Exílio, tradução e antropofagia na literatura mundial

Exílio, tradução e antropofagia na literatura mundial  

Alice Maria de Araújo Ferreira[1]

Tarsilla Couto de Brito[2]

[1]Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução, Instituto de Letras da Universidade de Brasília, UNB.

[2] Departamento de Estudos Literários, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, UFG, ORCID 0000-0003-1387-6880


RESUMO:

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir aquilo que poderia ser chamado de crítica do exílio, crítica fundamentada nos estudos de tradução. Partimos do conceito de Literatura Mundial, proposto por Goethe, que depende da tradução entre literaturas nacionais para realizar-se. A partir das concepções de tradução de Benjamin e Glissant, desenvolvemos uma reflexão sobre as fronteiras dos estudos literários e dos estudos de tradução na atualidade e verificamos a ressignificação da ideia de Literatura Mundial. Recorremos, então, ao conceito de Mundialidade de Said para chegar à metáfora do Exílio como prática de leitura literária atenta ao contato entre línguas sem cair, contudo, nos identitarismos que substituíram os nacionalismos ao longo do século XX.

Palavras-chave: Mundialidade. Tradução. Literatura Comparada. Crítica do exílio.


ABSTRACT:

The aim of the present article is to present and discuss that which could be called exile criticism which is based on translation studies. It stems from Goethe’s World Literature concept, which relies on translation between national literatures to take place. From Benjamin’s and Glissant’s translation concepts, we have carried out an analysis of the boundaries between literary studies and translation studies today, and we have verified a resignification of the World Literature idea. Thus, we have resorted to Said’s Worldliness concept in order to apprehend the metaphor of Exile as a literary reading practice, one that is aware of language contacts without giving in to, nevertheless, the identitarianisms that replaced nationalisms throughout the 20th century.

Keywords: Worldliness. Translation. Comparative Literature. Exile Criticism.


Nestes tempos, a literatura nacional não
quer dizer muito, a hora é a da literatura do mundo,
e cada um deveria contribuir para o seu desenvolvimento.

Goethe

[...] Nossa pátria filológica é a terra – a nação
já não pode sê-lo. É certo que a coisa mais preciosa e indispensável
que o filólogo herda é a língua e a cultura de sua nação;
mas é preciso afastar-se delas e superá-las para que se tornem eficazes.

Auerbach

O conceito de “literatura mundial” ressurge sempre que a globalização, entendida aqui como processo, nos instiga a uma nova reflexão. Partiremos das observações de Said sobre as transformações que a globalização dos movimentos migratórios produziu na universidade ocidental e, consequentemente, na forma dela produzir conhecimento, para desenvolvermos uma proposta de crítica literária que articula literatura mundial e tradução em um “novo” prisma, o do exílio.

A literatura mundial para Goethe designava um sonho de comunicação intercultural no qual a tradução desempenhava papel fundamental e ao mesmo tempo implicava uma crítica aos nacionalismos obscurantistas (ECKERMANN, 2004). Além de ter sido pauta em suas conversações com Eckermann, a temática da comunicação universal ganhou manifestação literária em Fausto, cujo personagem central pede a Mefistófeles o conhecimento total:

Meu peito, da ânsia de saber curado,
a dor nenhuma fugirá do mundo,
e o que a toda humanidade é doado,
quero gozar no próprio Eu, a fundo,
com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,
juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
e, destarte, a seu Ser ampliar meu próprio Ser,
e, com ela, afinal, também eu perecer.
(GOETHE, 1987, p. 85)

Fausto ansiava pela capacidade de sentir sem limitações, pelo conhecimento acumulado por toda a humanidade, que só uma literatura mundial poderia oferecer. O mesmo termo, "Weltliteratur", foi usado por Auerbach, para quem a literatura mundial correspondia a uma prática filológica em que o crítico literário tomaria o lugar do tradutor para, através de uma prática de leitura perspectivista, tornar os cidadãos do globo conscientes de si em sua própria história (AUERBACH, 2007). Vale lembrar que “consciência histórica”, e seus modos (por vezes contraditórios) de enredamento no texto literário, sempre foi para Auerbach a base para a elaboração estética ocidental, de Homero a Virgínia Woolf (Mímesis, 2011) - do que aproveitaremos a ideia de que a ideia de uma literatura mundial pressupõe uma discussão mais aprofundada sobre mímesis, como veremos adiante.

Said, leitor de Auerbach e de Goethe, adotou como legado dessas leituras seu pressuposto comparativista, mas abandonou a expressão “literatura mundial” porque entendeu que seu significado efetivo, em Goethe, trazia subjacente a ideia de que a “Europa, no que se referia à literatura e à cultura, liderava e constituía o principal objeto de interesse” (SAID, 2011, p. 93); de modo aproximado, quando Said investigou o conceito em Auerbach, percebeu ali o reconhecimento de outras literaturas, não europeias, mas também o silêncio sobre a história colonial dessas produções (SAID, 2011, p. 93).

Said, contudo, não deixou de falar de literatura nem de mundo; não deixou de pensar sobre o lugar da literatura no mundo; muito menos deixou de problematizar ou de sonhar com uma “literatura mundo”, mas esses conceitos obtiveram significações outras, dentro do contexto de transformações vividas no século XX. Suas reflexões sobre o exílio (elas não estão apenas no livro de mesmo título) constituem um lugar de conhecimento do mundo e da literatura em que a tradução ganha novo status e recondiciona o diálogo entre teoria, crítica e literatura comparada. Como bem observou Chistopher Prendergast no texto de abertura do volume Debating World Literature: a literatura mundial não é mais um objeto, mas um problema cuja elucidação demanda diferentes categorias (PRENDERGAST, 2004).

O objetivo deste artigo é apresentar e discutir aquilo que poderia ser chamado de crítica do exílio cujo cerne é o conjunto de problemas fundador da literatura mundial, em especial a tradução e a antropofagia. A ideia de base aqui é a de que a tradução produz uma filosofia do contato entre línguas que pode ressignificar uma determinada forma de crítica literária, aquela que se quer devoradora, deformadora. A crítica do exílio seria assim estruturada por aquilo que Lucia Helena chamou de discurso antropofágico, que “apreende o mundo como uma posição interpretativa, sempre focalizando não mais uma única verdade, mas uma multiplicidade de contradições, um jogo de máscaras que se afirmam e se desmentem” (HELENA, 1983, p. 31)

Em livro póstumo, Humanismo e crítica democrática (2007), conhecemos o diagnóstico feito por Said das concretas transformações culturais vividas pelo ocidente nos últimos 50 anos do século passado. No horizonte estava a filologia de Auerbach, descartadas suas implicações hierarquizantes, com a finalidade de reelaborar a prática de leitura literária. O capítulo 2 do livro supracitado pontua objetivamente o que o autor considera “As novas bases do estudo e da prática humanistas”. O que mudou? Pergunta-se Said.

A primeira mudança apresentada destaca que a geografia do pós-guerra se tornou outra. Vários países africanos de colonização europeia, por exemplo, emanciparam-se. Uma nova concepção do nacional surgiu, afetando o entendimento do literário em vários lugares. Said observa, por exemplo, que a voga da cultura popular não corresponde irrestritamente à produção de best-sellers para consumo rápido e fácil, ela também decorre dessas novas consciências nacionais transmudadas que precisavam valorizar sua tradição. Atento aos perigos de uma concepção essencialista de identidade, Said aprofunda a questão, alertando para o fato de que toda supervalorização nacionalista se aproxima perigosamente da xenofobia (SAID, 2007, p. 55-60).

Nesse cenário, observa o autor, forças como a migração e a mediação eletrônica adquiriram papeis modeladores na produção da cultura contemporânea, o que teria provocado a “grande” mudança, aquela que fez soar um alarme de incêndio na “República das Letras”.  Segundo Said, mudou o perfil do estudante de Letras, ampliado em diversidade; consequentemente, mudaram as demandas de estudo e, claro, mudou a universidade.

eruditos e professores que foram educados no que era um modo essencialmente eurocêntrico (...) habitavam todos um universo mental e estético que era linguística, formal e epistemologicamente fundamentado no mundo europeu e Atlântico Norte dos clássicos, da Igreja e do Império, nas suas tradições, línguas e obras-primas, junto com um aparato ideológico de canonicidade, síntese, centralidade e consciência. Tudo isso foi agora substituído por um mundo muito mais variado e complexo com muitas correntes contraditórias, antinômicas e antitéticas a percorrê-lo (SAID, 2007, p. 67).

Por mais que o projeto da globalização tenha sido, e continue sendo, homogeneizar a cultura através do capital, tornando a todos nós animais treinados para o consumo, Said chama atenção para o fato de que uma força contrária, e não apenas uma, impõe-se produzindo instabilidade, tanto para a vida política quanto para os estudos literários. Essas forças contrárias adviriam do contato entre línguas, entre formas de pensar e de conhecer.

Said propõe, então, uma ideia de “Mundialidade” para substituir o paradigma da “Literatura Mundial” que já não podia mais manter-se de pé: o trabalho da teoria e da crítica literária, para ser legitimamente mundano – produzido no mundo para alterar o mundo, como queria Said, não poderia ficar preso às dicotomias literatura erudita/popular; modernidade/pós-modernidade; crítica imanentista/multiculturalista; tradição/morte ao cânone; etc (a lista pode ser continuada). O desafio enfrentado por Said permanece renovado constantemente, pois o trabalho da teoria e da crítica literária seria questionar seus papeis diante de mudanças sensíveis, reavaliar suas concepções de literatura, repensar seu modus operandi.

Assim, o que nosso texto propõe é menos uma solução inovadora do que uma problematização de fronteiras entre os estudos literários e os estudos de tradução neste segundo decênio de novo século. Essas fronteiras estão, há muito, implicadas dentro da Literatura Comparada, mas gostaríamos de nos apropriar de alguns questionamentos propostos acerca dos temas da identidade, do contato entre línguas e das poéticas que subjazem aos estudos literários e aos estudos de tradução. Gostaríamos que uma disciplina possa intervir nas concepções da outra, de modo a redimensioná-las dentro deste complexo jogo de forças que constitui a produção de conhecimento no mundo (ainda?) moderno. 

Consideramos junto com Edward Said que esse conhecimento pertence a uma política que corrobora posições e, ao mesmo tempo, exclui certos grupos dos jogos de poder. Consequentemente, determina quem tem direito a usufruir da democracia e da literatura. Não à toa, o cânone continua como um dos objetos de debate.

No texto chamado “A política do conhecimento” (SAID, 2003, p. 176-189), Said, leitor crítico de Goethe, trata do assunto examinando as polarizações “salvem o cânone/morte ao cânone” com a observação de que as obras literárias do passado e do presente, do centro e da periferia, do norte e do sul, e de todas as identidades/nacionalidades estão em silencioso e potencial contato graças a intertextos, paródias, comparações e traduções. Sua proposta de estudos literários sugere uma “Mundialidade” (SAID, 2003, p. 189) em que as obras precisam ter esse contato reestabelecido por meio da literatura comparada para que o cânone não seja um lugar de disputa, mas antes de encontro e de debate das literaturas.

Para que isso aconteça, precisamos recuperar o modo como Said realizou uma leitura a contrapelo do entendimento comum da palavra exílio, possibilitando aqui a apropriação para uma proposta de crítica literária.

A primeira afirmação de Said sobre o exílio diz de seu caráter “irremediavelmente secular e insuportavelmente histórico”, “produzido por seres humanos para seres humanos” (SAID, 2003, p. 47). O livro Humanismo e crítica democrática (2007) ajuda a entender os advérbios de modo empregados aqui para dar ênfase a dois princípios fundamentais da escolha metodológica do autor, qual seja, a filologia humanista. A despeito de todas as críticas que o Humanismo sofreu no século XX, Said insiste na necessidade de afirmação do sujeito (capaz de lembrar e capaz de criar) diante da tarefa de desconstruir as “Grandes Narrativas” como aquela que ele mesmo empreende em seu Orientalismo (1979).

Assim, o exílio é uma condição que só pode ser compreendida na sua dimensão humana e mundana, rejeitando-se qualquer chave que conduza a uma transcendência, seja pelas vias da religião, seja pelas vias do irracional. A força do advérbio de modo em “irremediavelmente”, contudo, aprofunda a necessidade da compreensão sob a lógica das relações possíveis entre os seres humanos. De um lado, a secularização foi um processo que colocou o homem como sujeito do conhecimento; por outro, o exílio é politicamente a explicitação de que esse processo de racionalização da vida não trouxe junto consigo uma garantia de solidariedade. Vale destacar a ressalva de Said para o fato de que a condição de exilado se revela sempre ciumenta e oferece o risco de conduzir à xenofobia nacionalista. Não se trata exatamente, como se pode ver, de um signo conciliador.

O “insuportavelmente histórico”, por sua vez, pode ser interpretado como um desdobramento da secularização: é preciso interrogar para produzir novas narrativas, contraditoriamente é preciso narrar para construir novos sentidos. Não deve, portanto, ser subestimado o lugar que a ideia de cânone ocupa no pensamento de Said. Pela narrativa se cultiva a memória e o entendimento e, recordando a nuance de deslocamento que o termo exílio comporta em Cultura e Imperialismo (1993), o crítico demonstra como a narrativa tem o poder de associar tempo e espaço. Narrar e cantar define-se, no debate sobre cultura, como uma das formas mais clássicas de cultivo. Narrar e cantar é cultivar a memória de uma comunidade no solo que a alimenta materialmente. No solo da cultura literária, diferentes temporalidades entrelaçam-se no destino comum de um território e de diferentes línguas; nele também ocorrem os conflitos que podem levar à fratura e ao trauma do exílio.

Da ruptura com o tempo da tradição e com o espaço onde se consolidaram os costumes de uma comunidade, surge uma condição fundamental para o empréstimo do signo do exílio para uma perspectiva alternativa de produção do conhecimento: “A maioria das pessoas tem consciência de uma cultura, um cenário, um país; os exilados têm consciência de pelo menos dois de cada um desses aspectos e essa pluralidade de visão dá origem a uma consciência de dimensões simultâneas” (SAID, 2003, p. 59). Novas temporalidades emergem do contato de fenômenos nunca antes avizinhados. As literaturas que terminam por formar o chamado cânone ainda precisam ser lidas, secularmente, com as lentes do desencantamento, como registros justapostos da diversidade de subjetividades que se perdem e se desorientam a partir do momento em que uma sequência de conflitos deflagra essa experiência traumática que é o deslocamento para fora da cultura em que se formou.

O plural em “literaturas” pressupõe suas línguas; que pressupõem comunidades; que pressupõem interações. A pergunta que surge é antiga: como estudar, pensar, e mais, produzir conhecimento sobre as interações possíveis? Alguém poderia dizer que a solução está dada: a interação pensa-se via tradução, como já afirmou Tânia Franco Carvalhal, em artigo de título “De Traduções, tradutores e processos de recepção literária”:

a literatura resulta de tramas intertextuais, a literatura comparada se define pela mobilidade mesma que caracteriza seus estudos, ocupados com passagens, intercâmbios, migrações e trocas (comércio, diz Steiner) e a tradução se valida como sinônimo de leitura. Estudá-los significa entender como determinados autores foram lidos e o que estas leituras dizem sobre os povos, as línguas e as culturas que as receberam (2000, p. 87).

Quais são, contudo, as chances de escaparmos do ranço colonizador que atravessa nossa produção de conhecimento?

Viveiros de Castro traria uma grande contribuição para esta reflexão com sua tese de que a tarefa incontornável de uma Antropologia que não se queira colonialista (esta não é a proposta da Literatura Comparada em seu viés Pós-Colonial?) pulsa no saber/querer enxergar na imagem que o outro me devolve algo em que não me reconheço e só por isso me constitui (CASTRO, 2008, p. 41). A proposição de uma nova antropologia, para Viveiros de Castro, depende da compreensão de que sua questão axial é epistemológica, ou seja, política.

Said pensa a Literatura Comparada da mesma maneira: não mais uma hierarquia europeizante, mas uma política do conhecimento mediada pela linguagem; mediação que não deve esquecer a lição nitzscheana de que “a verdade a respeito da história humana é um exército móvel de metáforas e metonímias” (SAID, 2007, p. 81).

À mobilidade da linguagem ao longo do tempo (em que o trabalho de tradução se impõe internamente ao sistema linguístico), a Literatura Comparada agrega o movimento da própria literatura. Ainda segundo Carvalhal no texto acima mencionado, a Literatura Comparada ocupa-se do movimento da literatura no mundo, o que faz com que a própria noção de literatura e os conhecimentos que ela exige e mobiliza tornem-se também moventes. Nesse contexto é que a tradução ganha um novo sentido, transpassando definitivamente o horizonte essencialista desenhado pela hipótese Sapir/Whorf, que apontava para sistemas de valores fechados e, consequentemente, para a dita intraduzibilidade.

Nessa linha, cada cultura, vendo o mundo a partir de sua própria língua, seria incapaz de dizê-lo de outro modo, com outras cores, com outros ritmos. Tal perspectiva negava o aspecto histórico das línguas e culturas que mudam entrando em contato umas com as outras. Com ela, seria impossível colocar em prática o que Said mais valorizava com seu conceito de Mundialidade: o emprego das faculdades linguísticas para reinterpretar e lutar corpo a corpo com os produtos da linguagem na história e em outras línguas (SAID, 2007, p. 48).

À concepção de tradução como passagem e/ou como equivalência de efeito, segue-se a pergunta: o que passa de um lugar para outro? Haveria algo de essencial no texto que podemos extrair e lhe dar outra forma (a da “língua de chegada”)? Nessa perspectiva, a tradução transportaria um sentido essencial/universal, presente no texto, apagando as diferenças inerentes às línguas/culturas, trazendo-o para o mesmo, naturalizando-o. Berman (1984, 2007) chama essa tradução de etnocêntrica, Meschonnic (1999) fala em anexação, Venuti (2002) em domesticação.

A “boa tradução”, para essa abordagem etnocêntrica, seria aquela que naturaliza o texto (e sua poética), ao ponto de não ser percebido mais como estrangeiro, já que não causaria estranhamento, já que negaria e até mesmo apagaria o encontro provocado pelo ato de tradução. Assim, estaríamos dispostos a transformar a língua do outro, mas não a nos transformar. A tradução, dessa maneira, pensada em termos hermenêuticos, não passa de uma leitura divinatória, posto que “desvenda” (sempre o pressuposto da essência), esclarece (jogando luz no texto), explica o confuso do outro, o incompreensivo do que pensa diferente, para lhe atribuir algo universal, “civilizador”.

A concepção inaugurada por Walter Benjamin na Tarefa-renúncia do tradutor (2008) [1923], cuja reflexão foi reforçada mais tarde com Meschonnic em sua Poética do traduzir (1999), com Berman na Tradução e a Letra: a albergue do longínquo (2007), por Venuti denunciando os Escândalos da Tradução (2002), e por Haroldo de Campos com sua concepção antropófaga de transcriação (1967, 1992), levou os estudos da tradução a se repensarem em termos de relação com outros modos de dizer numa perspectiva poética e histórica, em outras palavras: política. Walter Benjamin, numa crítica à tradução como imitação, aponta para o processo intrínseco de transformação:

para compreender a autêntica relação entre original e tradução deve-se realizar uma reflexão, cujo propósito é absolutamente análogo ao dos argumentos por meio dos quais a crítica epistemológica precisa comprovar a impossibilidade de uma teoria da imitação. Se em tal caso demonstra-se não ser possível haver objetividade (nem mesmo a pretensão a ela) no processo do conhecimento, caso ele consista apenas de imitações do real, em nosso caso, pode-se comprovar não ser possível existir uma tradução, caso ela, em sua essência última, ambicione alcançar alguma semelhança com o original. Pois na continuação de sua vida (que não mereceria tal nome, se não se constituísse em transformação e renovação de tudo aquilo que vive), o original se modifica (BENJAMIN, 2008, p.70).

Benjamin recusa a concepção de tradução como imitação do mesmo modo que Oswald de Andrade, mais ou menos na mesma década de 20, recusou a narrativa modeladora (aquela que impõe a imitação) portuguesa: “Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: - é mentira muitas vezes repetida” (ANDRADE, 1990, p. 50). A proposta devoradora/transformadora de Oswald antecipa a renovação da Literatura Comparada, que durante muito tempo, reforçou, assim como a concepção conservadora de tradução, uma relação de dependência entre línguas superiores e inferiores, culturas civilizadas e selvagens.

Na perspectiva antropofágica de Oswald, a deglutição não é mera inversão, mas transformação dos sentidos: “Mas não foram os cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti” (ANDRADE, 1990, p. 50).Transformação da forma de sentir o Outro: “um modo de experimentar o ponto de vista do inimigo sobre todas as coisas, especialmente sobre si”, diz Eduardo Sterzi leitor de Oswald de Andrade e de Viveiros de Castro (in: ANDRADE, 2017, p. 221).

Quando os estudos literários encontram essa concepção de tradução/transformação, forçam seu campo de interesse para fora de sua área canônica de inscrição, e entram em uma espécie de exílio, tal qual proposto pelo conceito de Mundialidade de Said no qual a comparação tem um fundamento ético: “Jamais houve uma interpretação errônea que não pudesse ser revisada, melhorada ou derrubada” (2007, p. 42). Olhar, comer, reler. Instâncias da tradução e da crítica.

Triangulando Benjamin, Oswald e Said em um diálogo virtual, temos que com os estudos de tradução, a literatura mundial reinventa-se como uma pesquisa da diferença e não como a relação entre texto-fonte e texto segundo. E de outra maneira, ainda é possível perceber na citação de Benjamin que, assim como a tradução é uma transformação do texto dito “original”, a literatura também provoca uma transformação do mundo (texto primeiro).

A literatura seria uma deformação estética criadora de outras realidades, nos termos propostos por Antonio Candido em seu Literatura e sociedade –  outro leitor de Oswald para quem há sempre uma “relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de poiese” (CANDIDO, 2011, p. 22).

Se a literatura a tudo devora e deforma, importa menos buscar identidades e essências do que promover justaposições para observação e fruição do contato. Benjamin vê na tradução a possibilidade de fruição e de complementação das línguas e dos discursos: “a tradução tende a expressar o mais íntimo relacionamento das línguas entre si” (BENJAMIN, 2008, p. 69). Ou seja, o sentido de tradução que possibilitaria a comunicação intercultural com que um dia sonhou Goethe.

Edouard Glissant, em termos benjaminianos, considera a tradução uma das artes mais importantes da contemporaneidade e alerta:

doravante, o que toda tradução sugere em seu princípio mesmo, através da própria passagem que ela realizaria de uma língua para a outra, é a soberania de todas as línguas do mundo. E, por essa razão, a tradução é o indício e a evidência de que temos que conceber em nosso imaginário essa totalidade das línguas. Da mesma forma que o escritor realiza essa totalidade, doravante, através da prática de sua língua de expressão, o tradutor manifesta essa totalidade através da passagem de uma língua para uma outra, sendo confrontado com a unicidade de cada uma dessas línguas (GLISSANT, 2005, p. 48).

O sujeito tradutor-leitor-escritor funciona como agente de contato no mundo. O traduzir se torna arte do cruzamento que aspira à totalidade do mundo, à Mundialidade como política do conhecimento e que, ao mesmo tempo, nega todo universalismo de paróquia.

Nesse sentido, a tradução é uma poética fundamental para uma crítica do encontro, encontro que não pressupõe identidade, no sentido de uma busca por semelhanças, nem um pluralismo indolente, muito menos uma apologia demagoga do outro, mas encontro de identidades que buscam afirmar-se em suas diferenças e que refletem sobre as transformações decorrentes desses encontros. Afinal, como insiste Said, em sua “poética do exílio”:

com uma mistura tão irreversível de povos ao nosso redor, fazendo parte de nós, o que deve acontecer é que, em alguma medida, somos todos outsiders e, numa medida um pouco menor mas quase igual, também insiders nos grupos. Cada um pertence a uma tradição nativa (...) e cada um é alheio a alguma outra identidade ou tradição adjacente a sua (SAID, 2004, p. 70).

Refletir sobre essa ambiguidade inerente ao estar no mundo é adotar a postura crítica do exílio: cultivar a percepção da multiplicidade complexa das relações tanto geograficamente quanto historicamente.

A tradução, nesse contexto, aproxima-se de uma atividade crítico (po)ética, em que a primeira língua não se apaga na outra e nem a segunda vacila em se apresentar ou, seguindo Benjamin: “Essa tarefa consiste em encontrar na língua para a qual se traduz a intenção, a partir da qual o eco do original é nela despertado” (GLISSANT, 2005, p. 5). Glissant recupera a acepção de renúncia em aufgabe e vê no despertar do original na tradução a beleza da renúncia: “A tradução é fuga, o que significa de uma forma belíssima, renúncia. O que talvez seja mais necessário adivinhar no ato de traduzir é a beleza dessa renúncia.” (GLISSANT, 2005, p. 49).

O exílio constitui-se dessa renúncia, o exilado exercita-se na renúncia, pois cultivar a percepção da multiplicidade complexa das experiências de contato é renunciar tanto à identificação fácil promovida pela lógica do mercado quanto ao enclausuramento dos essencialismos identitários.

A atividade crítica da literatura comparada, desenvolvendo seu devir tradutório, exige o abandono do pensamento de sistema saussureano (línguas herméticas e fechadas em si-mesmas) e de dualidade platônica (sentido/forma; civilizado/selvagem; identidade/alteridade; partida/chegada; etc). O objetivo dessa crítica seria propor a interrogação/interpelação acerca dos deslocamentos não apenas da literatura pelo mundo, mas também dos deslocamentos de significantes, das ambiguidades, dos estranhamentos – uma volta no parafuso dos estudos da imanência, que foram abandonados pelo comparativismo culturalista.

A tradução pode trazer de volta para a Literatura Comparada os problemas de linguagem, não mais na perspectiva da “correspondência” entre línguas, mas na perspectiva do equívoco. Como diz Viveiros de Castro:

traduzir é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco; é comunicar pela diferença, em vez de silenciar o Outro ao presumir uma univocidade originária e uma redundância última – uma semelhança essencial – entre o que ele e nós “estamos dizendo” (CASTRO, 2008, p. 91).

O que Viveiros de Castro sugere, com seu elogio do equívoco, Said chama de dimensão trágica do conhecimento: “há sempre algo radicalmente incompleto, insuficiente, provisório, discutível e contestável no conhecimento (...) algo que faz parte de sua constituição e que não pode nunca ser removido” (SAID, 2007, p. 31). A literatura comparada que busca o contato aprende com os estudos de tradução que a “falta” de uma língua é o sinal de mais (+) por meio do qual seus sentidos transbordam. A partir de sua experiência de exilado, Said desenvolve uma consciência linguística anfíbia, pois seu lado Palestino não se “mistura” à sua dimensão inglesa. As duas línguas coexistem, uma atravessando a outra. Sem hibridismos, mas também sem isenção.

Por isso é no exílio que vislumbramos o devir tradutório da literatura comparada. Segundo Said, há uma geografia feita de silêncios, há grupos em permanente errância, há lugares de exclusão e de invisibilidade (SAID, 2007, p. 107) que apenas uma crítica em devir tradutório, fora de todo jargão e atenta à mundanidade dos discursos pode operar com a finalidade de promover “uma aventura perturbadora na diferença de, nas tradições alternativas, nos textos que precisam ser novamente decifrados” (SAID, 2007, p. 78). 

Quando tomado como metáfora do conhecimento, dentro dos parâmetros de uma “mundialidade”, Said assimila a metáfora do exílio a um pensamento crítico cujo cerne é o problema da identidade. Em sua exposição, surgem, em razão dessa alternativa, os exemplos de Joyce e de Adorno, cujos posicionamentos insinuam uma “crítica do exílio”. Said admira no autor de Ulisses o fato de ter se retirado da Irlanda, seu país de origem, com a finalidade de “sustentar a mais rigorosa oposição ao que era familiar”(SAID, 2003, p. 55); sobre o autor de Minima Moralia, afirma: “seguir Adorno é ficar longe de casa, a fim de olhá-la com o distanciamento do exílio, pois há mérito considerável em observar as discrepâncias entre vários conceitos e ideias” (SAID, 2003, p. 58).

Assim é que o problema da identidade e de seu pressuposto linguístico participam da crítica do exílio. O exilado só existe em relação a alguém, a um espaço, a uma língua. Essa posição relacional desterritorializa o exilado, fazendo do exílio um “estado de ser descontínuo” (SAID, 2003, p. 50). Nesse sentido, as lições de Said e de Glissant convergem para o que estamos chamando aqui de crítica do exílio. A tradução como renúncia é um modo de ação da crítica. Como Joyce ensinou a Said, um consentimento ao abandono para desfamiliarizar-se e abrir-se à poética do diferente, um pensar crítico em que os sentidos familiares entram em exílio para se estranharem.

Lendo as reflexões de Said sobre o exílio à luz dos supracitados estudos de tradução percebemos que o exilado desenvolve sua experiência tendo a coletividade como território desterritorializado e, nessa densidade, suas experiências são elaboradas subjetivamente, entendendo que a subjetividade possui na literatura, que é conhecimento e também política, tanto linhas de fuga quanto forças de coesão. A experiência do exílio está, assim, fundada numa falta e num descentramento. Há algo que falta (suas “raízes”) e que falha (sua memória), mas esse equívoco, como disse Viveiros de Castro sobre a tradução, não se manifesta como lacuna ou vazio, antes como algo que transborda, que afeta e desloca tudo (todos os signos, seus significantes e seus sentidos) a sua volta. A crítica do exílio torna-se uma crítica do deslocamento geográfico (como exige o princípio de mundialidade da literatura) e interpretativo (para que a crítica volte a se ocupar das poéticas).

O território do exilado descreve-se, portanto, como o território do não pertencimento. A condição de existência desse espaço, esperamos ao menos ter sugerido isso, não é um “grau zero de identidade”, nem um “entre lugar”. Trata-se de um espaço relacional. Já citamos Said quando diz que “cada um pertence a uma tradição e ao mesmo tempo é alheio a alguma outra identidade ou tradição adjacente a sua” (SAID, 2007, p. 70). O exílio configura-se como um espaço concreto porque está prenhe de forças em conflito; logo, um espaço em que o exilado, agarrando-se à diferença, à diferença que percebe em si mesmo, como uma arma a ser usada com vontade empedernida, insiste ciosamente em seu direito de não pertencer (SAID, 2003, p. 55).

A perspectiva do exílio desnaturaliza, dessa maneira, a tendência etnocêntrica de erigir valores universalizantes a partir de uma suposta “Literatura Mundial”. Simultaneamente, pressupondo o entendimento da Mundialidade como política do conhecimento, denuncia a retórica da alteridade como demagogia. O que o exílio oferece, em última instância, é uma experiência centrífuga de si mesmo a partir da linguagem literária – que é sempre uma outridade.

Se a “Literatura Mundial” de Goethe e de Auerbach foi a idealização de integração supranacional, a Mundialidade de Said foi uma proposta de construção de conhecimento intercultural. A diferença reside na recusa da ideia de integração, que Said reconhece como imperialista. Sua Mundialidade constrói-se, apenas em aparente contradição, no Exílio. A partir de fora, do lugar da renúncia que a concepção de tradução de Benjamin ajuda a desterritorializar; do lugar onde se dá a ruptura com uma definição engessada de identidade.
A imagem do exilado define uma crítica exatamente pelo que Said nela identificou como “alternativa às instituições de massa que dominam a vida moderna” (SAID, 2003, p. 57). A poética do exílio se realiza indefinidamente nesse movimento conflituoso, instável e descentralizador que a tradução traz para a literatura comparada e que esta traz para a tradução em um contexto em que a ideia de cultura e de identidade se tornaram conceitos-problema.

A crítica como tradução começa com registros justapostos da diversidade de subjetividades que se perdem e se desorientam a partir do momento em que uma sequência de conflitos deflagra essa experiência que é o deslocamento para fora da cultura em que se formou. A literatura comparada, problematizando a fronteira entre crítica e tradução, insistindo no valor estético do estranhamento, apresenta-se como um espaço relacional, desterritorializado, antropofágico, em que uma obra pode/deve ser vista simultaneamente inscrita em sua cultura local e em confronto com tradições mais amplas sem adormecer criticamente no sono da literatura mundial.

REFERÊNCIAS

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AUERBACH, Erich. “Filologia da literatura mundial” in: Ensaios de Literatura Ocidental. Trad. Samuel Titan e José Marcos M. de Macedo. São Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2007.

BENJAMIN, Walter. “A tarefa-renúncia do tradutor”. Trad. Susana Kampff Lages in: BRANCO, L. C. (Org). A tarefa do tradutor de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.

CARVALHAL, Tânia F. “De Traduções, tradutores e processos de recepção literária” in: Revista Brasileira de Literatura Comparada. V. 5, n. 5, 2000. Disponível em <http://revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/72>. Acesso: 10/07/2017.

CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Ouro sobre azul, 2011.

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HELENA, Lucia. Uma literatura antropofágica. Fortaleza: UFC, 1983.

PRENDERGAST, Christopher (Org.). Debating World literature. London/New York: Verso, 2004.

SAID, Edward W. “A política do conhecimento” in: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SAID, Edward W. “Reflexões sobre o exílio” in: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia de bolso, 2011.

STERZI, Eduardo. “A irrupção das formas selvagens” in: ANDRADE, Mario de. Macunaíma. São Paulo: Ubu editora, 2017.

 

Submetido em 10/05/2018; Aceito em 31/08/2018

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