um território só seu. A ausência de privacidade pode ser constatada na melancolia das reflexões tecidas pelo protagonista, momentos antes de se encontrar com a namorada Klara. Diz ele:

Ce jour-lá, je lui avait donné rendez-vous devant une église. Pas à la maison, non. Car la maison était-elle la maison? Une pièce aux murs de verre peut-elle être encore une maison? Une pièce que des observateurs surveillent à la jumelle? Une pièce où vous devez dissimuler, comme une marchandise de contrebande, la femme que vous aimez?[11] (KUNDERA, 2011a, p.27).

Sabia agora que, mesmo diante dos disfarces, Klara nunca fora um segredo só seu. A intimidade vivida com a namorada estava aos olhos das instituições reguladoras, exposta, interpretada e deformada. Mesmo que aparentemente protegidos pelas paredes da casa, ele e a namorada viveram, todo o tempo, sob os olhares e julgamentos de todos. Na verdade, o comitê só o obrigou a tornar inteiramente claro aquilo que já era do conhecimento de todos. Sabia agora que vivia circundado por “paredes de vidros”, as quais asseguravam às instituições a exigência de transparência.

O incômodo quanto às exigências de transparência evidenciadas nas ações e fala do protagonista é algo bem próximo do incômodo evidenciado por Kundera em suas discussões teóricas sobre o assunto, o que talvez mereça maior atenção de nossa parte.
Em seu livro Transparences du roman[12], Pierre Brunel (1997), lembra que o desejo de Breton era de «vivre sous les yeux de tous[13]», anulando o máximo possível qualquer barreira que pudesse impedir a transparência total. Por isso, diz ele

Pour moi, je continuerai à habiter ma maison de verre, où l’on peut voir à toute heure qui vient me rendre visite, où tout ce qui est suspendu aux plafonds et aux murs tient par enchantement, où je repose la nuit sur un lit de verre aux draps de verre, où qui je suis m’apparaîtra tôt ou tard, gravé au diamant.[14] (BRETON apud BRUNEL, 1997 p.10).

Mas se Breton clama por transparência vítrea, o espírito de romancista em Kundera prefere a dubiedade, a opacidade, a interrogação. Ele entende que, entre todos, o romance é o gênero literário menos propício à transparência(BRUNEL, 1999, p. 12). Em várias de suas discussões teóricas, Kundera demonstra rejeição em relação aos posicionamentos de Breton. A necessidade de transparência evidenciada pelo surrealista é um dos posicionamentos largamente questionado pelo romancista. De nossa parte, pensamos que possivelmente, a diferença em relação à percepção de transparência nos dois escritores não resulte do gênero adotado, nem possa constituir-se em um critério de valor na comparação entre os dois artistas. Em nosso entendimento, a relação com a necessidade de transparência em cada um deles, está interligada ao tempo e espaço nos quais desenvolveram suas atividades.

Ao flanar, pela cidade de Paris, Breton quer explorar e ser explorado, atravessar e ser atravessado pelos olhares alheios. Para o Flâneur, a rua e os passantes são refúgios e garantias de solidão. Os olhares do público não o incomodam, porque não são reguladores de seu comportamento. Mas diferentemente disso, os olhares dos outros sobre os quais se expõe nos monumentos, nas ruas, nas praças, nas esquinas são uma busca pelo autoconhecimento. Conforme Walter Benjamin, viver numa casa de vidro, como quer Breton, “é uma virtude revolucionária por excelência”. Nas palavras do filósofo, “isso é uma embriaguez, um exibicionismo moral que nos é exatamente necessário.” Pois, segundo o alemão, o homem só pode conhecer-se experimentando as tensões e os conflitos sociais. Nesse sentido, para Benjamin, “a discrição no que diz respeito à própria existência, antes uma virtude aristocrática, transforma-se cada vez mais num atributo de pequenos burgueses arrivistas” (2012, p. 24). O que não se pode esquecer é o tempo de publicação de Nadja (1928) e do texto de Benjamin (1929).  

O espaço de atuação de Breton, e mesmo de Benjamin quando realiza suas interpretações de Nadja, não pode ser ignorado no âmbito desta discussão. Pois, o mesmo olhar alheio que em uma cidade como a de Paris dos anos vinte pode contribuir para o conhecimento de si, na austeridade de uma ditadura, como a vivida por Kundera na Tchecoslováquia dos anos sessenta, pode significar uma ameaça às identidades. Por isso, a cautela de Kundera em relação aos excessos de transparência de modo algum pode ser comparada às atitudes de um pequeno burguês arrivista do modo compreendido por Benjamin. No contexto dos anos vinte fortemente influenciados pelos ideais marxistas, as preocupações com as causas individuais, compreensivelmente se revelam como sinônimo de alienação pequeno burguesa; já no contexto do Kundera romancista[15], entretanto, elas eram o único meio de garantia das diferenças. Para quem o marxismo há muito deixou de ser um ideal, e se transformou em uma prática política efetiva, com todos os desvios que isso implica, preservar a individualidade era uma tentativa de existir naquele contexto, uma existência não generalizada.

Desvelar-se diante do outro não era, no contexto dos anos sessenta da Tchecoslováquia, um deleite ou busca de conhecimento, experimentar as tensões sociais constituía-se em um risco difícil de ser experimentado. Ali, a exposição da individualidade podia se tornar um risco, sobretudo, às identidades. Os olhares que sobre os indivíduos recaíam nas praças, esquinas, ruas... não eram os olhares do cidadão comum, mas das instituições reguladoras que visavam à despersonalização[16]. Definitivamente, no contexto em que Kundera inicia sua prática romanesca, flanar pelas ruas não é sinônimo de liberdade e de conhecimento como o fora para Breton. O romancista parece mesmo compreender que a não percepção disso, nos tempos paradoxais, só merece a ironia, fundamentalmente porque esta não percepção advém de uma compreensão eminentemente lírica. Por isso, não é ninguém mais, senão Helena[17], personagem de La plaisanterie, a pronunciar a seguinte frase de efeito: «seul le bourgeois dans son imposture se partage em um être public et un homme privé[18]» (2011c, p. 205).

Para este literato, a exposição pública da vida privada, cada vez mais exigida dos indivíduos, resta um incômodo. E por isso, se de dentro de sua arte fez questão de ironizar essa exigência, fora dela, caracterizou-se pelas medidas radicais quanto a qualquer informação sobre sua vida íntima. Em geral, nada além do estritamente necessário para compreensão dos textos literários é pronunciado pelo autor a respeito de sua vida particular.  Na definição de transparência, contida no seu dicionário de sessenta e nove palavras, objetivamente, Kundera mais uma vez nos aponta seu incômodo e insatisfação em relação ao máximo de transparência. Isto também porque, de acordo com ele, esta exigência só existia numa relação de mão única, pois se a transparência era cobrada dos indivíduos, nos meios políticos reinava a escuridão. Em suas palavras,

Dans le discours politique et journalistique, ce mot veut dire:dévoillement de la vie des individus au regard public. Ce qui nous renvoie à André Breton et à son désir de vivre dans une maison de verresous les yeux de tous. La maison de verre: une vieille utopie et en même temps un des aspects les plus effroyables de la vie moderne. Règle: plus les affaires de l’État sont opaques, plus transparentes doivent être les affaires d’un individu; la bureaucratie bien qu’elle représente une chose publique est anonyme, secrète, codée, inintellegible, alors que l’homme privé est obligé de dévoiler sa santé, ses finances, sa situation de famille et, si le verdict massmédiatique l’a décidé, il ne trouvera plus un seul instant d’intimité ni en amour, ni dans la maladie, ni dans la mort. Le désir de voiler l’intimité d’autrui est une forme immémoriale de l’agressivité qui aujourd’hui, est institutionnalisé (la bureucratie avec ses fiches, la presse avec ses reporters), moralement justifiée (le droit à l’information devenu le premier des droits de l’homme) et poetisée (par le beau mot: transparence)[19] (KUNDERA, 2011b,  p. 736)

Por isso, observamos que em l’insoutenable légèreté de l’être[20] o romancista já consegue criar uma metáfora, de Tomas o lavador de vidros, capaz de, criticamente, se aproximar da imagem da casa de vidro sonhada por Breton, neste primeiro conto de Risibles amours, entretanto, vemos que para narrar a insatisfação em relação à exigência de transparência, Kundera se apoia numa noção invertida de casa. E, tal inversão talvez se faça notar mais claramente se tomarmos por referência a percepção fenomenológica do espaço da casa em Gaston Bachelard (2000).

Em seus estudos desenvolvidos no livro A poética do Espaço, Gaston Bachelard (2000) trabalha com uma ideia de casa como um espaço de proteção, de refúgio, de acolhimento e continuação do Ser. Segundo ele,

Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser “jogado no mundo”, como professam as metafísicas apressadas, o homem é colocado no berço da casa. (BACHELARD, 2000, p. 26)

Bachelard pensa o espaço da casa como um contraponto do indivíduo à hostilidade dos espaços sociais.  Nesse sentido, ao ressaltar a imagem da casa como um “Grande Berço”, ele a descreve como espaço onde os Seres se resguardam e se reconstituem das intempéries da vida pública. Sendo um espaço de manifestação livre do eu, a casa é para Bachelard, um lugar onde o indivíduo se constrói e se reconstrói como tal. Enquanto território íntimo e pessoal, a casa não só diz muito sobre quem nela habita como também, em sua própria dinâmica, denuncia o estrangeiro. Enfim, para o fenomenólogo, “a casa é um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade.” (2000, p. 36)

Diante da violência do olhar impetrada sobre os indivíduos, é essa imagem de casa descrita por Bachelard que o protagonista de Kundera vê desmoronar. Violado pelo olhar público, o espaço da casa do protagonista não mais se assemelha à ideia prevista por Bachelard. A reunião com o comitê serviu para lhe mostrar que, nesse contexto, sua casa não era mais um espaço de refúgio, de proteção, de liberdade ou de intimidade. Em vez de continuação de si, de sua individualidade, ela era agora a continuação da violação do Ser que claramente se percebia nos espaços públicos. A inversão no conceito de casa se mostra nas palavras nostálgicas do protagonista quando sentencia que em casa ele e a namorada sentiam

l’effet d’intrus qui se sont introduits dans un territoire étranger et risquent à tout moment d’être assaillis, nous perdions notre sang-froid dès que retentissaient des pas dans le couloir, nous nous attendions à chaque instant que quelqu’un cogne à la porte, et avec insistance.[21] (KUNDERA, 2011a, p. 27).

No momento em que se tornou um espaço violado, a casa deixou de ser o espaço por onde circulavam o sentimento de segurança, de proteção. Em meio ao medo e sobressaltos que ela agora lhes inspirava, distanciou-se também do que imaginava ser o espaço propício para abrigar seu relacionamento amoroso com Klara frente aos olhares intrusos.

O primeiro grande impasse decorrente da decisão do protagonista em não dar o parecer se fez notar na reunião do comitê. Mas, visivelmente os tentáculos dessa instituição agora se estendiam em direção à relação amorosa “subversiva”, vivida com Klara.  Pois se a casa não podia ser mais vista como espaço acolhedor da intimidade deles, para Klara, encontrá-lo fora desse espaço, no apartamento emprestado, era mais que incômodo, era humilhante. Para ela, era como se o espaço íntimo e familiar da casa conferisse legitimidade ao relacionamento considerado clandestino aos olhos das instituições. Por isso, dirá ela ao amante: «dans un appartement prêté je me fais l’effet d’une putain»[22] (2011a, p. 28).

A situação na qual o herói kunderiano se encontra no final de sua aventura, pode ser compreendida como a “litost kunderiana”.   Em Le livre du rire et de l’oubli[23], pela voz do narrador, Kundera nos apresenta a palavra litost. Segundo este narrador, esta é uma palavra tcheca para a qual não existe uma tradução nas demais línguas. A partir de situações concretamente apresentadas e narradas ele formula uma definição do termo. Além de resultar da inocência, conforme ele, «La litost est um état tourmentant né du spectacle de notre propre misère soudainement découverte[24]» (1895, p.200).  E, ainda, segundo o narrador, quando possuído pela litost o homem se vinga por meio de seu próprio aniquilamento.

Por conta da sombra que repentinamente vê interpor entre ele e a namorada ele decide conversar com a Srª Zaturecky. Ao fazer ver à esposa do escritor a má qualidade do artigo, o protagonista do conto coloca fim em sua saga. Mas ouvindo as explicações da esposa daquela mulher quanto à integridade moral do marido, subitamente se dá conta de que não só ele como também aquela senhora e o marido eram vítimas da mesma história. Por isso, agora, diante dessa mulher, esquece que, por causa dela, de sua insistência, seria forçado a deixar o emprego na faculdade, que, por causa dela, uma sombra deslizara entre ele e Klara. Ele esquece que, por causa dessa senhora, passara tantos dias de tormento e raiva. A nostalgia nas palavras e atitudes daquela mulher se abatia sobre eles e fazia vir à tona a fragilidade do homem diante da História, das forças externas que o conduzem e o condicionam.

Nesse momento, o herói kunderiano parece se dar conta da ingenuidade de suas certezas. Nitidamente percebia a incoerência de suas ações com as quais previa um fim consensual. O erro do protagonista foi não contar com a imprevisibilidade (a entrada da senhora Zaturecky na história) e com a atuação do outro (da namorada). E, principalmente, sua falha foi não entender que suas aventuras preveem a transformação, uma vez que elas são constitutivas do gênero romanesco e não do épico. Sendo assim, imbuído do sentimento de impotência e nostalgia, carregado pela litost, conclui o narrador-personagem

Je comprenais soudain que ce n’était de ma part qu’une illusion si je m’étais imaginé que nous sellions nous-mêmes la cavale de nos aventures et que nous en dirigions nous-mêmes la course; que ces aventures ne sont peut-être pas du tout les nôtres, mais nous sont en quelque sorte imposées de l’extérieux, qu’elles ne nous caraterisent en aucune manière; que nous ne sommes nullement responsables de leur cours étrange; qu’elles nous entraînent, étant elles-mêmes dirigés on ne sait d’où par on ne sait quelles forces étrangères[25]. (KUNDERA, 2011a, p. 30-31)

Se a conversa com esta senhora já fosse tardia, uma vez que a esta altura já havia sido arrastado pelas forças impostas do exterior, perdendo o emprego, a casa e a namorada, ela também encaminhava a narrativa para um desfecho irônico e nostálgico. Irônico porque, se todas as perdas da personagem se deram a fim de que não assinasse o parecer sobre o artigo, era exatamente em função dessas perdas que ele finalmente opta (ou se vê obrigado) por fazê-lo.

Já a nostalgia se faz notar no próprio desfecho da narrativa, quando as reflexões do protagonista nos fazem ver que, diante das forças externas e internas que regem a vida, o homem não tem domínio sobre os corcéis que a conduzem, como em Fedro previa Platão. Do mesmo modo, ele não é “Senhor e Dono” como, no princípio da modernidade, formulava Descartes. E qualquer ação que, no crepúsculo da Era Moderna, não reconheça a fragilidade dos modelos racionais, que insista no domínio da razão platônica ou na fórmula cartesiana é no mínimo ingênua e se revela caricatural como assim se revelou em nosso herói.

Se as aventuras de Don Juan Tenório no século XVII encontraram seu fim na vingança do comendador cujo castigo foi conduzi-lo à morte, as aventuras do protagonista kunderiano se encerram diante das percepções nostálgicas em relação à própria ingenuidade, fracasso e pequenez diante da grande história, algo que se faz notar em suas palavras “Il me fallut encore um moment pour comprendre que mon histoire (malgré le silence glacial qui m’entourait) n’est pas du genre tragique, mais plutôt comique. Ce qui m’apporta une sorte de consolation[26]”(KUNDERA, 2011a,  p. 34).

Por mais que tenha feito uso de espertezas e disfarces, o grande Burlador de Sevilha não conseguiu se desvencilhar da força da História, pois pelas leis do clero e da nobreza fora julgado e exemplarmente condenado ao fogo do inferno. A força da História que levou à morte Don Juan se faz notar quase quatro séculos após, parece ser o que nos diz Milan Kundera no ato final das aventuras tragicômicas de seu herói, quando este se dá conta de sua litost. Subitamente percebe que, enquanto tentava fazer do autor do artigo e de sua esposa alvos de um riso destronador, irônica e paradoxalmente fez elevar-se de diante dos próprios olhos o espetáculo de sua miserável condição, para qual não teria outra saída senão a comicidade. 

Considerações Finais

Em sua primeira narrativa ficcional, Kundera nos diz que, diante de nossa impotência frente à força da História e da paradoxal atitude do homem – o qual ingenuamente ainda pensa ser o que não é, dono da razão, portanto senhor e dono – resta-nos o riso. As perdas e as aventuras deste herói, que ainda se acredita dono das próprias ações, só podem participar das páginas da comédia. Mas antes de tudo, uma comédia que não requer o riso solto ou efusivo, nem o riso desafiador do Burlador de Sevilha que nos foi apresentado no século XVII por Tirso de Molina.

Embora não seja considerado integralmente um Don Juan, este “ego experimental” se afirma no conjunto da obra como uma primeira inversão paródica do donjuanismo, fazendo circular diante de nossos olhos infinitas possibilidades de saberes sobre o humano. Circunstâncias epistemológicas que, embora toquem nossa sensibilidade e alterem nossas e percepções no que diz respeito à condição humano no seio da História, permanecem no campo do “mais além” identificado por Octavio Paz que ao completar seu pensamento sobre o erotismo, afirma,

O corpo alheio é um obstáculo ou uma ponte; é preciso transpassá-lo. O desejo – a imaginação erótica, a visão erótica – atravessa corpos, torna-os transparentes. Ou os aniquila. Mais além de você, de mim, pelo corpo, mais além do corpo, queremos ver algo. Esse algo é a fascinação erótica, o que me tira de mim mesmo e me leva a você. Não sabemos com certeza o que é algo mais. Mais que a história, mais que o sexo, mais que a vida, mais que a morte. (PAZ, 1999, p. 34 e 35) (grifos do autor)

Aliando o riso ao erotismo, dois elementos próprios do humano, ao colocar em cena uma das primeiras variações donjuanecas, Milan Kundera quer reforçar o romance literário enquanto espaço privilegiado de conhecimentos sobre o homem. Por meio do exercício estético e epistemológico que evidencia na construção deste texto, Kundera trata a literatura como este corpo prenhe de desejos e de sentidos que, constantemente, a cada leitura, está a nos instigar a ver e a perguntar “O que eu posso saber?” E a cada lance, no sentido de formular conceitos palpáveis neste jogo literário, ele parece nos lembrar que, por ser estético, este jogo não depende de nós jogadores. Ainda que enquanto pesquisadores tenhamos consciência mais elaborada sobre nossas intervenções nesse jogo, não nos esqueçamos do que nos disse Gadamer, “o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam” (1997, p. 155), portanto, não sucumbindo, a qualquer determinação conclusiva de nossa parte, ele nos aponta para o “mais além” mencionado por Paz, esse “algo” que transpassa nossa capacidade intelectiva, mas que continua sendo condição para o conhecimento sensível, para que outros jogadores possam, infinitas vezes, retomar esse jogo.  

REFERÊNCIAS

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GADAMER, Han-Georg. O jogo como fio condutor da explicação ontológica. In. Verdade de método V. 1. Trad. Fávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, SP: Editora Universitária São Francisco, 1997.

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PAZ, Octavio. Um mais além erótico: Sade. Trad. Wladir Dupont. SP: Ed. Mandarim, 1999.

RICARD, François. Biographie de l’oeuvre – Risibles Amours Préhistoire tchèque (I) : L’âge lyrique. In. Oeuvre V. I. Paris: Ed. Gallimard, 2011a.

 

Submetido em 13/11/2017; Aceito em 30/01/2018


Notas

[1] O original deste estudo é parte constitutiva do V capítulo de minha tese de doutorado, que sob o título “A obra romanesca de Milan Kundera: um projeto estético conduzido pela ação de Don Juan”, foi defendida em 2013 no Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília – UnB. Embora tenha sofrido algumas adaptações para esta publicação, a parte central dele permanece como fora apresentado na tese.  

[2] Ninguém vai rir

[3] Ainda que os estudos recepcionais sejam de nosso interesse no que se refere às reflexões sobre o leitor e suas relações com o texto literário, nossas perspectivas de análise deles se distanciam na medida em que entendemos ser o autor e o processo de criação importantes referências no campo das análises literárias.

[4] Risíveis amores

[5] A brincadeira

[6] Em geral, a disposição dos contos no interior deste livro sofreu algumas alterações no transcurso do tempo, mas reconhecendo a importância de Risibles amours para o conjunto da obra kunderiana não nos será permitido negligenciar as orientações do autor uma vez que não se trata de capricho, mas de um proposito estético, nem sempre levado em conta pelos editores. Assim, mesmo utilizando como referência os textos publicados pela Editora Gallimard, optamos sempre por realizar a caminhada pela obra seguindo a de Kundera que, segundo o comentador François Ricard, assim recomenda: Personne ne va rire, la pomme d’or de l’éternnel désir, Le Jeu de l’auto-stop, Le Colloque, Que les vieux morts cèdent la place aux jeunes morts, Le docteur Havel vingt ans plus tard, Édouard et Dieu.

[7] Conforme Kundera, trata-se de uma tipologia romanesca que se opõe à designação de Romance filosófico atribuída pelos críticos no século XX. A diferença reside no fato de que esta categoria romanesca não almeja a filiação a qualquer corrente filosófica já existente, por conta própria, ela pratica a filosofia dentro do romance, o que não inviabiliza o diálogo com correntes filosóficas, mas de modo algum se subordina a elas.

[8] A maçã de ouro do eterno desejo

[9]como é possível que a vida em nosso país o incite somente a beber e seduzir mulheres?

[10] Esteja certo de que faremos com que nossa opinião a esse respeito seja conhecida por quem de direito.

[11] Naquele dia marcara encontro com ela em frente de uma igreja. Não em casa, não. Pois a casa seria casa? Uma peça com as paredes de vidro pode ser ainda uma casa? Um lugar que os observadores vigiam de binóculo? Um lugar onde você deve dissimular, como uma mercadoria de contrabando, a mulher que ama? 

[12] Transparências do romance

[13] Viver sob os olhos de todos

[14]Por mim, continuarei a habitar minha casade vidro, de onde se pode ver a toda hora quem vem me visitar, onde que está suspenso no teto e nas paredes se sustenta por encantamento, onde repouso a noite sobre uma cama de vidro, ao leito de vidro, onde quem eu sou me aparecerá cedo ou tarde, gravado à diamante. 

[15] É importante lembrar que a paixão e a magia presentes em Breton são decorrentes de sua filiação ao Surrealismo, que ele mesmo ajudou a fundar. E não esqueçamos que o Kundera poeta nasceu impulsionado pelos ideais surrealistas. Por isso, a necessidade de compreendermos o tempo e o espaço de discussão do Kundera romancista.

[16] palavra largamente utilizada por Kundera nas narrativas constitutivas de La plaisanterie (A brincadeira)

[17] Helena é uma das personagens mais ironizadas e ridicularizadas no conjunto da obra romanesca de Kundera. Notadamente isso se deve a sua filiação irrestrita e irrefletida ao pensamento e ao modelo político conduzido pelo totalitarismo comunista.

[18]só o burguês na sua impostura se divide em um ser público e um homem privado.

[19] No discurso político e jornalístico, esta palavra quer dizer: revelação da vida dos indivíduos ao olhar público. O que nos remete a André Breton e seu desejo de viver em uma casa de vidro sob os olhos de todos. A casa de vidro: uma velha utopia e ao mesmo tempo um dos aspectos mais terríveis da vida moderna. Regra: quanto mais opacos são os negócios do Estado, mais transparentes devem ser os negócios de um indivíduo; a burocracia, embora represente uma coisa pública, é anônima, secreta, codificada, ininteligível, enquanto o homem particular é obrigado a revelar sua saúde, suas finanças, sua situação familiar e, se o veredito midiático decidiu, ele não mais terá um só instante de intimidade nem no amor, nem na doença, nem na morte. O desejo de violar a intimidade alheia é uma forma imemorial da agressividade que, hoje, está institucionalizada (a burocracia com suas fichas, a imprensa com seus repórteres) normalmente justificada (o direito à informação tornando-se o primeiro dos direitos do homem) e poetizada (pela bela palavra: transparência) –Tradução em conformidade com a tradução para o português aqui utilizada como referência (1988, p. 132-133).   

[20] A insustentável leveza do ser.

[21]como intrusos que são introduzidos em território estrangeiro, correndo o risco de a qualquer momento ser atacados; perdíamos nosso sangue frio logo que ressoavam passos no corredor; esperávamos que a qualquer momento alguém batesse com insistência na porta.

[22]em um apartamento emprestado, sinto-me uma puta.

[23] O livro do riso e do esquecimento

[24] A litost é um estado de tormento nascido do espetáculo de nossa própria miséria subitamente descoberta

[25] Compreendia de repente que de minha parte era apenas uma ilusão ter imaginado que nós mesmos selávamos o cavalo de nossas aventuras e que dirigíamos nós mesmos a corrida; que essas aventuras talvez não fossem absolutamente nossas, mas talvez impostas do exterior, de algum modo; que não nos caracterizavam de nenhuma maneira; que não somos nada responsáveis pelo seu insólito percurso; que elas nos arrastam, sendo elas próprias dirigidas não se sabe de onde por não se sabe que forças estranhas.

[26] Precisei ainda de um momento para compreender que minha história (apesar do silêncio glacial que me cercava) não é do gênero trágico, mas de antes cômico. O que me proporcionou uma espécie de consolo.  

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