Resenha

Resenha do livro de Horst Schmidt Das “Aachner Programm” der Komparatistik. Hugo Dyserinks imagologische Version der Vergleichen Literaturwissenschaft. Berlin, Frank & Timme, 2018, 282 p. ISBN 978-3-7329-0409-9. Também E-book ISBN 978-3-7329-9594-3. (Horst Schmidt, O Programa de Comparatística de Aachen. Hugo Dyserinck e sua versão imagológica da Literatura Comparada).

Celeste Ribeiro de Sousa[1]

[1] Professora Sênior da Universidade de São Paulo, FFLCH – DLM – Programa de Pós-Graduação em Língua e Literatura Alemã.


O livro de Horst Schmidt, publicado no comecinho de 2018, é um eloquente registro da existência e da produção do inovador Programa de Comparatística de Aachen (Aix-la-Chapelle), existente na Universidade Técnica da Renânia do Norte-Vestfália (RWTH), de 1967 a 1992, sob a direção de Hugo Dyserinck (a chamada era Dyserinck). Trata-se de um Programa de Comparatística de repercussão em todos os continentes. Na América do Sul, por exemplo, Dyserinck foi convidado do XVIII Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada (AILC) “Para além dos binarismos:  descontinuidade e deslocamentos em Literatura Comparada”, de 29/07 a 04/08/07 na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e também foi convidado especial das “Octavas Jornadas Nacionales de Literatura Comparada ‘La Literatura Comparada, fronteras em traducción. Mediaciones, transferências, intermediaciones, prestamos, apropiaciones, exclusiones’”, de 8 a 10 de agosto de 2007 na Universidade de Cuyo em Mendoza, Argentina. Na holandesa Moderne Encyclopedie der Wereldliteratur (1977), o verbete definidor do conceito de Comparatística é de sua autoria.

O livro de Horst Schmidt dedicado a este Programa de Comparatística apresenta-se dividido em sete blocos: introdução, alicerces do Programa, fundação e desenvolvimento do Programa por Hugo Dyserinck, o Programa depois de Dyserinck, a Imagologia dentro do Programa, considerações finais e referências bibliográficas.

Depois da introdução, o segundo bloco aborda as raízes do que viria a constituir o Programa de Comparatística de Aachen sob a regência de Hugo Dyserick. Dá notícia dos vários degraus percorridos pelo acadêmico até a “Livre docência” em 1962 e de seu interesse recorrente pela Literatura Comparada da “escola” francesa. Chama a atenção para o significado do seminal artigo de Dyserinck, um verdadeiro manifesto no âmbito da Literatura Comparada: “Zum Problem der images und mirages und ihrer Untersuchung im Rahmen der Vergleichenden Literaturwissenschaft”, de 1966, (“O problema das images e mirages e sua pesquisa no âmbito da Literatura Comparada”, trad. in: http://rellibra.com.br/pdf/imalogia1/imagensemiragens.pdf). Com ele, Dyserinck enfrenta os textos que demolem a Literatura Comparada e a Imagologia, escritos e proferidos por René Wellek, imigrado austríaco nos USA, em 2 congressos (1955 e 1958), e recoloca a disciplina no seu lugar, isto é, no âmbito da literatura.

O terceiro bloco discorre sobre a fundação do Programa de Comparatística de Hugo Dyserinck e sobre sua história (1967-1992). Ao assumir a cátedra de Literatura Comparada na recém-fundada Faculdade de Filosofia da Universidade de Aachen (RWTH), Hugo Dyserinck apresenta um projeto diferenciado: pretende formar uma “escola” que vá além da francesa e da americana. Quer eliminar o conflito entre a Literatura Comparada e as filologias nacionais/nacionalistas com suas especificidades, propondo uma disciplina independente com objetivos e métodos próprios que não deixe, contudo, de contemplar os dois campos de estudo atrás mencionados. A “Comparatística” de Dyserinck abrange o estudo da literatura sem fronteiras linguísticas, a literatura tida como a arte da palavra – uma disciplina supranacional/multinacional, orientada para o cosmopolitismo – em que diferenças (singularidades) e traços comuns (integrações) entre as diversas expressões literárias em toda a sua extensão entram em pauta, conditio sine qua non para a existência independente da Comparatística. Não à toa, Dyserinck considera a Europa um “laboratório intelectual”, um modelo que bem poderia ser replicado mundo afora de modo a cooperar na obtenção de uma pax mundial seguida da paz. Aliás, a escolha da cidade de Aachen para implantar seu projeto também se justifica por sua particular localização geográfico-linguística.

O projeto/programa de Dyserinck constitui em si uma disciplina que, em seu funcionamento, engloba todo um departamento autônomo dedicado aos estudos comparados da ciência da literatura - história(s) da literatura, metodologia(s) literárias, teoria(s) da literatura, (a chamada littérature génerale), relações entre várias expressões literárias, tematologia, imagologia, tradução, relações com outras artes, relações com a sociedade, relações com outras disciplinas – cujo alcance político estaria a serviço do entendimento entre os povos. Na Comparatística de Aachen, ênfase especialíssima é dada à Imagologia.  Através dos estudos imagológicos, atribui-se relatividade ao conceito de identidade nacional. Indo além do tratamento dado pela escola francesa e americana à Imagologia, Dyserinck mostra que sua investigação não só transcende as fronteiras do texto literário, ela também é absolutamente imanente à tessitura textual. Está-se diante, portanto, de uma mudança de paradigma introduzida pelo Programa de Aachen.

O ensaio “Der Beitrag der komparatischen Imagologie zur Entwicklung einer künftigen multikulturellen Gesellschaft” (“A contribuição da imagologia literária para a construção de uma sociedade multicultural”), de 1996, trata do assunto. Também o artigo “Von Ethnopsychologie zu Ethnoimagologie”, de 2002, (“Da etnopsicologia à etnoimagologia”, trad. in:  http://rellibra.com.br/pdf/imalogia2/etnopsicologia.pdf), desenvolve o tema. O grande objetivo da Imagologia está focado na desideologização de estereótipos e imagotipos (imagens nacionais) – constructos culturais – intencionalmente manipulados/falsificados.

Para dar um rosto incontroverso ao Programa de Comparatística de Aachen, é criada a série de publicações “Aachener Beiträge zur Komparatistik” (“Contribuições de Aachen à Comparatística”), cujo 1º volume, de 1977, é o livro Komparatistik. Eine Einführung (Comparatística. Uma introdução), do próprio Dyserinck, um verdadeiro manifesto programático.  Até 1992, são publicados 9 volumes, todos os textos produzidos no âmbito das pesquisas do Programa, sendo os 2 últimos constituídos pelos trabalhos apresentados em 2 simpósios.

 O trabalho de Dyserinck à frente da Comparística de Aachen é reconhecido pelo título Doktor h. c. por ele recebido da Universidade de Bruxelas em 22 de abril de 1990; pela publicação de dois “Festschrifte”: Leersen, Joep; Syndram, Karl Ulrich (Eds.). Europa provincia mundi. Essays in comparative literature and European studies offered to Hugo Dyserinck on the occasion of his sixty-fifth birthday. Amsterdam, Rodopi, 1992, e Mehnert, Elke (ed.). Russische Ansichten – Ansichten von Russland. Festschrift für Hugo Dyserinck. Frankfurt am Main, Peter Lang, 2007, e também pela publicação do livro igualmente dedicado ao estudioso: Beller, Manfred & Leerssen, Joep. Imagology. The cultural construction and literary representation of national characters. A critical survey. Amsterdam, Rodopi, 2007, (resenha in: Revista Ilha do desterro. A journal of English language, literatures in English and Cultural Studies nº 59. Florianópolis, Ed. da UFSC, jul/dez 2010, p. 271-273.

O quarto bloco dá notícia do Departamento/Programa de Comparatística de Dyserinck depois da sua aposentadoria em 1 de setembro de 1992, quando a cátedra fica vaga. Não há sucessor imediato: os substitutos que assumem, de um modo ou de outro, não se alinham com a configuração inovadora do Programa, voltando-se para os antigos perfis da disciplina até que esta é extinta em 2003. O tiro de misericórdia surge no bojo do escândalo envolvendo o reitor da RWTH, à época, o germanista prof. Dr. Hans Schwerte que descobre-se, em 1995, ter sido um oficial nazista das SS chamado Ernst Schneider. Levanta-se a suspeita de que Dyserinck e outros docentes teriam sabido do descalabro, manipulando-o. Tal suspeita é, porém, levada por Dyserinck aos tribunais que o inocentam em 15.12.2000. Marga Graf, então discípula de Dyserinck, manifesta-se numa carta publicada em 12 de agosto de 1995 no Aachener Volkszeitung sobre o despautério de se cancelar um programa inovador de Literatura Comparada em virtude de problemas a ele estranhos.O estrago, todavia, estava feito.

O quinto bloco rastreia a continuidade do Programa de Dyserinck em outras universidades. De fato, o Programa de Comparística, tal como concebido por Dyserinck, prossegue na Universidade de Leipzig, conduzido por Elke Mehnert. Aqui a coleção “Aachener Beiträge zur Komparatistik” continua com o nome “Studien zur komparatistischen Imagologie” (“Estudos de Imagologia Literária”), editada por Mehnert e Dyserinck. O Programa também avança em outros países. Por exemplo, na Universidade de Amsterdam com Joep Leerssen, considerado hoje o mais importante “imagólogo” do mundo e herdeiro de Dyserinck, distinguido com o prêmio Spinoza em 2008, e a coleção desdobra-se em outro nome: “Studia imagologica”, editada por Leerssen e Dyserinck. O programa de Dyserinck repercute também na Universidade de Navarra (Enrique Banus-Irusta), na Universidade de Bejing em Pequim (Weigui Fang), na universidade de Zagreb (Davor Dukić), etc.

Seguem-se conclusões que resumem e evidenciam o caráter inovador do Programa de Comparatística de Aachen, sob a direção Hugo Dyserinck. Termina o livro com 93 páginas dedicadas à bibliografia especializada.

 

Submetido em 15/10/2018; Aceito em 12/12/2018


 

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