Figurações da voz na literatura

Figurações da voz na literatura

Maria Rosa Duarte de Oliveira[1]

 [1]Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), https://orcid.org/0000-0002-4603-7349


RESUMO:

O objetivo deste artigo é o de focalizar o ato performático de figuração da voz, do ponto de vista da filosofia e da literatura, não como discurso oral, mas como presença de um corpo auditivo capturado na escrita literária, que Zumthor nomeia de caligráfica. Como fazer da voz figuração na escrita poética, que tem por suporte a visualidade da impressão gráfica, e quais dispositivos usa para isso são algumas das indagações que buscaremos investigar.

Palavras-chave: voz; figuração; corpo; performance; escrita poética.


ABSTRACT: The aim of this article is to focus on the performative act of voice figuration from the point of view of philosophy and literature, not as an oral discurse, but as the presence of an auditory body captured in the literary script that Zumthor calls a calligraphic one. How to make the voice figuration in poetic writing, which is supported by the visuality of the graphic print, and which devices it uses for this are some of the questions we will seek to investigate.

Key words: voice; figuration; body; performance; poetic writing.


Se “escutar” é compreender o sentido (seja o sentido dito figurado, seja o sentidodito próprio:
escutar uma sereia, um pássaro ou um tambor já é a cada vez compreender ao menos o esboço de uma situação,
um contexto senão um texto), escutar é estar inclinado para um sentido possível e,
por conseguinte, não imediatamente acessível.
(Jean Luc-Nancy)

A proposta deste artigo é a de focalizar a figuração da voz, do ponto de vista da literatura e da filosofia, como presença de um corpo auditivo capturado na escrita, que tem por base a visualidade da impressão gráfica. Como fazer da voz figuração na escrita poética? Quais dispositivos o poema e a narrativa usam para isso?

Tais serão as indagações que buscaremos investigar, tendo por hipótese que  voz não se reduz a discurso oral e semântica, mas implica todo um campo relacional de ressonâncias que, no poema, manifesta-se na relação entre o sujeito lírico e a alteridade da linguagem poética como instância corporal e pulsante e, na narrativa, que é o próprio acontecimento,  tal se daria no seu processo enunciativo, isto é, uma cena relacional  entre o gesto autoral, o narrador e  as personagens feitos discursos no aqui e agora de projeção para um outro: o leitor em sua potência imaginativa.

Da voz

É preciso, antes de mais nada, aclarar o sentido que  voz terá aqui e, para isso, escolhemos alguns pressupostos conceituais que fundamentarão nosso percurso a partir de estudiosos que se dedicaram a essa investigação, na filosofia e nos estudos literários, como: Jean-Luc Nancy, Giorgio Agamben, Adriana Cavarero e Paul Zumthor.

Em primeiro lugar, voz implica a fisicalidade da garganta, de todos os órgãos envolvidos na fonação, da respiração, além de suas qualidades de peso, timbre, altura, ritmo que lhe conferem uma corporeidade singular, para além da simples redução à palavra oralizada. Não bastasse isso, esse corpo vocal se inscreve num outro – o do sujeito – e ainda se dirige a outros que ouvem e participam desse ato performático, que é como Zumthor denomina esse momento irrepetível e único, do contato entre presenças no aqui e agora de um determinado contexto - desde situações do dia a dia até aquelas nas quais se privilegia a intencionalidade poética: seja a dos repentistas e cantadores nas praças, a contação de histórias em espaços públicos diversos, as performances de poesia , etc. Trata-se de um campo de ressonâncias que implica, mais do que aquilo que se diz e se comunica pela fala, o modo, a gestualidade, a expressão daquilo que não pode ser capturado pela palavra, numa teia complexa de reverberações.

Em seu livro Performance, recepção, leitura (2007), Zumthor descreve uma cena de infância, que nos dá a dimensão do que seja a percepção da voz em ato performático: diz ele que, numa rua de Paris dos anos 30, havia um cantador e os folhetos que distribuía entre aqueles que paravam para ouvi-lo e ele lá estava também. Toda a sua atenção, seu corpo, seus sentidos estavam ali, naquele momento, usufruindo desta presença do cantador e de seu canto, inseparáveis. Mas também havia  “o grupo, o riso das meninas [...] e por cima o céu de Paris [...] que se tornava violeta. Mais ou menos tudo isto fazia parte da canção. Era a canção” (ZUMTHOR, 2007, p.28-29).Dias depois, desejou reproduzir o prazer daquele instante por meio da leitura do folheto e do canto da melodia ouvida, mas surpreendeu-se ao perceber que isso não era possível porque a letra era incapaz de recuperar a totalidade daquela presença da performance que, num único instante, integrou voz, palavra, canto, gestualidade, corpo e todas as outras sensações  naquela experiência única.

A performance poética da voz para ele é, antes de tudo, como ocorre, por exemplo, no caso dos cantadores e repentistas na cultura brasileira,  um ato presencial e único, que implica a presença de um corpo – o do intérprete – os seus gestos, modulações vocais e expressividade de seu canto e o efeito que produz sobre a audiência, que a ele se integra de forma plena seja pela dança, seja interferindo no ritmo do canto com palmas e batidas de pés. Nesse sentido, para Zumthor, “a performance é o único modo vivo de comunicação poética” e, de forma mais radical, ainda o poético, para gerar seus efeitos necessita “da presença viva de um corpo: de um sujeito [...] que ouve, vê, respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. Que um texto seja reconhecido por poético (literário) ou não depende do sentimento que nosso corpo tem”(Zumthor, 2007, p.34-35).

A voz, nesse sentido, ultrapassa a letra por inserir a palavra falada num complexo de relações sensoriais, corporais e perceptivas que lhe conferem um caráter plurissignificativo. Além disso, é a marca mais profunda de um individuo, o seu corpo interior, que vem da profundidade da úvula, a parte mais interna do aparelho fonador e, por isso, é nela que está a unicidade de um ser humano, seu traço diferencial que o distingue de todos os outros; não  há duas vozes iguais. É assim que Adriana Cavarero em seu livro Vozes pluraisFilosofia da expressão vocal (2011) entende a presença da voz e a percebe distante da tradição filosófica ocidental concentrada sobre o logos, o conceito e a representação simbólica que visam o geral como categoria daquilo que é predicado de muitos. É desse modo que Cavarero encontra em uma narrativa de Ítalo Calvino – Um rei à escuta[2] – a melhor definição para o fenômeno vocal:

[...] Uma voz significa isso: existe uma pessoa viva, garganta, tórax, sentimentos, que pressiona no ar essa voz diferente de todas as outras vozes. Uma voz põe em jogo a úvula[3], a saliva, a infância, a pátina da existência vivida, as intenções da mente, o prazer de dar uma forma própria às ondas sonoras. O que o atrai é o prazer que esta voz põe na existência – na existência como voz –, mas esse prazer o conduz a imaginar o modo como a pessoa poderia ser diferente de qualquer outra tanto quanto é diferente a voz (Calvino, 1995, p.79).

No campo das  Poéticas da voz, a chamada Poesia sonora foi aquela que atingiu, no século XX, uma produção muito significativa, desde as vanguardas futuristas e dadaístas, até experimentos mais contemporâneos que se apropriaram dos mais variados dispositivos tecnológicos para produzirem performances que levaram a vocalidade ao seu limite máximo, sem o suporte da escrita. A performance vocal é aí um momento singular, como é o caso de um poeta nosso – Philadelpho Menezes (1960–2000) –, designer de linguagem, pesquisador, editor  e docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica  da PUCSP, na década de 90, cujos poemas sonoros – Encontro amoroso e Céu da boca – poderão ser acessados pelo leitor no site  https://youtu.be/-wUM8PGBsIA (Radiofonias- Philadelpho Menezes. Parte 1).

No primeiro, o encontro e desencontro amoroso se faz entre línguas diversas – eu/você; I/you; yo /tu – mas que também podem sugerir outras quase palavras , detritos, pedaços, estilhaços de uma relação que se desgasta (ai/ui/io etc.). Além disso, as interrupções, os ruídos, o som eletrônico que interfere e corta , a sugestão de tempo de batidas (do coração?), o ritmo, a duração do encontro amoroso e de sua finitude, ou ainda, tudo isso junto e misturado.

Podemos perceber, neste campo de reverberações, o encontro e a tensão dando nascimento a uma outra (quase) língua, emergente, estrangeira, uma (não-) língua em passagem e movimento continuo porque feita de pedaços de sons que se juntam e criam novas possiblidades de sentidos na efemeridade do encontro, que logo se desfaz para novos agenciamentos.

Mas há ainda a voz do sujeito que enuncia e que, no caso, é o próprio poeta, como ocorre nas performances artísticas nas quais o corpo do performer está em cena.  Aqui, no entanto,  o receptor ouve a voz que se autodenomina eu com seu timbre, peso e singularidade, mas não a identifica como pertencendo a determinado sujeito pela ausência de sua imagem visual e isso desfaz a fixidez de sua identidade, que está e não está nesse eu mutante e em metamorfose continua. Esta ausência da imagem visual do enunciador é um dispositivo potente para fazer do corpo da voz o verdadeiro sujeito da fala.

No segundo – Céu da boca – a materialização da cavidade bucal, da garganta de carne, da língua no atrito erótico com o céu da boca e o som produzido, da profundidade desse órgão interno – a úvula – lugar onde se forma e se propaga o som, a voz, a respiração, o sopro criador. Materializa-se, nesta cena, o principio da criação do universo da linguagem em seu (não) lugar de potencia de privação[4] de semântica e de língua articulada, daquilo que é puramente dizível, ou ainda da  infância da linguagem, espaço da Voz sem discurso, embora, no decorrer do tempo, tenderá a ser voz na palavra semantizada, conforme diria Giorgio Agamben.[5]

Este conceito de infância da linguagem implica a percepção da cisão entre língua e fala (discurso), ruptura que implica a percepção de que o homem não nasce falante, como ocorre com os animas, cuja linguagem está em continuidade com sua própria natureza: o pássaro, por exemplo, já nasce com determinado canto de sua espécie. O ser humano, no entanto, precisa separar-se da linguagem-natureza, em seu estado de infância da “língua sem palavra” (Agamben, 2008, p.64) e apropriar-se do seu poder de dizer, ser sujeito do discurso e da história:

Os animais não entram na língua: já estão sempre nela. O homem, ao invés disso, na medida em que tem uma infância, em que não é já sempre falante, cinde esta língua una e apresenta-se como aquele que, para falar, deve constituir-se como sujeito da linguagem, deve dizer eu. Por isso, se a língua é verdadeiramente a natureza do homem – e natureza, se bem refletimos, pode apenas significar língua sem palavra [...] “origem con-tínua”, na definição de Aristóteles, e ser natureza significa  ser já sempre na língua – então a natureza do homem é cindida de modo original, porque a infância nela introduz a descontinuidade e a diferença entre língua e discurso (Agamben, 2008, p. 64; destaques do autor).

Figurações, performance, voz e escrita poética

Quando pensamos em figura, imediatamente associamos à visualidade e imagens mentais e, com ela, toda uma cultura com base na letra e na escrita, tendo sua fonte na tradição filosófica ocidental, que tem em Platão e Aristóteles a visão como principio condutor da ideia, do conceito e do logos. Esta desvocalização – refratária à voz como fenômeno singular, incapturável, movente e indeterminado – leva o filósofo contemporâneo Jean-Luc Nancy, em seu livro À escuta (2002)[6], a apontar uma diferença fundamental entre visão e audição:

Algo diferente ocorre na relação entre a vista ou a visão e o olhar, a visada ou a contemplação do filósofo: figura e ideia, teatro e teoria, espetáculo e especulação se ajustam melhor, superpõem-se, ou mesmo se substituem com mais conveniência que o audível e o inteligível ou o sonoro e o lógico. Haveria, ao menos de modo tendencial, um maior isomorfismo entre o visual e o conceitual, ainda que apenas em virtude do fato de que a morphé, a “forma” implicada na ideia de “isomorfismo”, é de imediato pensada ou apreendida na ordem visual. O sonoro, ao contrário, traz consigo a forma. Ele não a dissolve, sobretudo a alarga, dá a ela uma amplitude, uma espessura e uma vibração ou ondulação cujo desenho nada mais faz que aproximar. O visual persiste até o seu desvanecer, o sonoro aparece e se desvanece mesmo em sua permanência (2013, p.  160).

Zumthor, medievalista, escritor e estudioso do fenômeno da voz, destaca, em seus livros, como, no ocidente, consolidou-se toda uma cultura alicerçada sobre a escrita, a visualidade e a impressão gráfica, que passaram a caracterizar o fenômeno literário, determinando o domínio da letra sobre a voz, relegada a um plano inferior das manifestações da oralidade e do folclore, excluídas da categoria literária. No entanto, observa ele que a voz, embora oprimida, não sucumbiu e pode ser reencontrada nas camadas mais profundas de todo texto verdadeiramente poético. O resgate desse sentido de vocalidade foi favorecido, especialmente, com as novas tecnologias dos séculos XX e XXI, a exemplo dos experimentos da Poesia Sonora que destacamosanteriormente.

Na escrita poética, em se tratando de um marco nessa direção, temos o Lance de dados, publicado em 1897 por Mallarmé, que já antecipou o que poderíamos chamar de escrita gráfico-tonal[7], que Zumthor denominaria, posteriormente, de caligráfica. Nela, explora-se o corpo (tipo)gráfico das palavras e das letras, que deixam de ser meros sinais condutores de ideias, para ganharem a densidade de sentidos potenciais daquilo que ainda não é palavra semantizada, mas que pulsa como Voz do puramente dizível.

Nesse sentido, resgata-se o sentido corporal da escrita poética, que já não é mais um terreno no qual a performance viva, como aquela que Zumthor presenciou na infância, está ausente; o que há é uma diferença de grau entre elas, porém, o que as une é, justamente, a presença de um corpo em cena, como ocorre com a escrita poético-caligráfica:

O que é com efeito caligrafar? É recriar um objeto de forma que o olho não somente leia mas olhe; é encontrar, na visão de leitura, o olhar e as sensações múltiplas que se ligam a seu exercício. Na medida em que a poesia tende a colocar em destaque o significante, a manter sobre ele uma atenção contínua, a caligrafia lhe restituiu, no seio das tradições escritas, aquilo com que restaurar uma presença perdida (Zumthor, 2007, p.73; destaques do autor).

Deste modo, o corpo visual e o vocal, em copresença um do outro, são mais do que figuras e sim corpos em atuação num contexto: o espaço da página, do livro, e, no ponto de fim-começo desse processo de ressonâncias, está o leitor com seu corpo e sua imaginação criadora. Este é o sentido que propomos para figuração que implica performance, isto é, um ato de figurar, encenar, constituir-se como presença corporal no aqui e agora: palavra e não-palavra, voz, visualidade, tatilidade e gestualidade num campo no qual reina a ressonância, locus do significado para aquele que está à escuta, como aponta Jean-Luc Nancy:

Escutar também quer dizer compreender, como se escutar fosse antes de tudo escutar dizer [...] ou melhor, como se em todo escutar devesse haver um escutar dizer, seja ou não o som percebido proveniente de uma fala. Mas isso mesmo, talvez, é reversível: em todo dizer (e quero dizer em todo discurso, em toda cadeia de sentido) há um escutar e no próprio escutar, em seu fundo, uma escuta; o que quer dizer: é porventura necessário que o sentido não se restrinja a fazer sentido (ou de ser logos), mas que além disso ressoe. Tudo que vou propor irá girar em torno dessa ressonância fundamental, ao redor de uma ressonância enquanto fundo, enquanto profundidade primeira ou última do próprio sentido (ou da verdade) [...] O sujeito da escuta ou o sujeito à escuta não é um sujeito fenomenológico ou filosófico, mas o lugar da ressonância, da tensão e de seus rebatimentos, ecos e reenvios infinitos, na amplitude de um desdobramento sonoro pelo qual se modula uma voz que vibra ao retirar de si a singularidade de um grito, de um apelo ou de um canto (2013, p. 163,172).

Na escrita poética, o que chamamos de figuração implicará, fundamentalmente, modos de operar sobre a instância da lingua e de sua escrita para desativar seus usos habituais, seja aquele da representação convencional entre signo e objeto, seja o que faz da página, do papel e da inscrição gráfico-visual meros elementos externos, sem outro significado que não seja o de invólucros de ideias e informações que os ultrapassam. Exige-se uma especial atenção para a língua, na sua capacidade de investir em palavras como coisas, com carnalidade concreta de um ser vivo e não mais representação que está para o representado numa relação mediadora, de valer por um conceito. Ao invés disso, a escrita poética busca a des-palavra, aquela que permanece no limiar entre ser/não ser representação, para dar conta de seu desejo de mimetizar o sentido na sua própria forma, como um ideograma, que é a configuração de uma ideia para ser visualizada, ouvida, sentida, tateada, saboreada e, também, pensada. Descortina-se, assim, toda uma pauta de ressonâncias regidas pela lei da semelhança, na qual tons, ritmos, ecos, sussurros, imagens, silencios, não palavras e palavras tecem uma teia tensionada de encontros e desencontros, impulsonados pelo princípio da atração, repulsão e dispersão.

É neste contexto que tem lugar a corporeidade exigida pela percepção poética, trazendo a presença da figuração performática da voz, isto é, uma cena viva que se levanta da bidimensionalidade do papel e traz à presença do leitor, em sua leitura silenciosa, uma outra voz que enuncia a mensagem no tom, na expressão e na gestualidade, que está naquilo mesmo que se diz e nos espaços vazios do que ficou por dizer. Neste circuito de ressonâncias, o leitor é aquele que é afetado em seu corpo e em sua imaginação pelo desejo irresistivel de reconstruir o lido num outro corpo-voz, atestando o prazer que o texto poético nele provocou, ou nas palavras de Zumthor: “[…] Ora, a leitura do texto poético é escuta de uma voz. O leitor, nessa e por essa escuta, refaz em corpo e espírito o percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página” (2007, p.87).

Este é um leitor-performer, cujo corpo está em cena, e a ele cabe operar a metamorfose do texto poético, em sua potência ressonante de sentidos, em obra, isto é, tornar ato o desejo de reconstrução do lido por meio de sua leitura silenciosa, mesmo sabendo que nenhum ato de leitura é capaz de esgotar a potência de privação de outros significados possiveis, que não passaram a ato.  É, neste ponto, que à leitura silenciosa pode ser aplicado, também, o conceito de performance:

A análise da performance revelaria assim os graus de semanticidade; mas trata-se, antes, de um processo global de significação. [..] Por isso sugeri  a distinção entre a obra e o texto, em se tratando de poesia: o segundo termo designa uma sequência mais ou mensos longa de enunciados; o primeiro, tudo que é poeticamente comunicado, hic et nunc. É no nível da obra que se manifesta o sentido global, abrangendo, com o do texto, múltiplos elementos significantes, auditivos, visuais, táteis, sistematizados ou não no contexto cultural […] Concebida a propósito da performance, a ideia de obra se aplica, em um grau menor (mas de maneira não metafórica!), à leitura do texto poético. (Zumthor, 2007, p. 75-6; destaques do autor)

Figurações da voz na escrita poética de um poema

A figuração performática da voz emerge na relação que se estabelece entre o sujeito-enunciador do poema, o poema e a sua linguagem-coisa, que não representa mas é aquilo que entrediz, e o leitor, afetado tanto em seu corpo – a respiração se altera, as pupilas dilatam, o movimento de olhos, mãos e posição corporal diante do livro – quanto em sua faculdade imaginativa, responsável pela encenação, entre invisível-visível. Sob esse prisma, podemos pensar na singularidade da leitura poética como performance, na medida em que é ela que faz do texto escrito obra encenada, de modo que Zumthor chega a se perguntar se “toda literatura não seria fundamentalmente teatro?”(2007, p.18)

Ponte Vecchio

Também Dante passou por aqui
ruminando sonetos e políticas.
Mas eu só tenho uma câmara na mão
e uma passagem no bolso. (Britto, 2013, p.96)

Tudo se passa numa ponte. Lugar de passagem onde as fronteiras se apagam, de modo que a tradição poética de um Dante cruza a do sujeito lirico para aproximá-los e distanciá-los, simultaneamente. Se ambos passam, deixam marcas que se apagam no tempo, contrastam no modo de poetar e compor: ao ruminar interior de sonetos e políticas de um, sucede a máquina fotográfica e o bilhete de viagem do outro.
Mas onde estão os dispositivos que inscrevem a figuração da voz nessa escrita poética? Se não são as marcas de oralidade – que até poderíamos detectar em algumas expressões vindas da lingua cotidiana, além da ausência de versos marcados por rimas, metáforas, etc. conferindo ao poema um distanciamento da tradição do verso –, em que medida há aí a materialização de uma performance da voz na letra? Tentemos, por nosso ato de leitura poética, levantar essa encenação/figuração do corpo tonal dessa voz-escritura-caligrafada:

Percebemos, por um lado, o eu lírico que se desloca entre o dentro e o fora de si , entre o eu e o outro: a paisagem exterior – ponte Vecchio – a evocação de Dante por um ângulo imprevisto – o da ruminação de poemas e de politica-, sugerindo que entre eles não há oposição; e, por outro, no verso – “também Dante passou por aqui”– neste aqui não se trata mais da “ponte Vecchio” exterior, mas sim daquela que está corporificada no poema, por meio de alguns dispositivos, como:

__O corte-continuidade entre os versos; o ritmo que os integra dois a dois, contrastando dois poetas e duas situações de criação poética; a hibridização poema- prosa: o poema guarda em si a potência de (não/privação) ser prosa e a prosa a potência de (não/privação) ser poema;

__Os fantasmas e as rememorações de Dante em passagem pelo poema, deixando nele, apenas, rastros efêmeros que nem a câmara, nem a palavra poderão capturar, nesta frágil ponte, que é o poema.

__ Os paradoxos: uma câmara na mão de um sujeito lírico incapaz de fotografar a performance de uma cena em mutação, que é sensorial, imaginativa e conceitual ao mesmo tempo, escapando da objetiva, o que a transforma em uma máquina fotográfica inoperante;

Perguntamo-nos, então, de que ponte se trata, esta que aqui, neste poema, se apresenta, sem réplica na realidade exterior e que se torna corpo e presença(-ausência) no campo de ressonâncias desta leitura (-escritura)? Certamente, não mais aquela semantizada pelo código linguístico instituído pelo hábito, mas uma outra, que se coloca contra o nome; talvez pudesse ser apenas uma ponte ressonante, isto é, feita de ecos que reverberam em muitas direções, em movimentos de circunvolução, em vórtices (possivelmente como aqueles que estão na configuração externa e interna do órgão da audição), incapturáveis, inomináveis, tal qual o espaço de uma escuta- que-se-escreve e de uma escrita-que-se-ouve.

E é nesta teia de ressonâncias que o pema acontece: entre o corte das linhas-versos e o aparecimento - desaparecimento da rememoração de Dante, trazido ao poema num complexo associativo com este poema, este poeta, acrescido da reflexão sobre as diferentes formas de poetar, tudo isso sincronizado no mesmo espaço do aqui do corpo deste poema. É no deslocamento entre os versos, que o sentido se faz numa dimensão performática, de globalidade, no espaço de limiar de uma simples ponte, lugar de passagem, movimento e fluidez. Desafio à escrita que busca fixar, mas que, aqui, só vale no instante em que a visão se faz escuta de uma voz.  A do poeta? A do poema? A do leitor?

Figurações da voz na escrita poética de uma narrativa

A narrativa percebida como figuração vocal na escrita é, também, performance de uma cena viva que se constrói à medida que o leitor se incorpora ao texto e o transforma em obra pelo envolvimento de seu corpo e de sua imaginação criadora. Aqui, é a enunciação o dispositivo responsável por construir esta figuração e isto se faz por marcas discursivas de narrador, personagens e autor inscritos no próprio discurso, que é o acontecimento, como diria Blanchot:

A narrativa não é o relato de um acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se […] A narrativa é movimento em direção a um ponto, não apenas desconhecido, ignorado, estranho, mas tal que parece não haver, de antemão e fora desse movimento, nenhuma espécie de realidade, e tão imperioso que é só dele que a narrativa extrai sua atração, de modo que ela não pode nem mesmo “começar” antes de o haver alcançado; e, no entanto, é somente a narrativa e seu movimento imprevisível que fornecem o espaço onde o ponto se torna real, poderoso e atraente (2005, p. 8; destaque do autor).

O estranhamento se faz quando Blanchot destaca a chave da narrativa não propriamente no acontecimento em si, mas na sua espera por realizar-se, ou seja, no espaço de uma ausência – presença, limiar no qual desponta a potência de não (privação) realização e/ou realização. Esta é uma concepção de narrativa como um corpo rebelde à causalidade, cujo começo rompe com a estabilidade de principio-meio-fim, apostando na imprevisibilidade.

Este é, exatamente, o princípio construtivo do romance de Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881, que, como diz o defunto-autor Brás Cubas, no capítulo LXXI, “O senão do livro”: […]“ este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem” (Assis, 1975, p.208). Tomemos um capítulo de Memórias Póstumas de Bras Cubas, como exemplo:

Capítulo LV 
O velho diálogo de Adão e Eva

BRáS CUBAS
.   .   .   .   ?

VIRGíLIA
.   .   .   .

BRáS CUBAS
.    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    .    . 


VIRGíLIA
.    .    .    .    .    !

BRáS CUBAS
.    .    .    .    .    .   

VIRGíLIA
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .  
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     ?    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .  
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .   

BRáS CUBAS
.    .    .     .     .     .    .    .    .    .

VIRGíLIA
.    .    .     .

BRáS CUBAS
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .  
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .  
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     !     .     .  
.    .     !     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .  
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     .     !  

VIRGíLIA
.    .     .     .    .    .    .     .    .    .     .     .     .     ? 

   BRáS CUBAS

.    .     .     .    .    ! 
VIRGíLIA
.    .     .     .    .    ! 


Neste romance, o narrador-defunto é também o autor da escrita, de modo que, neste eu-escritor, desdobram-se outros: o que narra e, ao mesmo tempo, aqueles que são personagem e leitor daquilo que escreve. Neste capítulo, o contexto é dado pelo capítulo anterior, no qual escreve o narrador-autor:

Saí dali a saborear o beijo. Não pude dormir, estirei-me na cama, é certo, mas foi o   mesmo que nada […] o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí achou ao peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dois vadios ali postos, a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva. (ASSIS, 1975, p.185-186)

A cena sem palavras é, no entanto, plena de sentido, capaz de mimetizar, apenas com os sinais gráficos, desativados do uso automático de indicadores de pontuação, um ritmo de corpos que se enlaçam num jogo sexual e erótico, em graus de intensidade que vão da preparação ao clímax e, deste, ao repouso final. Materializa-se, no espaço da página, o desejo de Brás Cubas. Da imaginação para a sua concretização, nesta escrita poético-caligráfica, bastou um salto de um capitulo ao outro.

Resta, ainda, observar, nesta figuração performática da voz, o titulo do capítulo – O velho diálogo de Adão e Eva –, gesto autoral que faz a voz romper o corpo deste livro – estas Memórias Póstumas – e se deslocar para o Gênesis bíblico, em busca do ato de criação originário. Inaugura-se com este casal primeiro – Brás Cubas/Adão e Virgília/Eva – novo ato de criação, que rememora seu outro: o velho diálogo. Mas aqui é um livro, “nada mais do que um livro”, como diria Blanchot (2005, p.10) e, no entanto, é nele, na sua carnadura concreta, que está a figuração do ato criador, pois é só nele, em seu corpo escritural, que um autor-defunto pode se tornar um defunto-autor, cuja vida se faz ato e acontecimento na narração destas Memórias Póstumas de Bras Cubas.

Conclusão

Chegados a este final, só nos resta um olhar retrospectivo para o percurso realizado neste ensaio a fim de avaliarmos o objetivo que nos guiou: o de repensar o lugar da voz na escrita poética distante do vínculo automatizado de marcas de oralidade no discurso. Descortinar novos horizontes de pesquisa sobre a concepção de voz e escuta a partir de estudos de pensadores como Cavarero, Jean-Luc Nancy, Agamben e Paul Zumthor é um caminho promissor para refletir sobre a escrita poética como corpo e performance, elementos caracterizadores das poéticas da voz.

Quanto à hipotese que levantamos sobre o dispositivo de figuração, ao invés de figura, tendo em vista a imediata associação que esta traz para a esfera visual e seus corolários de imagem mental e conceito, esta é uma denominação que vai em outra direção: a de um ato de figurar, encenar ou ainda de performance de um corpo vocal e ressonante na escrita literária, deixando para traz a perspectiva de bidimensionalidade da impressão gráfica, como um simples invólucro vazio de outro significado que não seja o de apontar para a abstração do conceito.

Perceber a escrita poética como potência significativa e ressonante, tal qual fizemos na leitura-escritura do poema e da narrativa selecionados, é assumi-la como um corpo que se encena em outro – o do leitor real, afetado individualmente em suas energias corporais e imaginativas – é um desafio e uma contribuição inestimável para os estudos literários. Da mesma forma, perceber a leitura silenciosa como uma prática performática corporal e imaginativa, e não apenas intelectual, abre um caminho fértil, que poderá gerar outros frutos para a pesquisa sobre recepção, no âmbito da crítica literária.

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Edição crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975.

AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte. Um seminário sobre o lugar da negatividade. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

AGAMBEN, Giorgio. Infância e história. Destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horionte: Editora UFMG, 2008.

AGAMBEN, Giorgio. A potencia do pensamento: Ensaios e conferencias. Tradução de António Guerreiro. Belo Horizonte: Ed. Autentica, 2015.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BRITO, Paulo Hnriques. Mínima lírica. São Paulo:  Companhia das Letras, 2013.

CALVINO, Italo. Um rei à escuta. In:____ Sob o Sol-Jaguar. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CAVARERO, Adriana. Vozes plurais. Filosofia da expressão vocal. Tradução de Flavio T. Barbeitas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011.

NANCY, Jean-Luc. À escuta (Parte I). Tradução de Carlos Eduardo Schmidt Capela e Vinícius Nicastro Honesko. Outra travessia - n. 15 - Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, 2013, p. 159-172.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2ª. ed. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich.  São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

Submetido em 23/10/2018; Aceito em 10/12/2018


Notas

[2]“Um rei à escuta” integra o livro Sob o Sol-Jaguar (1986) , que reúne três narrativas póstumas de Ítalo Calvino (1923 -1985), num projeto não concluído de escrever sobre os cinco sentidos humanos.

[3]A úvula serve como um alarme para a garganta de que algo entrará por ela e as vias respiratórias devem ser fechadas para proteger a cavidade nasal e a traqueia. A úvula possui, ainda, uma função na fonação pois pode modificar o timbre de fonema e participa, também, da articulação das palavras.

[4]Sobre o conceito de potencia como negatividade, diz Agamben, à luz do pensamento de Aristóteles em De Anima: “[...] A potência é, pois, definida essencialmente pela possibilidade de seu não exercício[...] disponibilidade de uma privação.[...] Existe uma forma, uma presença do que não é em ato, e essa presença privativa é a potência”(Agamben, 2015, p.246).

[5]O filosofo italiano Giorgio Agamben faz uma distinção entre Voz – como potência de privação de palavra articulada, daquilo que poderá ou não se tornar ato discursivo – e voz como som da fala: “[...] Uma voz como mero som (uma voz animal) pode certamente ser índice do indivíduo que a emite, mas não pode de modo algum remeter à instancia de discurso enquanto tal, nem abrir a esfera de enunciação. [...] Mas, dado que esta Voz (que escreveremos de agora em diante com maiúscula para distingui-la da voz como mero som) tem o estatuto de um não-mais (voz) e de um não-ainda (significado), ela constitui necessariamente uma dimensão negativa. Ela é o fundamento, mas no sentido de que ela é aquilo que vai ao fundo e desaparece, para que assim o ser e a linguagem tenham lugar” (Agamben, 2006, p. 56; destaques do autor).

[6]O original desta obra de Jean-Luc Nancy é À l écoute. Paris: Galilée, 2002.

[7]Vale destacar aqui o nosso Machado de Assis, que já em 1881, nas Memórias Póstumas, inaugurou essa escrita gráfico-tonal entre nós, em alguns dos mais inventivos capítulos do livro, como é o caso de O velho diálogo de Adão e Eva.

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