1147 visualizações.Cantos de trabalho e linhas de fuga em Milton Nascimento
Roniere Menezes[1]
[1]Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG)
RESUMO:
Este ensaio visa a refletir sobre ressonâncias dos tradicionais cantos de trabalho em composições de Milton Nascimento, muitas delas criadas com parceiros do grupo chamado Clube da Esquina. O artigo inicia-se demonstrando diálogos existentes entre as composições de Milton e a produção poética mineira. O texto almeja, nesse sentido, expandir a própria noção de literatura, ao incorporar, em seu estatuto, a canção popular. Nas produções de Milton, percebe-se, sob diversas nuanças, influências de cantos de trabalho. Isso pode ser verificado pela temática, pela marcação rítmica, pela entoação melódica e pelo método de composição. As canções investigadas revelam conjugações entre trabalho, jogo e lazer. Os cantos apresentam questionamentos sobre a fratura social do país e exemplificam importantes formas de luta pela liberdade.
Palavras-chave: Milton Nascimento – Música – Literatura – Cantos de Trabalho.
ABSTRACT:
This essay aims to reflect on resonances of the traditional working songs in compositions of Milton Nascimento, many of them created with partners of the group called Clube da Esquina. The article begins by demonstrating dialogues between Milton's compositions and poetic production in Minas Gerais. The text aims, in this sense, to expand the very notion of literature by incorporating, in its statute, the popular song. In Milton's productions, one perceives, under different nuances, influences of work songs. This can be verified by the theme, the rhythmic marking, the melodic intonation and the composition method. The songs investigated reveal conjugations between work, play and leisure. The songs present questions about the country's social fracture and exemplify important forms of struggle for freedom.
Keywords: Milton Nascimento – Music – Literature – Work songs.
Diálogos com a literatura mineira
“Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas. (ROSA, 1985, p. 270) escreveu Guimarães Rosa. “Minas não é palavra montanhosa./É palavra abissal./ Minas é dentro/ e fundo” (DRUMMOND, 2002, p. 774), escreveu Carlos Drummond. “Sou do mundo, sou Minas Gerais”, escreveram Lô Borges, Márcio Borges e Fernando Brant (“Para Lennon e McCartney”). Em Minas há Sussuarões e veredas; há os espaços da mineração e os Campos Gerais, instâncias das plantações e das pastagens do gado. Guimarães Rosa parece “habitar” mais o espaço dos Gerais. Drummond traz a memória dos territórios da mineração. Milton Nascimento e os seus parceiros mesclam os ambientes, as perspectivas, assumindo diversas vozes, diversos ritmos. Nas canções do Clube da Esquina, ao contrário do que pode parecer, Minas não se configura apenas como o dentro, o fundo, o esconso-escondido, lugar “onde o oculto do mistério se escondeu”, como canta Caetano Veloso e “O ciúme”; é também, e talvez principalmente, o fora, o contato com outros povos, outras culturas, outras sonoridades, contatos esses muitas vezes subterrâneos, ligados por meio da África ancestral, da América indígena ancestral, do sonho comunitário e republicano, da crença nos trabalhos coletivos, da esperança no surgimento de um novo mundo, como diz a canção de Beto Guedes e Ronaldo Bastos interpretada por Milton: “Quem sonhou/ só vale se já sonhou demais”.
Deve-se salientar que as letras do Clube da Esquina recebem influência – além do cinema – de vários autores brasileiros e estrangeiros lidos pelos jovens letristas. Para ficarmos entre os mineiros, as letras revelam diálogos com diversas gerações e estilos, passando pela tonalidade bucólica do Arcadismo de Cláudio Manuel e Tomás Gonzaga, passando pelas nuanças etéreas do simbolismo de Alphonsus de Guimarães, pela pedra aguda e cortante de Drummond, pelo timbre religioso e surrealista de Murilo Mendes, pela ambientação telúrica e o pensamento movente de Guimarães Rosa, pela dicção negra ancestral de Adão Ventura, entre outras ressonâncias. Poetas mineiros também se referem ao xamã do Clube da Esquina. Ricardo Aleixo, em “Música mesmo”, escreve:
Música
música mesmo
é Milton
quem fazsó com
o som
que sai
da sua boca
o oco
da vida
por dentrodo centro
da terra
até o breu
do céu
sem deus
que pesa
imenso
sobre nóscomo se apenas
“palmilhasse
vagamente”
as estradas
deste mundo
com a voz
(ALEIXO, 2018, p 85)Milton e parceiros compuseram diversas músicas relacionadas à literatura de Carlos Drummond e Guimarães Rosa. Isso ocorre de modo mais direto em “Canção amiga”, parceria entre Milton e Drummond; em título de canção, como em “Travessia”, última palavra de Grande sertão: veredas; no diálogo claro com o poema “No meio do caminho”, de Drummond, na mesma canção “Travessia”, quando notamos a conjunção entre a palavra “pedra” e a nota mais aguda e difícil de se cantar na música: “Meu caminho é de pedra”. Em “Travessia”, a dupla Milton e Brant finge esquecer o sonho, a utopia – signos exponenciais de toda a trajetória de suas canções – endossando a força de trabalho, a ideia de resistência e o desejo de seguir adiante. O sujeito lírico conta apenas com o corpo e a voz, únicos bens que possui e que podem lhe assegurar novos espaços de vida e liberdade: “já não sonho, hoje faço, do meu braço o meu viver”.
Uma outra importante canção da dupla Milton e Brant faz referência ao mesmo poema de Carlos Drummond: “Itamarandiba”: “No meio do meu caminho/ Sempre haverá uma pedra”. No texto, a pedra de estradas e ruas reflete a própria vida miúda do povo, mas, das cidades pobres do Vale do Jequitinhonha surgem, como figuras de resistência, mulheres morenas e homens felizes “como se fossem meninos”. Pelo olhar e voz do poeta, a fantasia infantil mescla-se aos sonhos de liberdade do presente, sonhos que devem vicejar em meio à aridez da paisagem, como a flor que rompe o asfalto, em outro poema de Drummond.
Em Minas, a chamada linguagem da fresta – pequenas brechas metafóricas encontradas por compositores para tentarem impedir que suas letras fossem censuradas – torna-se mais forte justamente porque é invadida pelas brumas das montanhas de cidades barrocas. Segundo Pablo Castro: “os procedimentos musicais, sobretudo harmônicos, dos compositores do Clube da Esquina, de maneira geral, demandavam letras mais abertas, mais icônicas, menos narrativas, de forma que o gosto da palavra, das imagens, se relacionasse com o abstracionismo e o caráter errante, vago, de muitas das canções do movimento.” (CASTRO, 2017, p. 11).
Em termos sonoros, as músicas do Clube da Esquina recebem influência da folia de reis, de hinos sacros, das festas da tradição popular, como o maracatu, a marujada e o congado, passa pela bossa nova, pelo samba-jazz; abre-se ao contato com o barroco, o clássico, o blue, o jazz, o soul, o rock and rol, o rock progressivo, o canto latino, entre outras ressonâncias. Sobre o contato com a música latina, cumpre salientar que, além dos diálogos sonoros, havia também o interesse em aproximar-se de povos que estavam vivendo períodos de exceção, por conta de regimes militares implantados na América Latina a partir dos anos 1960 do século XX.
Ivan Vilela estabelece reflexões sobre a música popular brasileira, acentuando seu parentesco com a música norte-americana e cubana, assinala a influência, em sua formação, de Mussorgsky, Debussy, Ravel, Big bands, músicas de cinema, populares, cantos afro, choro, bossa nova, “que mais que inovar nas harmonias colocou a tensão harmônica na voz” (VILELA, 2010, p. 20). O autor destaca o fato de serem as músicas populares brasileiras e norte-americanas extremamente ricas e diversificadas harmonicamente, e pontua uma diferença fundamental que a música popular mineira estabelece no conjunto da produção nacional deste gênero:
O Clube da Esquina traçou um caminho singular com harmonias muito próprias e originais, como se tivesse pegado um atalho e chegado na ponta das conquistas adquiridas ao longo das décadas. Olhando para a singularidade e ouvindo as harmonias de Milton Nascimento, Toninho Horta e Tavinho Moura fica-nos fácil perceber essa marca. (VILELA, 2010, p. 20)
Os diálogos entre canção e literatura ampliam-se em diversas formas na produção de Milton, como na criação de trilha sonora para filmes e de canções que buscam traduzir conceitos centrais de poemas, contos, novelas. Um bom exemplo de trabalho intertextual se dá em “A terceira margem do rio”, composição de Milton Nascimento e Caetano Veloso para o filme homônimo, de Nelson Pereira dos Santos. A criação funciona como tradução musical do sublime conto de Guimarães Rosa e traz os versos: “Margem da palavra/ Entre as escuras duas/ margens da palavra/ Clareira, luz madura/ Rosa da palavra/ Puro silêncio, nosso pai.”
Milton escreve, para canção de Tavinho Moura, a letra “Noites do sertão”, trilha sonora do filme homônimo, de Carlos Alberto Prates Correia (1984), baseado na novela rosiana “Buriti”, de Corpo de baile: “Não se espante assim meu moço/ com a noite do meu sertão/ Tem mais perigo que a poesia/ Do que o jogo da razão”. Milton também compõe, com Fernando Brant, “Yauaretê”, para disco homônimo. A composição inspira-se no feroz clima do conto rosiano.
Em 2017, o compositor mineiro grava “Tempo de amar”, música de Délia Fisher e Carlos D. de Andrade, com letra de Ronaldo Bastos. A peça foi elaborada a partir de versos do poema de Drummond intitulado “O tempo passa? Não passa”, do livro Amar se aprende amando.
Nas canções do Clube da Esquina reaparecem imagens ligadas à fuga para o campo, bem ao gosto da contracultura dos anos 60/70. Fugere urbem é um conceito clássico retomado pela poética árcade mineira. Ao sugerir a fuga da cidade para o campo, elege os espaços rurais como espécies de heterotopias em relação aos territórios de cerceamento vividos na cidade. Locus amoenus é também um conceito apropriado pela literatura árcade e significa um ambiente bucólico idealizado, dotado de harmonia e tranquilidade. Nesse sentido, podemos nos lembrar de “Fazenda”, de Nelson Ângelo: “Água de beber, bica no quintal, sede de viver tudo”, e “Carro de boi”, de Maurício Tapajós e Cacaso: “Que vontade eu tenho de sair/ num carro de boi ir por aí” – canções interpretadas por Milton – ou mesmo “Veveco, panelas e canelas”, de Milton e Brant, onde aparecem os versos: “Eu não tenho compromisso, eu sou biscateiro/ Que leva a vida como um rio desce para o mar”.
Algumas canções revelam o interesse de se estabelecer uma interação mais amena entre trabalho e uma espécie de estética da existência, como “Amor de índio”, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, e “Cigarra”, de Milton e Ronaldo Bastos. Nessas canções, surge a ideia do trabalho prazeroso, a mescla entre trabalho, lazer e vida amorosa, como podemos ver em “Amor de índio”: “Abelha fazendo o mel/ vale o tempo que não voou/ (...)/ o fruto do trabalho é mais que sagrado, meu amor/ A massa que faz o pão/ Vale a luz do teu suor/(...) No inverno te proteger/ No verão sair pra pescar.” Em “Cigarra” aparecem os versos: “porque a formiga é melhor amiga da cigarra/ raízes da mesma fábula”. Nas letras do Clube da Esquina, insetos são utilizados para reforçar a conjugação entre cuidado, prazer, arte e trabalho. O círculo da vida obedece às estações do ano, a fruição existencial integra-se ao tempo e ao espaço. Como pensa Giorgio Agamben, parece que, nestas composições, o período de não-trabalho revela-se apenas um modo de não se exercitar a potência de executar algo, mas essa potência, esse saber fazer permanecem. Desse modo, eliminam-se as contraposições comuns existentes entre tempo de trabalho e tempo de repouso, evidenciando o valor de diversas formas de produção:Contemplação e inoperosidade são os operadores metafísicos da antropogênese: liberando o homem vivente de qualquer destino biológico ou social e de qualquer tarefa predeterminada, elas o tornam disponível para aquela particular ausência de obra que estamos habituados a chamar de “política” e “arte”. Política e arte não são tarefas nem simplesmente “obras”: elas designam a dimensão na qual as operações linguísticas e corpóreas, materiais e imateriais, biológicas e sociais são desativadas e contempladas como tais. (AGAMBEN, 2018, p. 79-80).
Se em Milton há os momentos de contemplação, inoperosidade e mesmo ociosidade, há as temporalidades ligadas aos cantos de trabalho. Essas também relacionam-se intimamente ao cotidiano, a saberes e fazeres. A ideia do encontro, a convivência comunitária, a reunião de esforço corporal, necessidade vital e forma de superação de tensões conjugam-se entre ritmo, melodia e labor. Edilberto José de Macedo Fonseca trata dos cantos de trabalho:
Produzir o pão, roçar o mato, puxar a rede, amassar a farinha, pilar o milho, quebrar o coco, lavrar a terra, consertar o açude, fazer a casa, limpar a trilha na mata. Atividades difíceis e árduas, em que o suor escorre, as mãos latejam e os corpos se curvam à labuta e à necessidade. Sob o sol, a chuva, no breu da noite ou no clarão do dia, por vontade, fé ou precisão, só ou acompanhado, entre olhares cúmplices e no ritmo de movimentos fortes e plenos. Em grupo, cantam e se movimentam nas batidas que dão ritmo ao trabalho, com braços que se movem, corpos que se dobram e desdobram numa só voz e pulsação. O compasso marcado embala a todos num só golpe, música e trabalho tornando mais ameno o cotidiano, fazendo o tempo fluir e a dor ganhar a companhia da mão que bate, do corpo que vibra e da voz que canta. É a vida congregando pessoas e consolidando comunidades em torno de atividades e encontros em que cooperação, partilha e celebração se interpenetram, unindo fazeres expressivos e afazeres necessários. (FONSECA, 2015, p. 10-11)
A potência da amizade
Milton Nascimento surge no cenário cultural brasileiro como um grande rio, talvez o São Francisco, recebendo afluentes de diversas regiões, cada um dos parceiros chegando com suas peculiaridades, seus timbres, seu swing, sua poética. Um rio, uma escuta. Ao lado de um grande cantor e compositor, Milton revela-se um artista dotado do dom da escuta. Nesse sentido, vale lembrar o papel desempenhado por Bituca no filme Noites do sertão, de Carlos Alberto Prates Correia, baseado na novela “Buriti”, de Guimarães Rosa. Milton interpreta a personagem negra Chefe Ezequiel, empregado negro e meio doido que vivia nos fundos da fazenda e ouvia os sons e os avisos da noite, imperceptíveis aos habitantes comuns do lugar.
Como o rio que percorre diversos territórios das Minas e dos Gerais, dos sertões e das veredas, Milton Nascimento aparece no cenário da canção popular brasileira de forma densa, trazendo na voz mistério das cidades barrocas e o sonho de liberdade dos poetas árcades. À tristeza atávica de algumas melodias e ao ritmo contagiante de outras, mescla-se ao desejo de liberdade de povos negros e índios e diversas nações, dos trabalhadores simples do eito, marcas identitárias que ressoam nos ritmos contramétricos dos “tambores de Minas” e do jazz, nas escalas andinas, nos toques de modas de viola, traços presentes em diversas composições. Como centro do projeto musical do Clube da Esquina, Milton reúne em torno de si, como parceiros, músicos jovens, mas bastante tarimbados, e letristas em início de carreira. Prefere compor entre amigos, como se esses fossem afluentes dispostos a seguirem, juntos, a jornada fluvial e musical. Evita, desse modo, dispersar as águas. A maioria dos letristas começaram a escrever com o músico; não tinham essa experiência anteriormente: Fernando Brant, Márcio Borges, Murilo Antunes aprendem a fazer, fazendo. Apenas o carioca Ronaldo Bastos, entre os parceiros mais constantes, trazia a experiência da chamada “poesia marginal” do Rio de janeiro. Esse aspecto, o da reunião de amigos que iniciam e seguem juntos, por décadas, trabalhando em conjunto, lembra algumas discussões contemporâneas em torno do conceito de comunidade e apresenta-se como traço essencial na avaliação de composições do autor. A perspectiva assemelha-se ao conceito africano de Ubuntu. Segundo o professor Roberto Bartholo:Para Ubuntu o "eu" de um vivente humano é um nó contingente numa rede de conexões em fluxo, onde o "nós" tem um papel central. Esta rede relacional se dá em três dimensões, incluindo os viventes, os ancestrais e os descendentes ainda por nascer. Como coloca Bénézet Bujo "... para a África negra não é o cogito ergo sum cartesiano, mas sim um existencial cognatus sum, ergo sumus [eu estou em relação, logo nós somos] que é decisivo" (Bujo, 2001, p. 22). (BARTHOLO, 2018).
Em outro momento de seu texto, Bartholo retoma ensaio de Magobe Ramose para assinalar:
Ramose escreve ubu-ntu como uma palavra hifenizada. Nela ntu indica o processo da vida como um desdobramento do universo através de manifestações concretas em diferentes formas e modos de ser, onde se inclui a emergência dos seres humanos. E ubu expressa a existência de pessoas entrelaçada na comunidade e no universo como um todo, como um nó no fluxo de uma rede de relações. (BARTHOLO, 2018).
Nesse sentido, podemos nos lembrar da canção “Comunhão”, de Milton e Brant, onde aparece a todo o caráter órfico das composições dos parceiros, ligado, inclusive à herança de procissões religiosas mineiras: “O mundo tem de ser comunhão/ O pão e o vinho enfim repartidos.” O artista quer, deseja que o mundo seja mais bem partilhado; coloca toda sua expressão para levar aos ares o comunicado. Para isso, utiliza-se muito constantemente do recurso do coro, principalmente quando as músicas parecem almejar uma energia comunitária, um congraçamento, como nos cantos de trabalho, religiosos, de festa.
Diversas produções de Milton relacionam-se à noção de “Canto de trabalho”. A percepção da importância do trabalho coletivo, a ideia de reunir um grupo com interesses comuns, mas com diversas peculiaridades, nos lembra, inclusive o conceito de “multidão”, de Michael Hardt e Antonio Negri. (HARDT e NEGRI, 2005). Memórias dos cantos tradicionais realizados durante o trabalho surgem de forma marcante em diversas composições de Bituca.Cantos de trabalho
Em crônica intitulada “Trabalhador e poesia”, presente no livro “Passeios na ilha”, de 1952, Carlos Drummond escreve sobre um livro que pensava organizar sobre poesia social brasileira. O poeta assinala que, ao coligir o material, percebe “relativa escassez de poemas inspirados nas técnicas de trabalho e na personalidade dos trabalhadores. Boa parte de nossa poesia social fica em declaração de princípios, isto é, não chega a produzir-se.” (DRUMMOND, 1967, p. 662.) Para o autor: “cantam simplesmente o trabalho, ou o trabalhador em geral, uma espécie abstrata de trabalhador.” (DRUMMOND, 1967, p. 663). De acordo com Drummond, com a poesia moderna, interessada em relevar o cotidiano brasileiro, o trabalhador e o trabalho ganham novas nuanças, mais próximas do Brasil real.
Ao pensarmos em canções de trabalho presentes na música popular brasileira, surge um elemento novo em relação à poesia do livro, mas resgatado de velhas tradições: o ritmo marcante e repetitivo, que às vezes se torna mais brando, a mescla entre canto e gestualidade, a sutileza da condução harmônico-melódica variando entre intensidade e leveza, tensão e repouso são importantes elementos que a canção traz, complementando as imagens do trabalho presentes no campo literário.
Cantos de trabalho nos rios
O documentário Brasilianas: Cantos de Trabalho, de 1955,de Humberto Mauro, inicia-se com a seguinte explicação escrita, em branco, na tela negra: “Canto de trabalho é música para suavizar e alegrar as tarefas braçais. As cantigas de trabalho – inspiradas na própria tarefa – existem em todo o Brasil, e nelas se encontram muitos dos mais belos fragmentos do folclore brasileiro”. (MAURO, 1955)
No filme, são entoados versos de um canto de barqueiro: “Vou descendo rio abaixo/ numa canoa furada/ arriscando minha vida/ por uma coisinha de nada”. Os mesmos versos estão presentes também em “Uma estória de amor: festa de Manuelzão”, de Guimarães Rosa: “Travessei o São Francisco / numa canoa furada: / arriscando a minha vida, / sempre assim não vale nada...” (ROSA, 2006, v. 1, p. 196)
A música reaparece na canção folclórica do Vale do Jequitinhonha intitulada “Beira Mar Novo” (Adaptação de Frei Chico e Lira Marques), em gravação feita por Milton, no DVD Ser tão gerais, gravado em 2004, junto com o coral Meninos de Araçuaí e o grupo teatral Ponto de Partida: “Vou levando minha canoa/ lá pro poço do pesqueiro/ arriscando minha vida/ numa canoa furada”.
Continuando a temática da embarcação, podemos nos lembrar de “Canoa, Canoa” (Nelson Ângelo e Fernando Brant), onde a gestualidade do remador contribui para o andamento da cantiga: “Canoa canoa desce/ No meio do rio Araguaia desce/ (...) Ava canoeiro prefere remar/ Ava prefere pescar.” Segundo Edilberto Fonseca, “(...) nem todo processo de trabalho é necessariamente alienante, especialmente quando envolve uma série de mecanismos estético-expressivos que acabam por levar ao reforço de laços comunitários e pessoais.” (FONSECA, 2015, p. 12).
Em 1990, Milton grava, no disco Txai, “Sertão das águas” (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), onde ouvimos os seguintes versos que dialogam com Guimarães Rosa: "Corre nas veias, remar e seguir viagem/ viver só carece coragem.” Em Grande sertão veredas, podemos ler: “(...) viver é muito perigoso”. (ROSA, 1986, p. 443).
Além das composições em parceria, há, nas criações apenas de Bituca ou naquelas em que ele coloca letra em trabalhos de parceiros, importantes canções que se associam a cantos de trabalho e outras formas de luta pela liberdade. Nem todos sabem, mas Milton é um bom letrista. Em suas letras, faíscam sentidos que ressoam em composições com outros amigos, como a memória do trabalho, da escravidão, a luta contra distintas formas de injustiça, mas também a força transformadora do sonho e da amizade. Nesse sentido, podemos nos lembrar de “Canção do Sal” e “Morro Velho” e “Pai grande”.
Canções do sal, da terra e do terreiro
Em ensaio intitulado “O jazz: sua origem”, Vinicius de Moraes, que viveu nos estados Unidos na segunda metade dos anos 1940 e teve, na época, muito contato com músicos do jazz e do blues, escreve: “Ao longo do século XVIII, cerca de 20 mil escravos negros seriam despejados anualmente nas plantações de tabaco, açúcar e arroz” dos Estados Unidos. (MORAES, 2013, p. 37). Segundo Vinicius: “Cantando começaram a se comunicar uns com os outros. (...) Quanta conversa de amor, quanta senha de aviso, quanto plano de fuga não deve ter corrido a pauta invisível estendida sobre o algodoal em flor!” (MORAES, 2013, p. 45). Para o poeta:
(...) frequentemente, durante a labuta diária, tinham os escravos que se haver com trabalhos que exigiam esforço de grupo, e ao se aplicarem em tais trabalhos, procuravam facilitá-lo por meio de articulações vocais com uma referência musical qualquer obediente ao próprio ritmo do trabalho em progresso. Teriam assim ritmos de carregar e descarregar – formas musicais de caráter eminentemente social. (MORAES, 2013, p. 46)
Este trecho do ensaio de Vinicius relaciona-se a uma importante declaração de Milton sobre “Canção do sal”. Segundo o compositor, na época em que compôs a música, período em que trabalhava no escritório da empresa hidrelétrica de Furnas, na Praça Sete, coração de Belo Horizonte, meados da década de 1960, estava lendo um livro relativo à história do jazz, e uma parte tratava das canções de trabalho de negros na região do Mississipi. Procurando inspiração para criar a sua própria canção de trabalho, Milton lembrou-se de viagens que fazia com sua madrinha, mãe de Lília, sua mãe adotiva, para Cabo Frio e Búzios, quando criança: “quando a gente ia pra esses lugares, a gente passava pelas salinas. (...) E aí, essas lembranças na cabeça, eu falei: “já sei”, e comecei a “Canção do sal”. (AMARAL, 2018, p. 95).
Dentre as composições do autor, “Canção do sal” pertence àquele grupo que traz de forma mais nítida a ideia do canto de trabalho: “Trabalhando o sal é amor é o suor que me sai (...) Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir/ E ao chegar em casa encontrar a família sorrir/ Filho vir da escola problema maior é o de estudar/ Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar/ Vou viver cantando o dia tão quente que faz”.
Na letra, o trabalho árduo seria recompensado pela utopia de uma vida mais digna para a família. O canto surge como forma de tentar abrandar um pouco o calor cotidiano, contribuindo para a fruição do pensamento que busca distanciar-se do instante da labuta. O movimento contínuo do trabalho invade o ritmo da canção. No refrão, há uma alteração para um compasso mais rápido e uma alteração para o modo menor: “Água vira sal lá na salina/ Quem diminui água do mar/ Água enfrenta o sol lá na salina/ Sol que vai queimando até queimar.” Com a mudança do tom maior para menor, parece que idealização de vida melhor no futuro, presente nos versos anteriores, é repentinamente alterada. O trabalho infindável relaciona-se ao mar de águas inesgotáveis. O suor, relacionado ao sol marinho, termina por questionar a figuração mais lenta e sonhadora presente em certos versos e compassos, sugerindo tanto uma vertigem pelo excesso de trabalho ou mesmo uma fagulha de revolta, ligado a uma espécie de epifania a desvelar uma compreensão mais aguda do lugar do trabalhador da escala social e o seu desejo de transformação existencial.
Em entrevista, Milton assinala ter conhecido canções do trabalho em Minas Gerais, quando foi levado por Tavinho Moura a uma fazenda. Relata o cantor: “Tem uma turma que trabalha aqui e uma outra que trabalha lá longe, e esses daqui cantam alguma coisa e de repente o pessoal de lá responde. Puta que o pariu!” (AMARAL, 2018, p. 94).
Cumpre ressaltar que a ideia de canto formulado em uma estrutura em que aparecem versos sugerindo a entonação de uma pergunta ou de uma proposição, seguida de uma resposta, de um complemento pode ser observada em “Raça” (Milton e Brant. Milton, 1976): O primeiro verso apresenta uma questão e logo em seguida surge o complemento: “Lá vem a força, lá vem a magia/ que me incendeia o corpo de alegria/ Lá vem a santa maldita euforia/ que me aquece o corpo e me rodopia.”
Segundo Ivan Vilela, a percussão presente em diversas músicas do Clube da Esquina rompe com a linhagem da MPB que apresenta uma percussão de origem baiana ou carioca. Vilela assinala que há, em Milton, uma África independente daquela presente no samba. Lembrando-se do livro Tia Ciata e a pequena África do Rio de Janeiro, de Roberto Moura, Vilela escreve que, neste livro, o autor demonstra haver uma diferença entre os negros escravizados que seguiram para a Bahia e os que foram para Minas:
Os negros que foram para a Bahia eram, na maior parte das vezes, de etnia iorubá, normalmente negros islamizados, alfabetizados e muito organizados em suas lutas. Mantiveram seus traços de origem de maneira mais intacta que os nagôs, etnia que predominou em Minas Gerais. Estes, para sobreviverem, mesclaram seus traços à cultura dominante, ao catolicismo. Suas religiões foram amalgamadas a elementos do catolicismo popular para assim preservarem sua essência. É essa a África que vem com Milton. A África dos congados e moçambiques, catopés e marujadas, caiapós, candombes e vilões. (VILELA, 2010, p. 21-22).
A estrutura do canto de trabalho, em “Raça”, aparece, na confecção da canção devido à sua temática. A canção traz a imagem de artistas negros que, desafiando estruturas conservadoras e racistas, conseguiram imprimir sua imagem, sua voz, seu talento na história da cultura nacional. Os versos também fazem referências a trabalhadores comuns: “É Clementina cantando bonito/ as aventuras de seu povo aflito/ É Seo Francisco, boné e cachimbo/ Me ensinando que a luta é mesmo comigo./Todas Marias, Maria Dominga/ Atraca Vilma e Tia Ercília/ É Monsueto e é Grande Otelo, atraca atraca/ que o Naná vem chegando.” O percussionista Naná Vasconcelos vem chegando com o sua rítmica incomum, retirando sons do corpo, buscando-os por meio de ligações xamânicas com outros mundos. Atracar pode significar, por exemplo, lutar ou abraçar afetuosamente. Os dois termos combinam com a ideia da canção de propor o fortalecimento dos negros pela caminhada em comum.
Um traço importante nessa canção, relacionado à estrutura do canto de trabalho é a ideia do inacabamento, um primeiro verso fica soando em certa tensão à espera de ser completado pelo seguinte e novamente outra suspensão se faz em busca de outra “costura”. Ideias e versos novos podem surgir nesse jogo sábio de composição. Mesmo não se configurando como explícito “canto de trabalho”, “Ponta de areia”, de Milton e Brant, feita a partir de reportagem de Fernando Brant para a revista O cruzeiro, traz reflexos dessas cantorias tradicionais, onde é bastante comum uma entonação ligada a uma prosódia que se aproxima da ideia de pergunta e resposta, como já dissemos. Um primeiro verso é lançado, deixando no ar uma tensão, resolvida com o verso seguinte: “Velho maquinista com seu boné/ lembra o povo alegre que vinha cortejar”. A canção segue o ritmo da Maria Fumaça que já não canta e traz o lamento do sujeito lírico pela destruição da Estrada de Ferro Bahia-Minas. Durante o Regime militar, o governo resolveu acabar com a via férrea que ligava Araçuaí, em Minas, a Caravelas, na Bahia, criando, com o ato, cidades fantasmas. Foram eliminados empregos e encontros cotidianos, como o do povo com o maquinista. O fim da ferrovia terminou por prejudicar a economia e a vida social de cidades. Estas, outrora puderam contar com aqueles trilhos que lhes ampliavam os horizontes, com os apitos do trem que acalentavam o tempo da vida comum.
Segundo José Miguel Wisnik,
(...) o uso mais forte da música no Brasil nunca foi o estético-contemplativo, ou da “música desinteressada”, como dizia Mário de Andrade, mas o uso ritual, mágico, o uso interessado da festa popular, o canto de trabalho, em suma, a música como instrumento ambiental articulado com outras práticas sociais, a religião, o trabalho e a festa. Com a urbanização e a industrialização, esse uso ganhou uma amplitude ainda maior na caixa de ressonância das grandes cidades, com o advento do rádio, do disco, e do carnaval moderno”. (WISNIK, 2005, p. 29).
Por meio da música interessada, de caráter coletivo e não individualista, Mário queria visualizar o instinto nacional. A transformação da música interessada em música desinteressada, artística, deveria tentar preservar esse ethos presente na música popular folclórica e, muitas vezes, perdido na música de consumo da sociedade capitalista. Como sabemos, esse aspecto resolve-se de forma muito melhor na música popular – com todos os dilemas aí presentes – que na erudita, como almejava o poeta paulista.
Em “Morro Velho”, Milton conta-nos a história do Brasil por meio de uma singela toada mineira, inclusive com ponteio de viola caipira. Aqui, aparece a imagem do negro no trabalho e a melodia, mais lenta, sugere o inconformismo do sujeito lírico diante da história. A canção narra, em terceira pessoa, o tempo em que o filho de trabalhador e o sinhozinho brincavam pela fazenda. Depois o senhor vai para a cidade estudar, volta doutor, casado e patrão do antigo amigo: “Já tem nome de doutor, / E agora na fazenda é quem vai mandar/ E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.” A história apresenta uma relação com a memória de Milton, no tempo em que frequentava a fazenda de uma tia de Wagner Tiso, em Três Pontas. Vendo crianças filhas do fazendeiro brincar com filhos de um empregado chamado Aniceto, Milton imaginou, no futuro, a separação entre eles, pensamento que lhe atormentara, funcionando como fagulha da criação. A separação dos velhos amigos, segundo Bituca, realmente aconteceu anos mais tarde.
A canção “Cio da terra” (Gerais, 1976), composta por Chico Buarque e Milton Nascimento – que também compartilham a autoria de “Primeiro de maio”, música do mesmo disco – marca-se pela conjugação entre gestualidade corporal no trabalho e andamento musical. Gravada inicialmente por Bituca em tom menor, “Cio da terra” tem a harmonia alterada para tom maior, na gravação da dupla caipira Pena Branca e Xavantinho. Com a “adaptação”, a melodia permanece, mas agora em outro “clima”. Parece que a canção perde a sofisticação inicial, certa “assepsia” estilística de quem olha para o rural a partir do ponto de vista externo, da cidade. Assume, desse modo, uma voz e uma perspectiva que brota do chão da tradição popular rural. Nesse sentido, parece que a canção retorna ao seu lugar de origem: o espaço de canto do trabalhador rural. Os irmãos trabalharam na roça, em Minas Gerais, com os pais e mais cinco irmãos, desde criança. Começaram a cantar e 1962 e em 1968 foram para São Paulo tentar a carreira artística. Apenas em 1980 gravam o primeiro LP, onde aparece “Cio da terra”.
“Levantados do chão” (Milton Nascimento e Chico Buarque. Nascimento, 1997) compõe o projeto do livro Terra, de Sebastião Salgado. Com música de Milton Nascimento e letra de Chico Buarque, o título retoma o nome do romance Levantado do chão, de José Saramago. A composição pode ser vista como continuidade de “Cio da Terra”. “Levantados do chão” revela a busca de resposta a uma questão apresentada logo nos primeiros versos: “Como então desgarrados da terra/ Como assim levantados da terra?”. A pergunta ecoa como que por um vale imenso, sem receber um retorno, uma resposta. Podemos ler o texto como a representação de corpos que se erguem do chão e, de modo indignado, propõem várias indagações a respeito da dura e insensata condição de vida de trabalhadores da terra condenados a andarem sem rumo, desgarrados do chão. A questão da injustiça social apresenta-se de modo contundente no seguinte trecho: “Num balanço de rede sem rede/ ver o mundo de pernas por ar”.
Cantos de mulheres
Uma importante e bonita canção de trabalho de Milton, com apenas instrumento e vocalização, chama-se “Trabalhos”, presente na peça “Maria Maria”, de 1976 (Maria Maria; Último trem, 1976). Posteriormente, em homenagem a Elis Regina, a música ganha letra de Fernando Brant e passa a se chamar “Essa voz”. Segundo Chico Amaral, “‘Trabalhos’ é uma composição única, daquelas que só Milton apresentou. (...). Música da senzala, com a originalidade de um Wayne Shorter. E curta, sintética.” (AMARAL, 2018, p. 211).
Mas a música que marca a peça do período inaugural do Grupo Corpo é mesmo “Maria, Maria”. A mulher negra brasileira, trabalhadora, surge, na canção, com potência, destemor, o desejo transformador, características traduzidas com o cuidado inventivo de Milton: “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre”. Segundo Chico Amaral:
Quando a canção Maria, Maria” soou nas caixas de som do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, [1976] uma doce luz celestial e humana cobriu o mundo. (...) A harmonia me lembrou alguma coisa dos Beatles, mas o resultado era Milton no estado mais inspirado, a quintessência da musicalidade, o resumo de tudo. (...). (AMARAL, 2018, p. 211).
Em diálogo com “Maria, Maria”, podemos nos lembrar de “Os escravos de Jó (Milton Nascimento e Fernando Brant. Milagre dos Peixes, 1973), cantada por Clementina de Jesus em Milagre dos Peixes, em 1973: “Saio do trabalho ê/ Volto para casa ê/ Não lembro de canseira maior/ É tudo o mesmo suor.” Milagre dos Peixes foi bastante censurado e diversas canções saíram sem as letras, apenas com a instrumentação, como e vocalizes. Nesse sentido, a voz negra bem marcante de Clementina soava como uma sobrevivência de lutas antigas dos trabalhadores escravos, como canto de revolta contra as condições de vida e opressões do Brasil do Milagre Econômico, termo que se chocava com o caráter ecológico e de doação presentes na canção “Milagre dos Peixes”. Convém, no entanto, ressaltar que, de acordo com Luiz Antonio Simas, nos versos folclóricos “Os escravos de Jó jogavam caxangá”, Jó vem de “quicongo nió”: casa; nesse sentido, os escravos de Jó seriam os escravos da casa, domésticos, e caxangá seria um jogo de pedrinhas e tabuleiro (Cf. SIMAS, 2018). A canção recupera, portanto, a conjugação entre trabalho e jogo. “Os escravos de Jó” – que inicialmente chamara-se “O homem da sucursal”, gravada no disco Milton, de 1970 – recebe complemento de letra em 1983, passando a se chamar “Caxangá”, interpretada belamente por Elis Regina: “Veja bem meu patrão como pode ser bom/ Você trabalharia no sol/ E eu tomando banho de mar/ Luto para viver, vivo para morrer/ Enquanto minha morte não vem// Eu vivo de brigar contra o rei (...). Aqui, a ideia de jogo, de alteração de um cenário lúdico, mescla-se à vontade política de mudança das condições sociais.
Canto e escuta
Em 1981, para a peça Missa dos Quilombos, Milton compõe com Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra, a canção “Ofertório”, texto que dialoga com “Cio da Terra”: “Na palma das mãos trazemos o milho, / a cana cortada, o branco algodão, / o fumo-resgate, a pinga-refúgio,/ da carne da terra moldamos os potes/ que guardam a água, a flor de alecrim.”
Além de outras estrofes que tratam da colheita da “amarga doçura” da cana, do café, da retirada do ouro para a imponência das igrejas dos brancos, os versos revelam a mescla do trabalho manual e coletivo e da importância social das atividades, questionando o porquê de os negros se beneficiarem tão pouco de tão vasta produção.
Em 1980, Milton e Brant escrevem “Povo da raça Brasil”, onde a ideia do trabalho mostra-se forte: “Põe a mão na água/ põe a mão no fogo/ põe a mão na brasa do meu coração// Põe a mão na mágoa/ põe a mão no povo/ põe a mão na massa pra fazer o pão.” Os versos dialogam com a canção “A de Ó”, de “Missa dos Quilombos” (Milton, Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra). O ritmo e os versos dizem claramente da crença em uma certa “comunidade que vem” do fundo dos sertões brasileiros, das oficinas, dos fogões, dos bordeis, das senzalas, das favelas, das margens do mundo. Um forte coro canta: “Estamos chegando do funda da terra, /estamos chegando do ventre da noite,/da carne do açoite nós somos,/viemos lembrar.
Em certo momento aparecem os versos: “das margens do mundo nós somos, / viemos dançar.” Novamente, notamos a mescla entre os braços e os corpos explorados dos trabalhadores, em grande parte negros, e a produção criativa popular. Mas não é o exótico que se busca, e sim o incômodo, a “pedra” cortante drummondiana, a “pedra” do catar feijão, de João Cabral, a pedra de ouro preto tirada da mina por Chico Rei e que contribui para libertar seu povo. Deve-se ressaltar que o Vaticano chegou a proibir a continuação do espetáculo Missa dos Quilombos.
Em diálogo com a inicial “Travessia”, devido à temática ligada à “canção de estrada”, a conhecida e comunicativa composição “Nos bailes da vida” revela-se uma homenagem ao trabalho do artista, do músico, do poeta. A questão da doação, da entrega, do compartilhamento, a vontade de levar o canto, a voz adiante, “onde o povo está”, pulsa no cerne da criação. Torna-se interessante pensarmos que a música pode também sugerir que o artista vá ao povo não apenas para cantar, disseminar versos e melodias, mas também para estabelecer laços, escutar, acolher, dar hospitalidade, criar afetos, dar voz e, como caixa de ressonância, veicular a memória de diversas criações históricas, míticas e poéticas do povo mineiro, do povo brasileiro.
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Submetido em 04/10/2018; Aceito em 10/12/2018
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