O kitsch como um mal ético: observações sobre o antagonismo estético na literatura de Glauco Mattoso

O kitsch como um mal ético: observações sobre o antagonismo estético na literatura de Glauco Mattoso

Ana Paula Aparecida Caixeta[1]

[1] Universidade de Brasília (UnB


RESUMO:

O espaço ocupado pela literatura se vale da estética na busca por questões da forma e do conteúdo, com destaque pela linguagem que ali opera. Em Glauco Mattoso, sua obra é composta por discursos que evidenciam a escatologia, enquanto excremento, ao passo que a preocupação com o processo de criação, os temas transgressores e a recepção impactante de seus textos ampliam perspectivas de seu antagonismo. Neste caso, marcado por uma estética contrária às definições de kitsch, em que a escolha do escritor não é uma felicidade sensorial ou uma literatura agradável, suas etapas processuais transitam pela contramão, indo ao encontro da abjeção e do politicamente incorreto, muitas vezes eticamente condenável, mas esteticamente compreensível como denunciador de questões da condição humana. Para dar conta dessa discussão, a escolha de análise busca amparo no norteamento da Epistemologia do Romance, que conduz a pesquisa literária por três vieses, um deles, a estética.

Palavras chaves: Glauco Mattoso; Estética; Kitsch; Epistemologia do Romance


ABSTRACT:

The space occupied by literature uses the aesthetics in the search for questions about form and content, with emphasis on the language that operates there. In Glauco Mattoso, the work is composed of speeches that show eschatology as excrement. The preoccupation with the creative process, the transgressor themes and the impressive reception of his texts amplifiy the perspectives of his antagonism. In this case, the work of the author is marked by an aesthetic contrary to the definitions of kitsch, in which the choice of the writer is not a sensory happiness or a pleasant literature. His procedural steps wander in the opposite direction, encapsulating the abjection and the politically incorrect, often the ethically reprehensible, but aesthetically comprehensible as an exposition of questions of the human condition. To accomplish this discussion, the analysis choice seeks support in the direction of the Epistemology of Romance, which leads to literary research by three biases, one of them the aesthetics.

Key words: Glauco Mattoso; Aesthetics; Kitsch; Epistemology of Romance


Introdução

“O kitsch é o mal no sistema de valores da arte.”
Hermann Broch

Um dos elementos estéticos que mais se destaca na escrita de Glauco Mattoso[2], para além de sua irreverência, é a releitura da antropofagia oswaldiana a partir do que entendemos ser uma desconstrução da ideia de kitsch. No contexto do escritor, esse momento aciona a “merda” como elemento central de uma (re)significação do homem, representado pela linguagem escatológica[3]: “A merda é mais universal que o Esperanto. As bocas têm muitas línguas; o cu apenas uma.” (MATTOSO, 2001, sem indicativo de página). Já no que diz respeito ao conceito de kitsch, a afirmação de Kundera (2008), que o define como a ocultação da “merda” no contexto da condição humana, é a que mais dialoga com as considerações sobre a obra de GM.

Escritor ainda ativo e criador de dezenas de títulos, suas publicações operam livremente entre gêneros textuais, com destaque para a relação palavra-imagem, principalmente na sua fase definida como visual. Com dois momentos distintos em sua trajetória literária, Mattoso, até início dos anos 2010, defendia duas fases de escrita distintas: visual e cega. A visual destaca-se por, evidentemente, marcar o período em que o escritor ainda enxergava e mantinha um diálogo constante com a poesia concreta e a ilustração, observada nos títulos Jornal Dobrabil (2001), Revista Dedo Mingo (sem indicativo de ano de publicação); Memórias de um punheteiro (1982), Línguas na Papa (1982) e As aventuras de Glaucomix (1990). Quanto à fase cega, seus esforços se direcionaram para a escrita de sonetos, com exímia técnica mnemônica. GM é um dos autores que mais publicou sonetos na história da poesia metrificada, alcançando o número marcante de 5.555 sonetos.

O que justifica a feitura deste trabalho é a constante escolha do escritor por elementos que corroboram para uma escrita escatológica, marcante pelo excesso de palavrões e conotações sexuais aplicadas de diversas maneiras, formando parte de uma estética poderosa, pelo efeito que provoca; transgressora, por romper com o preciosismo literário, principalmente quanto à escrita em sonetos. A produção poética e narrativa do escritor percorre caminhos pautados numa revisitação e intertexto, ou memória literária, aos autores que comungam de suas temáticas desconcertantes. Com destaque para Marquês de Sade, Bocage e Gregório de Matos, a literatura caracterizada como fescenina faz parte de seu processo criador.

Pensar em elementos estéticos é uma das ações propostas pelos estudos da Epistemologia do Romance, em que três etapas norteadoras da leitura do texto literário são baseadas em disciplinas filosóficas importantes no que tange a teoria e análise literária: a estética, a epistemologia e a hermenêutica. (BARROSO, 2003)

Dessa feita, optar pelo caminho da estética parece o mais viável quando a escolha é o olhar epistemológico, haja vista que a escrita glaucomattosiana, baseada em uma construção que valoriza a forma (enquanto linguagem verbal e visual), o conteúdo (enquanto temáticas desconcertantes) e a recepção (enquanto renegação), condiciona as percepções aqui debatidas, principalmente quanto ao embate contra a censura da linguagem e o controle de discursos. Isso é fortalecido no momento em que se retomam as discussões de Michel Foucault (1984), quando discorre sobre questões do corpo, do conhecimento e da escrita de si, evidenciados em discursos transgressores, principalmente pelo discurso sexual, bastante evidente nas obras glaucomattosianas. 

Alcançar o kitsch por meio desse caminho epistemológico, aqui assumido como estético, ocorre junto aos diálogos permitidos entre aquilo que Milan Kundera aponta como “atitude daquele que quer agradar a qualquer preço” (2009, p.150) e o antagonismo de Mattoso, ao desagradar a qualquer preço. Dessa forma, o escritor paulistano assume-se como um antikitsch: alguém que não esconde a “merda”. Ao contrário, a evidencia sem pudor.

Kitsch: a linguagem da beleza contrariando a condição humana

O kitsch é uma falsa harmonia. É uma falsa arte para um fim estético. Contrariá-lo é assumir a desarmonia, é assumir, num viés glaucomattosiano, a sua coprofagia: estética baseada na “merda”, na abjeção, no desejo áspero por sensações inusitadas, como o prazer em lamber pés masculinos sujos ou por excrementos do corpo em sua degradação e exposição do baixo ventre.

Consultando o dicionário literário, a definição de kitsch é dada como de origem incerta. Entretanto, baseando em diversas percepções teórico-filosóficas, Moisés a define, resumidamente, como

a arte de mau gosto ou de gosto duvidoso, para atender à expectativa de pessoas menos exigentes ou de sensibilidade pouco desenvolvida, identificadas com a classe burguesa (...)

A imitação, no sentido baixo de cópia, é seu fundamento básico.  (MOISÉS, 2013, p. 263)

Umberto Eco, em Apocalípticos e Integrados (1976), traz a ideia de kitsch como uma forma pomposa de “uma cultura de massa e de uma cultura média, e consequentemente, de uma cultura de consumo.” (1976, p.73) O escritor comenta a estrutura do mau gosto, trazendo, dentre alguns autores, Hermann Broch, como um dos formuladores do conceito de kitsch, o qual defende que é impossível a arte existir sem a presença do kitsch. Segundo Eco, Broch defende que essa estética é o

...que produz efeito naqueles momentos em que seus consumidores desejam, efetivamente, gozar efeitos, ao invés de empenharem-se na mais difícil e reservada operação de uma fruição estética complexa e responsável. (BROCH apud ECO, 1976, p. 74)

Já de acordo com Milan Kundera, em seu romance A insustentável leveza do ser (2008), kitsch é uma palavra alemã “que apareceu em meados do sentimental século XIX e que em seguida se espalhou por todas as línguas. Mas o uso frequente do termo apagou seu valor metafísico original.” (KUNDERA, 2008, p. 244)

Nossa compreensão do valor metafísico dado ao kitsch por Kundera dialoga com aquilo que Arthur Schopenhauer discorre em Metafísica do Belo (2003), em que a metafísica, como expressão da vontade, dá-se pela representação racional do sensível, que busca dar forma e compreensão a essa vontade, ao passo que também é modificada por ela.

A definição trazida por Kundera é a que mais se aproxima da ideia da desarmonia estética construída por Glauco Mattoso, pois sua escrita aponta aquilo que é abjeto, logo, negado e ocultado, transgredindo com as possibilidades de eufemização e harmonia, esteticamente presentes na escrita literária kitsch, em que a estrutura romântica dá forma, cuja pretensão é proporcionar o efeito estético agradável. Mattoso contraria esse processo e desestabiliza o espaço de estilo da arte literária enquanto objeto aprazível, para algo incômodo e categoricamente marcado pela presença da merda.

Por abjeção, o conceito aqui trabalho é procedente dos estudos da teórica e psicanalista francesa Julia Kristeva, em seu livro Pouvoirs de l’horreur (1980). Kristeva depõe sobre um sujeito que busca, pela linguagem, aquilo que é posto de lado e ignorado pelo contexto social, principalmente quando ligado às questões do humano, que são negadas e negligenciadas.

A palavra abjeção tem origem latina ‘abjetum’, cujo significado é baixeza, aviltamento. O termo também sintetiza aquilo que deve ser desconsiderado, jogado fora, excluído por ser nojento, deplorável e imundo.

Kristeva (1980) nos permite pensar na abjeção como a lacuna entre o significante e significado, que se utiliza da linguagem para dizer o indizível. Para a teórica, quem dá conta dessa lacuna é o conceito de desejo defendido Jaques Lacan, que o define como falta[4]. Partindo do ponto de vista da semiótica, Kristeva pensa na abjeção como espaço de limbo entre o processo linguístico de significação das coisas. Para ela, abjeção parte dos princípios da castração e sublimação freudianas.

Em Glauco Mattoso, embora cientes da grandeza desse viés de análise, não abordaremos a questão do desejo como falta, no sentido lacaniano, nem como o processo de sublimação freudiana por meio da arte, haja vista que nosso propósito não é um estudo literário pelo viés psicanalítico, mas estético. A pretensão aqui está em compreender como o processo consciente e sensível de criação do autor são denunciados pelo texto literário e seus elementos transgressores, dando forma a uma escrita desconcertante e, ao mesmo tempo, perspicaz, pois inverte valores e conceitos legitimados, como o da antropofagia oswaldiana, por exemplo. Trazer à tona o conceito de abjeção é permitir o debate sobre o não-dito; de buscar nos espaços negados socialmente, toda e qualquer significação que possa ser representada pela arte. A criação literária de Mattoso traz a palavra negada para o espaço primário, encarando o efeito gerado pelo impacto de sua escolha abjeta, assumindo funções e desejos do corpo como enfrentamento da angústia da condição de cego.

Como condições que fazem parte da formatação estética do escritor escatológico GM, tem-se a cegueira e a homossexualidade. Estas duas características são evidenciadas aqui porque fazem parte do discurso do escritor, insistentemente confessional e autoescarnecedor. Mas não em prol de um “coitadismo” ou inferiorização vitimista, mas por escolha sadomasoquista que lhe permite um controle de seus desejos confessados enquanto taras realizadas diante da humilhação. Numa inversão de dor e sofrimento para fetiche e gozo, aquilo que o compõe enquanto sujeito de uma escrita autobiográfica é fortemente reverberado em força estética, para recepção e efeito.

Segundo Hegel,

São mais estreitas as relações entre o sensível e a vida interior do homem, a que também se pode chamar espírito. O aspecto natural do espírito, ou o sensível, existe para o desejo. Temos precisão de objetos exteriores que consumimos e para os quais nos comportamos de um modo negativo. A relação estabelecida pelo desejo é a de um individual para um individual, é uma relação em que o pensamento não interfere e que não provém de uma determinação geral. O individual perante o individual só se conserva mediante o sacrifício do outro. O desejo devora, pois, os objetos, caso em que não existe nada mais do que um interesse isolado. Os objetos a que o individual se refere são sempre individuais, concretos (...) (HEGEL, 2009, p. 56)

O espírito consiste na consciência que constitui a aparência dada ao objeto de arte, pelo processo de manifestação sensível da ideia. O processo de criação por uma representação abjeta é transgressor, pois não respeita os limites e se propõe ambíguo e paradoxal. Para Kristeva (1980) não será a falta de higiene ou de saúde aquilo que define o desprezível, mas, sim, o que perturba e desestabiliza sistemas, discursos, identidades e ordens. Ou seja, assumir o abjeto é assumir um descompromisso com regras, lugares, limites, definições. Para tanto, a linguagem abjeta é dotada de ambiguidade, de variações e, consequentemente, de uma liberdade.

A linguagem abjeta proposta por Kristeva tem relação com o critério da diferença, cuja exploração se dá por meio do rompimento com o harmônico estético, desestabilizando critérios de contemplação do objeto. Nesse contexto, não é necessariamente a ausência de critérios organizados, mas o desconforto trazido pela sua representação de sentido, indicado pela fragilidade dos significados e exploração da linguagem pela arte. Kristeva pensa o abjeto como algo que obriga, por um momento ritualístico, a construção simbólica da margem em relação ao legítimo.

A merda enquanto performance literária

Trazer a “merda” como uma contrariedade ao kitsch é um motivo para evocar as discussões de Hermann Broch, a fim de se compreender o porquê de afirmarmos que Glauco Mattoso é um “antikitsch”.

Generalizando, quando se fala em kitsch, pensa-se, não só na arte, mas em algum objeto de mau gosto, brega e até inútil. Seu conceito geral está muito mais próximo do produto, do designe, que, especificamente, da arte literária enquanto objeto artístico, desconsiderando totalmente seu processo.

Lipovestky e Sorry (2015) vão tratar desse fenômeno como a lógica da competição e do excesso, cujo avanço estético se realiza no kitsch. Já Abraham Moles, em O Kitsch (1972), propõe a gênese desse conceito como exemplo de alienação por meio de sua inserção e seu funcionalismo na forma de vida do indivíduo. Para ele, o kitsch deixa de ser um “valor” ou atributo artístico para ser um valor estético. O autor aponta essa estética como caráter de consumo, haja vista que a essência do kitsch está nas coisas, enquanto objetos, associada a uma “arte da felicidade”. Existem três distinções tipológicas do kitsch, aponta Moles: as situações kitsch (arte religiosa, arte de apartamento, decoração, etc.); os atos kitsch (industrialização de souvenir, artesanato); e os objetos kitsch (sedimentares, transitórios, permanentes) (MOLES, 1972, p.50-51). Em todos os tipos, o objeto, enquanto coisificação kitsch é questão central de Moles. Reduzir um conceito ao objeto concreto e simples faz da estética kitsch uma característica de estilo. Desse modo, Moles tem o kitsch, também, como uma “maneira de ser” (1972), já que acontece por um fenômeno social e cultural.

Walter Benjamin (1994) e Theodor Adorno (2002) também abordam o conceito em seus estudos sobre indústria cultural, ambos compreendendo que esse sistema estético é oriundo de uma nova sociedade capitalista, cuja arte não mais é componente da “aura”, defendida por Benjamin, mas saciadora da cultura de massa.

Hermann Broch, em Espírito e espírito de época – Ensaios sobre a cultura da Modernidade (2014), contextualiza historicamente o advento do kitsch a partir do final do século XIX e início do século XX, momento marcado pelo processo da revolução industrial e tecnológica. Nesse mesmo tempo, a arte deixa de pertencer à religião como sua principal fruidora e legitimadora, embora caminhasse em direção à ideia de “arte pela arte”.

Na tentativa de expressar a ética daquele tempo, a arte começa a ganhar autonomia e a exigir um espaço único no verdadeiro e absoluto, revisitando os conceitos e valoração, antes emitidos pela Igreja. Durante séculos, a humanidade viveu um contexto de obrigação e anulação de si sob os dogmas da religião, submetendo-se aos seus preceitos, valores, técnicas e conformidades. A autonomia, intensificada pela ideia de arte pela arte, registra um novo sistema de representação, cujo efeito, não mais definido pela Igreja, passa exigir um resultado além do estético: o harmônico.

Quando se fala em perda de validade da arte, contempla-se apenas um dos polos, o polo do bem, ou seja, aquele conceito de arte conforme foi compreendido – aliás, compreendido com razão – ao longo dos séculos. Pois, em épocas de posturas de valores isolados, com mais facilidade do que em um presente que sucumbiu à anarquia de valores, com mais facilidade mesmo que a tensão entre os polos do bem e do mal tenha sido substancialmente menor. Sabia-se o que devia se entender por arte, e o que se entendia por arte era boa arte. (...) No entanto, o mal na arte é o kitsch. (BROCH, 2014, p. 11)

Embora a arte firmando esse compromisso com ela mesma, os sistemas de valores empregados ainda estavam pautados no princípio do Belo (beleza ideal) e harmônico, cujas metas de exigência do estético passaram a exigir valores automáticos, manipulados, e principalmente, irracionais – haja vista que a assimilação e interpretação da arte não eram condições para se vivenciá-la, numa tentativa de anulação do conflito e de reflexão daquele que experiencia a obra de arte.
Para Broch,

...o estético, de modo geral e como expressão da mais elevada meta de valores de um sistema, pode apenas dar entrada na condição de efeito secundário automático no resultado da ação ética, exatamente como a “riqueza” não é o objetivo principal, mas sim o efeito secundário da ação comercial isolada. (BROCH, 2014, p. 21)

Mais do que um fenômeno de exigência e validade geral, a arte em consonância com a ética ampliava o valor no trabalho bem feito como forma de alcance legítimo do Belo, em que a técnica é convertida em um valor de bem. O estético, como expressão mais elevada enquanto valor artístico passa a não ser mais o foco, mas sim, o efeito estético que o objeto causa, passando-se a pensar a arte a partir do que ela pode causar e não ela em si mesma. Valores éticos encobriram a consonância de uma arte autônoma, impedindo-a de ser verdadeiramente livre enquanto criação, contemplação, experimentação e transformação.

A partir da interferência na manipulação do efeito estético, começa-se uma imposição ética de valores, por meio da arte.

Mas o que significa aquela exigência feita à arte de trabalhar “bem” e não “belamente”?(...) como essa ideia de autonomia o valor assumiu uma irmandade tão estreita com a verdade, a ponto de o desenvolvimento autônomo do sistema de valores carregar o selo de uma veracidade interna, pode-se defender muito bem a opinião de que a verdade na obra de arte possui uma importância que no fundo foi sempre imaginada: trabalhar “bem” deve poder ser o posto em relação determinada com o caráter de reconhecimento da arte, com aquela revelação de novos conhecimentos e novas formas de ver e observar, que empresta não apenas às artes plásticas ou à poesia, mas inclusive a todo o âmbito do artístico o caráter de conhecimento geral. (BROCH, 2014, p. 22)

A ideia de bem ético como valor passa a representar um trabalho bem feito pela técnica, logo, pelo racional, em que se é possível construir uma estética harmônica (dentro dos princípios do Belo, num contexto ainda clássico), cujos valores carregam em si a ideia de verdade universal. A necessidade subjetiva de, por meio da obra de arte, resolver seus conflitos, é explorada de modo categórico em busca de uma satisfação que não é objetiva, mas libertadora e confortante, dentro de um espaço legitimado como verdadeiro. Por esta razão, segundo Broch, a arte passa ser, então, um elemento de valor. Quando definida como arte, logo é valorizada e categorizada. Isso a converte em acessório estético, em que elementos da realidade são esteticamente trabalhados e convertidos em algo dotado de valor eticamente aceitável. 

Dialogando com Lipovetsky e Serroy (2015), a estetização do mundo como forma de organizar as relações sociais pela arte gerou um comportamento pautado numa sociedade capitalista, em que a arte deixa de ter um fim em si mesmo e passa a ser um adjetivo. Dessa forma, o hiperconsumo de objetos artísticos (inclui-se aí comida gourmet, restaurantes, lojas e espaços “artisticamente” trabalhados, tal qual roupas, celulares e objetos diversos) dá existência a um ser “drogado de consumo”, exigente de efeito estético, devorador do descartável e desejoso de divertimentos e alegrias efêmeras.

A liberdade criativa exigida não é livre, pois está ligada ao sistema de valores no qual repercute, pois “... é o pensamento de sistema próprio que domina qualquer sistema de valores” (BROCH, 2014, p.24). Dessa forma, cria-se a necessidade de trazer o subjetivo e o onírico para a realidade dentro de um pensamento de sistema representado harmonicamente. Os séculos XX e XXI não buscam nos objetos de consumo uma reflexão dolorosa sobre questões da condição humana, mas uma utopia de valores universais eticamente construídos, provocadores de boas sensações.

Entretanto, afirma Broch, o estético busca a arte pelo ético, já que a obra é absoluta, confortando no visível o invisível, permitindo o trânsito livre entre presente, passado e futuro; entre o conservador e o revolucionário. Mas o valor está ligado ao ético e, independente de qual sistema de valoração ele parta, sua intenção é buscar um infinito e absoluto, pois os princípios éticos querem partir de absolutismos. Porém, nada é absoluto e finito, já que as coisas tendem ao infinito e, consequentemente, à pluralização. O ético passa a ser constituído pela busca e necessidade desse absoluto, embora envolto de negações, justamente para restringi-las. Dessa feita, ter-se-á o domínio de sistema de valores pautados em sistemas éticos e determinantes da arte no início do século passado, condutores do papel da arte no tempo presente.

A busca pelo desvalor, ou pela autonomia de valores, definidor de cada sistema, passa a determinar o que é bom e mau, mantendo a lógica ética de sistemas de valores verdadeiros pautados em princípios morais e definidores do maniqueísmo bom vs. mau. Contrapondo a estética como elaboração por meio do sensível, cuja pretensão se baseia na busca de liberdade e autonomia, sua representação acaba sendo construída em um sistema de valores externos, impedindo qualquer movimento livre de sua realização e experiência do sujeito.

Quando não é o artista que se embasa nesses sistemas de valores, é o espectador quem faz essa captação e joga para dentro do seu sistema individual de valor (um sistema compreendido por ele como absoluto e infinito, logo, verdadeiro), toda sua relação sensível com a obra, reivindicando validade única e universal. Ao que fica fora do sistema, não se pode atribuir juízo de valor (embora se busque sempre o enquadramento); ou seja, aquilo a que não é atribuído um valor é definido como algo de desvalor, gerando, segundo Broch, uma guerra de sistema de valores isolados (2014, p. 30). Dessa forma, a autonomia passa a ser condicionada por estruturas:

A intervenção na autonomia: essa formulação do “mal” é independente da natureza conteudística do respectivo sistema de valores, ela é meramente condicionada pela estrutura, e se a intervenção no comando autônomo de um sistema de valores pode ser caracterizada como a essência do “dogmático”, o dogmático é o “mal” por excelência. (BROCH, 2014, p. 31)

Para Broch, o mal é o sistema oposto ao sistema de valores determinados e impostos. Mesmo sendo o oposto, ele não é externo. É só o contrário e depende do sistema de valores para existir. O mal, o contraditório, não é oposto do absoluto, do valor verdadeiro, pois um está no outro.

Esse movimento gera a inversão do que é ético em estético, pois exige da estética um efeito, em que a ética deixa de ser um conhecimento de valor e passa a ser representação estética. Enquanto sistema de valores, a ética é infinita e verdadeira; enquanto estética, é finita, representada no plano material.

Quanto ao efeito estético, na arte, busca-se uma meta infinita: “o verdadeiramente estético”, o sensível. Automaticamente, busca-se alcançar a meta infinita por meio de um “bom” efeito estético. Nesse contexto, o irracional na arte acaba sendo levado pelo efeito, ao racional, e próximo eticamente do contemplador. A liberdade e a autonomia partem de valores falsos, moldados a partir de um passado sistemático de valores. Consequentemente isso pede uma exigência estética que caminha ao encontro da arte kitsch.

...a “exigência” estética se fundamenta naquilo que foi, no passado por excelência, que ela transforma em meta de valores, a uma meta de valores “falsa”, que ela eleva a um sujeito de valores falso, a um anti-Deus, portador do mal, cujas exigências antiéticas intervêm no desenvolvimento vivo de um sistema original e em sua liberdade autônoma. E justamente por ser a “exigência estética” que assim repercute, é que o kitsch é convocado, na condição de fenômeno estético em sentido estrito, a se tornar representante do mal ético. (BROCH, 2014, p. 37)

O kitsch como a representação do mal ético é dogmático e arbitrário e traz para o efeito a finitude da representação, que está diretamente ligada a sistemas de valores universais, e não individuais. O kitsch parte do efeito estético para um efeito ético do mal (o ético dogmático, definido, completo, restrito), tornando-se, em partes, tendencioso e engajado. Broch afirma que  “a essência kitsch é a troca categórica pela categoria estética” (2014, p. 40), em que o que importa é o belo efeito causado pela arte kitsch e não o objeto em si.

Compreendemos que, para Broch, o kitsch busca elementos repetidos, enquanto forma de imitação, mas evita uma reflexão profunda de aspectos da condição humana, principalmente em consonância com um passado (nostálgico) e um futuro (idílico). Ele é o mal ético porque imita uma representação de valores e foge para esse idílio-histórico, espaço irracional de sensibilidade imediata, ausente de reflexão e enfrentamento. Dessa forma, tem-se o kitsch como total anulação do passado e do futuro, numa troca do finito pelo infinito.

Na sua fuga para o irracional, o kitsch converte sua estética em ética, dominado por sistemas de valores dogmáticos, ditados por algum discurso emergente: religioso ou político, por exemplo.  Dessa forma, ele é conduzido à satisfação dos instintos, numa busca eterna pelo harmônico, porém, imitando elementos e manipulando-os, num movimento de conforto na relação entre a obra e aquele que a aprecia. O mal do kitsch não é a negação do bem, mas sua imitação. A imitação acaba por se tornar uma ação destoante, já que rompe com o ético e, paradoxalmente, torna-se mal por excelência, mas, em contrapartida, exerce sua principal função: a manipulação do efeito estético.

Mas o que seria a “merda” no contexto da criação artística/literária de Mattoso? A “merda” é o que une a humanidade aos animais, bem como às questões que são próprias da condição do ser, mas que coloca o sujeito no lugar de protagonista de suas próprias ações, boas ou ruins. Dirá o heterônimo de GM, Pedro o Podre: “A merda dos grandes homens é sempre maior, mais fedida e, o que é pior, acaba entupindo a privada.” (MATTOSO, 2001, sem indicativo de página).

Maria Veralice Barroso, ao se debruçar sobre a obra de Milan Kundera, traz em sua tese algumas reflexões sobre o kitsch a partir da “merda” e suas aproximações com o conceito de idílio. De acordo com ela, Kundera, ao tratar de questões do humano, afirma que isso só pode ser possível através do romance, pois é no espaço da narrativa literária que é permitido o distanciamento das ingenuidades idílicas e confortantes de um futuro idealizado em negação às angústias do presente.  

Para Kundera, a “merda” é tudo o que é humano. Desse modo, o escritor enfatiza a dicotomia entre o ser humano e o criador; entre o perecível e o eterno. Enquanto Deus é a perfeição, já que é responsável e tem o domínio de tudo o que cria, também provoca “a incompatibilidade entre a merda e Deus” pois, se o Homem é a imagem e semelhança de Deus, ou Deus tem intestino e defeca ou o Homem não se parece com Deus (2008, p.241). E quem assumirá um deus que “caga”?

A merda é um problema teológico mais espinhoso que o mal. Deus deu liberdade ao homem e, portanto, podemos admitir que ele não é o responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, e somente a ele. (KUNDERA, 2008, p. 241)
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Segue-se que o acordo categórico com o ser tem por ideal estético um mundo onde a merda é negada e onde cada um de nós se comporta como se ela não existisse. Esse ideal estético chama-se kitsch. (KUNDERA, 2008, p.243-destaque do autor).

Barroso aponta esse acordo representativo de uma estética que constrói “a ilusão de um mundo paradisíaco sem contradições, desacordos ou dúvidas. Especialmente a atitude kitsch procura criar esteticamente um mundo sem excrementos” (2013, p.73).

Em a Insustentável leveza do ser (2008), a ideia do kitsch explorada por Kundera nasce da evocação de Sabina, personagem do romance, que, enquanto indivíduo que omite seus sentimentos quanto ao ridículo em situação de prazer com seu amante Tomas, sofre pela percepção da busca e necessidade do superficial e esteticamente harmônico, representado pelo chapéu coco de seu avô. As lembrança e nostalgia de um outro tempo conduzem à ação kitsch, que se opõe ao presente e ao “real”.

O debate da objeção da merda enquanto ordem metafísica, proposta pelo escritor tcheco, imprime o kitsch como expressão sentimental de uma época. Dirá:

o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável. (KUNDERA, 2008, p.244)

O efeito contrário do kitsch na escrita literária é próximo à abjeção e obscenidade, já que consiste na exposição irrestrita de elementos do corpo, especialmente do baixo-ventre, em que o gesto estético se propõe como princípio da discussão desmedida entre questões de desvalor e “animalidade”. Mattoso diz que seu

(...) grande tema sempre foi a merda, mas foi uma merda muito consciente, quer dizer, uma merda dentro de todo um contexto de você mexer, inclusive, com valores literários. Metaforicamente, eu estava falando que muita coisa que se faz por aí é uma merda, entende? (MATTOSO apud SILVA, 2009, p.102)[5]

O ideal estético pensado por Kundera e contextualizado por Broch é o resultado da ação manipuladora do efeito estético, de forma a buscar, não só aceitação, como um julgamento ético positivo, condutor da relação entre sujeito vs. objeto, mas, principalmente, como negação de todo e qualquer conflito gerado por questões da condição humana enquanto representadas pela arte.

Glauco Mattoso, já em suas primeiras publicações, principalmente a partir da defesa firme da escrita coprofágica, rompe com a busca pelo “bom” ou “prazeroso” efeito estético, recondicionando as necessidades do leitor/fruidor para um processo muito mais humano, e por isso, incômodo, de relação com a obra, em que a reflexão de questões da condição não pode ser ignorada: cegueira, podolatria, masturbação, desejo pelo odor fétido do chulé, tortura, gozo... A transgressão do kitsch feita por Mattoso se dá a partir do momento em que ele traz à tona uma estética conduzida por temas inesperados, que são literalmente excluídos de alguma maneira nos mais diversos discursos, inclusive o literário.

A literatura, por carregar em si valores internos, não é passível de manipulação de efeito, a um primeiro entendimento. Contudo, ao se pensá-la como linguagem construída por uma estética, compreende-se que ela pode nascer do processo árduo de trabalho e conhecimento do escritor, que se propõe, muitas vezes, “dono” do que produz. O artista de objeto kitsch tem por trás da sua estética a intencionalidade, como forma de interferir na fruição do espectador e anular os efeitos da transformação. Quando se coloca o kitsch como uma estética manipuladora do efeito, o que está em jogo é a ideia da certeza de que essa escolha agradará o outro, sem que este queira questionar como ela foi escolhida, como foi criada e o quê, em sua essência, representa. O kitsch limita a capacidade interpretativa do homem, manipulando-o em seu processo de sujeito empírico, que deveria refletir ao experienciar a obra.

A arte, como expressão sensível humana, é capaz de ser livre, no contexto amplo da palavra, e representar, por alguma linguagem, uma estética produzida pelo criador da obra, seja ela visual, plástica, musical, etc. Enquanto manifestação sensível da ideia, pensando no que propõe Hegel, ela passa por um processo tanto sensível quanto racional para chegar em sua representação essencial, em sua gênese criadora. Como expressão, é também capaz de representar um indivíduo, uma cultura, uma religião e marcar determinantes que influenciam no conhecimento e, consequentemente, no julgamento a ser feito sobre tais aspectos.

Nesse raciocínio, é possível perceber que nem sempre a arte se propõe tão livre quanto parece ou representa, bem como não é, categoricamente, apenas uma expressão sensível do artista. A arte esbarra no kitsch e desconstrói a ideia de autonomia e de “arte pela arte”, aproximando-se da intencionalidade do objeto e massificação da interpretação.

Colocado como manipulador do efeito, o que é kitsch torna-se algo externamente agradável e harmonioso, dentro de parâmetros pré-estabelecidos, livre de julgamentos inesperados e controversos, formulados previamente pela necessidade de anulação do conflito gerado pela arte, logo, destituindo o objeto de capacidade transformadora. No kitsch, pensa-se, durante a criação, em como resolver o problema da fruição e do gosto, pois, mesmo sendo considerado a “arte do mau gosto”, ele não assume o mau gosto a priori. Só é de mau gosto quando alguém julga de mau gosto e esse alguém sabe (acredita saber) diferenciar o que é ou não kitsch. Pensando em caráter de consumo, quem compra o que é kitsch não tem noção de que aquilo o seja, pois adquiriu algo que esteticamente é agradável, é belo e já aceito, ou seja, legitimado de alguma forma. Isso reduz o adjetivo kitsch à negatividade.

Mattoso não produz uma literatura de fácil consumo, mas transgressora e marginal-erudita – seja pelo seu alto índice de referências literárias, filosóficas de da cultura musical underground, seja pela sua profissão de bibliotecário – que exige do leitor uma atenção maior para que consiga compreender o processo criativo do artista, bem como as pujanças de significação, eliminando o julgamento a priori. Nele, a transgressão é a (re)construção e (re)significação do que foi destruído, jogado fora, esquecido. É a criação a partir de dejetos expressados pelo interdito.
A abjeção no contexto humano acaba por ser negligenciada e sua invisibilidade (não só imagética, mas de discurso) ameniza os efeitos por ela causados. Há, constantemente e naturalmente, a ação de ocultar o que está ligado aos excrementos do corpo, ao que, para o corpo, é destoante e inaceitável: o mau cheiro proveniente de partes íntimas, secreções, fezes, urina, os desejos sexuais e tudo o que indica imperfeição, como a deficiência física e mental ou a pobreza, por exemplo. Tudo isso não tem espaço de discussão e, mesmo dentro da arte, acaba, por vezes, jogado no terreno do cômico e jocoso, já que é desprezível e precisa ser amenizado no espaço em que o cômico se faz capaz de eufemizar a abjeção.

Contraditoriamente, a “merda” é o que mais indica que o ser humano é humano. Portanto, negar a merda é negar o que é humano, e assumi-la é uma ação (ironicamente) desumana – mesmo sendo a mais humana possível. Por esta razão, Mattoso contraria a própria condição, pois nega o kitsch –  que ameniza qualquer forma do trágico pela arte, desconsiderando o conflito em busca de uma harmonia – e expõe aquilo que ninguém quer ver, ouvir, falar, refletir e, muito menos confessar.

Assumir o que é ocultado ou excluído é excluir-se, pois quem assim se posiciona, acaba por se enquadrar fora de um modelo já aceito, um modelo comum e confortável de fruição. A inserção de Mattoso no universo da escrita marginal se dá muito mais pela sua representação antikitsch do que pela ausência de reconhecimento e espaço no âmbito da literatura brasileira.
Quando ele escreveu seus manifestos no Jornal Dobrabil (2001), quando se autoficcionalizou no Manual do podólatra amador (2006), posicionando-se contra um ideal estético, ele expôs de maneira crua e deliberada tudo o que há de transgressor na linguagem, principalmente ao se utilizar de palavras incômodas, coloquiais, chulas, cuja carga semântica está completamente controlada por valores externos morais. Essa ação antikitsch, exercida por ele, contesta, por meio do que é natural e humano, dispensando o fantasioso e harmônico das palavras – sejam elas formais, científicas ou poéticas. Mattoso assume aquilo que uma estética kitsch encobertaria, ou seja, a verdadeira “merda”.

No Manual do podólatra amador (2001), texto que se propõe, inclusive, como paródia de “narrativas literárias de educação sentimental” (FOSTER in MATTOSO, 2006, p.11), toda a baixeza relacionada às mais profundas estreitezas e necessidades do corpo é colocada de modo sistemático e discutível, valorizando o orgânico por improváveis (ou indizíveis) angústias do indivíduo enquanto animal.  Mattoso afirma a “merda” crua e a promove como espaço mais propício para ser mostrar verdadeiramente humano.

A literatura glaucomattosiana permite colocar a “merda” como representação de questões legítimas em contrariedade a discursos oníricos, fantasiosos e até ideológicos. Da mesma forma, ela permite a magnitude criativa enquanto ação transformadora. A escolha por uma estética que descontrói o harmônico gerado pelo kitsch desestabiliza o papel das palavras, das ações e dessa arte parca, pois deixa o leitor em situação de desconforto, exigindo meios que deem conta de um processo interpretativo menos superficial e mais reflexivo. Essa dinâmica faz transferir para um mesmo plano aquilo que é incômodo e avassalador. Sendo assim, ela consegue argumentar, dependendo da intencionalidade do escritor, a favor ou contra a própria ideia de humano – este que falseia a si mesmo para efeito estético do outro.

Considerações finais

Wilton Barroso (2003), ao trazer uma proposta de análise do romance por meio da disciplina filosófica ‘epistemologia’, rompeu com padrões teóricos que ocupam o lugar rígido da teoria do conhecimento. Amparado por uma interessante discussão etimológica, em que os termos epistemology (inglês) e epistemologie (francês) apresentam sutis diferenças, o pesquisador permitiu um olhar para além de qualquer verdade absoluta e verificável: o espaço de conhecimento no romance. Compreendido por possibilidades de verdades, ou seja, elementos que se repetem em um dado conjunto de obra literária, essas condições contribuem para a construção daquilo que Barroso vai chamar de linha fecunda, intencional e nascida de que questões reflexivas do sujeito e sua condição no mundo, que ganham forma por meio da literatura.

Paulino (2006) atentou-se para os estudos da epistemologia do romance, ressaltando que, nesse processo de busca por elementos e possibilidades que compõem o romance, uma outra disciplina filosófica seria de fundamental importância: a estética. Para tanto, ele amplia o olhar da proposta barrosiana e sugere uma epistemologia com sensibilidade estética.

Barroso já esboçava certa preocupação com o estético, em seu primeiro texto de debate sobre a teoria, Elementos para uma epistemologia do romance (2003), a partir do momento em que a escolha foi justamente o objeto primeiro da estética: a arte – no caso, a arte literária. Ao se debruçar sobre a obra de Milan Kundera e Gustave Flaubert, Barroso levantou pontos interessantes e constatou que, enquanto um leitor atento – ou leitor perverso, como ele mesmo gosta de definir –, é possível chegar à gênese do romance ao garimpar vestígios deixados pelos autores. Esses vestígios são parte de um projeto maior que contribuem para a formação de um conjunto de obra que se mantém de pé, que se sustenta por ter como eixo uma ideia central norteadora.

Autores como o tcheco e o francês não escrevem por fruto de simples inspiração, mas por delimitações racionais que dialogam com questões para além do literário: essas questões observáveis por meio de uma leitura minuciosa, nascem da sensibilidade estética, mas buscam, após um processo natural de reflexão, condições provenientes da teoria literária, da história, da hermenêutica, e, consequentemente, da epistemologia.

A escolha desse caminho para tratar da literatura de Glauco Mattoso aconteceu principalmente por nos depararmos com um autor com grande conjunto de obra, em que elementos estéticos são repetidos com critérios meticulosos, corroborando para um gesto intencional do autor que fundamenta a ideia central de seu projeto estético maior. Até o momento, nossos estudos levam a crer que esse projeto glaucomattosiano acontece, em especial, sustentado por um forte discurso confessional que fomenta a figura autoral de GM dentro e fora do espaço literário.

Dado o recorte às discussões anteriormente trazidas, podemos assumir que o processo de investigação por meio da epistemologia foi de fundamental importância, seja por conduzir nosso olhar às nuanças da escrita literária por meio de um olhar sensível da composição da forma; seja por permitir compreender que a figura autoral e suas informações, embora enganem o leitor, nem sempre são descartáveis, pois funcionam junto ao discurso literário publicado; seja pela posição do leitor, que amplia suas expectativas ao assumir que os efeitos primários causados pela fruição de uma obra literária o mantém em um terreno ainda superficial, separando-o de um processo despretensioso a uma investigação quase arqueológica. Dessa forma, a consciência do processo de feitura da obra é o primeiro passo para uma análise de maior envergadura, que valoriza todas as instâncias e etapas que fazem parte do nascimento de um texto literário. Vale afirmar que a epistemologia não negligencia atores desse processo: nem autor, nem narrador, nem personagem, nem leitor. Nesse ponto, nada mais acertado para se debruçar sobre as várias instâncias composicionais de Mattoso, quando este decide pela escrita de si, pelas figuras heteronímicas, pela preocupação mnemônica, pela linguagem formal, dentre tantas outras intencionalidades, sustentar um discurso baseado na “merda”.

Os debates em torno da epistemologia do romance fortalecem discussões entre filosofia e literatura quando assumem, não uma hierarquia de áreas do conhecimento, mas possibilidades interpretativas e dialógicas diante das complexidades da arte, cujo compromisso único é com a estética que a compõe.

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Submetido em 01/10/2017; Aceito em 05/01/2018


Notas

[2] Abreviação: GM

[3] Escatologia, na literatura de Glauco Mattoso, é a adjetivação dada à sua escrita a partir da ideia de “excrementos”.

[4] Conceito não desdobrado neste artigo.

[5] Trecho de uma entrevista de Glauco Mattoso à Revista dos Bancários, disponível na tese de doutorado de Maria Aparecida H. da Silva, O des-curso Cínico, defendida em 2009. A entrevista estava disponível, anteriormente, no site pessoal de Mattoso, ligado ao provedor UOL, que retirou do ar em 2012, fazendo perder-se todo o conteúdo ali disponível.

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