“SUBSTÂNCIA”, DE GUIMARÃES ROSA, E “CENA DE AMOR”, DE VALDOMIRO SILVEIRA: SEMELHANÇAS E CONTINGÊNCIAS DE DUAS “HISTÓRIAS DE AMOR”

"SUBSTÂNCIA", DE GUIMARÃES ROSA, E "CENA DE AMOR", DE VALDOMIRO SILVEIRA: SEMELHANÇAS E CONTINGÊNCIAS DE DUAS "HISTÓRIAS DE AMOR"

"SUBSTÂNCIA", BY GUIMARÃES ROSA, AND "CENA DE AMOR", BY VALDOMIRO SILVEIRA: ANALOGIES AND CONTINGENCIES IN TWO "LOVE STORIES"

Frederico Antonio Camillo Camargo[1]

[1] Doutor pela Universidade de São Paulo. ORCID 0000-0001-8640-9621


RESUMO:

Depois de um breve mapeamento de como a crítica literária já associou os nomes de Guimarães Rosa e Valdomiro Silveira, passamos à análise comparativa de “Substância” e “Cena de amor”, verificando não propriamente uma relação intertextual entre esses contos, mas uma série de expressivas semelhanças estruturais e temáticas que os aproxima. Como resultado, propomos a validade de se recuperar e valorizar um texto escrito por um escritor “menor”, por meio de seu diálogo e contraste com uma criação de um autor consagrado e a constatação de seu papel específico de veiculação de diferentes sentidos e visões de mundo.

Palavras-chave: comparação literária; estrutura narrativa; motivos ficcionais; imaginário.


ABSTRACT:

After a brief survey of how literary criticism has previously linked the names of Guimarães Rosa and Valdomiro Silveira, we perform a comparative analysis between “Substância” and “Cena de amor”, not intending to show an intertextual relation between them, but rather a series of prominent structural and thematic similitudes that allows their pairing. As a final result, we propose the utility of reviving and valuing a text written by a second grade writer, by promoting its dialogue and contrast with that of a consecrated author’s fictional creation, as well as the recognition of its specific role in producing different meanings and world views.

Keywords: literary comparison; narrative structure; fictional motives; imaginary.


Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas

("Teresa", Manuel Bandeira)

Um nexo convencional e de alcance crítico incerto liga costumeiramente Guimarães Rosa, um dos maiores escritores da língua portuguesa, a Valdomiro Silveira, autor de prestígio bastante mirrado em nossas letras; esse vínculo responde pela alcunha de regionalismo. Enquanto Valdomiro, na historiografia tradicional da literatura brasileira, foi instalado num “segundo” movimento regionalista[2] que vigorou na passagem do século XIX para o XX, tendo por companhia autores como Afonso Arinos e Simões Lopes Neto, Rosa, mormente na sua primeira recepção, foi tomado como mais um continuador dessa vertente literária há pouco posta em relevo pelo romance social da década de 1930. Nesse contexto, aliás, a conexão entre os dois escritores foi decretada explicitamente num texto crítico de Wilson Martins a respeito dos recém-lançados Corpo de baile e Grande sertão: veredas. Nessa resenha, intitulada “Um novo Valdomiro Silveira”, Guimarães Rosa e Valdomiro são nivelados numa mesma categoria, menos com o propósito de elevar o segundo do que o de depreciar o primeiro; ou, como explica o crítico, com o fim de “bem situá-lo [Rosa] no lugar que é o seu, na ‘estante’ que lhe pertence” (MARTINS, 1991, p. 171-172).

Condensemos os pontos cardeais da avaliação de Martins. A primeira repreensão lançada contra o escritor mineiro é o pecado da repetição – o de empregar, livro após livro, os mesmos temas e fórmulas, defeito compartilhado por Valdomiro Silveira: “a excelente posição literária agora assumida por Guimarães Rosa não é de forma nenhuma definitiva: porque está exposto ao mesmo perigo de monótona repetição que vicia o conjunto das obras de Valdomiro Silveira, por exemplo, e mesmo o de Simões Lopes Neto” (MARTINS, 1991, p. 174). A segunda investida de importância que permite subjugar, sob uma mesma falta, as obras de Rosa e Valdomiro, mira no tratamento dispensado por esses autores aos tipos humanos que lhes servem de matéria ficcional quando traduzidos em personagens: para o crítico, falta-lhes “autenticidade”: “os seus heróis perdem densidade e ganham convencionalismo: como os ‘gaúchos’ de Simões Lopes Neto ou os caboclos de Valdomiro Silveira, os ‘vaqueiros’ e ‘jagunços’ de Guimarães Rosa não escapam de certa construção estereotipada, mais ou menos mecânica e sem surpresas” (MARTINS, 1991, p. 178). Martins reconhece uma superioridade de Rosa em relação aos demais regionalistas, no que tange ao seu estilo (“O seu estilo, que é essencialmente ‘literário’, parece, ao contrário, ajustar-se com a objetividade de uma fotografia à paisagem sertaneja e as coisas que diz ganham automaticamente um relevo que não possuem nos livros daqueles dois mestres da literatura regional brasileira [Afonso Arinos e Simões Lopes Neto]” (MARTINS, 1991, p. 172)) e à seu trabalho com a linguagem (“É essa uma diferença fundamental que o distingue [Guimarães Rosa] dos outros autores regionalistas. Estes últimos pretendem, mas em vão, ‘copiar’ por escrito a linguagem oral; ele criou por escrito uma linguagem pretensamente oral” (MARTINS, 1991, p. 179)). O balanço/vaticínio, no entanto, não proporciona motivos para grandes comemorações: “o autor de ‘Corpo de baile’ restará, certamente, a exemplo de Valdomiro Silveira ou Afonso Arinos, um dos maiores escritores entre os menores” (MARTINS, 1991, p. 171).

Nessa história crítica que se dispôs a aproximar Guimarães Rosa e Valdomiro Silveira será necessário mencionar dois exemplos adicionais. O primeiro deles é o de Bernardo Élis, que pretendeu delinear uma “cadeia sucessória” entre os escritores regionalistas, partindo de Valdomiro, passando por Monteiro Lobato e detendo-se em Rosa. No que concerne à continuidade de “temas ficcionais” na literatura dos autores em questão, Élis destaca a “maneira de considerar os bichos, os animais domésticos, [a] descrição abundante e minuciosa de paisagens, vegetais e plantas”; e conclui: “Nesse particular, ‘Burrinho Pedrês’, ‘Conversa de bois’ é bem na linha valdomiriana” (ÉLIS, 1974, p. xviii). Ainda segundo o ensaísta, se o foco recai sobre a estrutura narrativa, uma linha direta pode ser tracejada entre o escritor paulista e o mineiro:

enxergamos em “São Marcos” (Guimarães Rosa) não apenas o tradicional tema de feitiçaria mas preponderantemente um estado de confusão mental e emocional que é o sustentáculo de contos como “Sonharada”, a parte final de “Os Curiangos” e vários outros. Não podemos igualmente deixar de relacionar “Quarenta Anos” (Mixuangos), com “Sarapalha”, de Guimarães Rosa. Em ambos, é a decadência física, econômica e moral que irmana os seres humanos. (ÉLIS, 1974, p. xviii)

Para Bernardo Élis, nem mesmo Grande sertão: veredas escaparia à influência da obra de Valdomiro Silveira:

Aí [em Leréias] todos os contos são narrativas orais dirigidas a supostos auditores que não dialogam com o narrador. Nesse particular, Guimarães Rosa em Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas aproveitou a técnica do escritor paulista. […] Os contos de Leréias, sem exceção de nenhum, principiam por um travessão indicativo de diálogo, como é o princípio de Grande Sertão: Veredas. (ÉLIS, 1974, p. xviii-xix)

Suzi Frankl Sperber, por sua vez, deverá escrever talvez o primeiro (e único) estudo voltado a efetuar uma comparação sistemática entre um texto de Valdomiro Silveira – “Salvação” – e outro de Guimarães Rosa – “A hora e vez de Augusto Matraga” (SPERBER, 1996). Partindo do que a autora reconhece ser uma “fímbria de semelhança” entre os contos – a frase do personagem principal de “Salvação”, Albino, “– Eu também já tive o meu dia, e dia grande!”, e o sentido da expressão “a hora e a vez”, repetida no título e em outras passagens da narrativa rosiana –, Suzi Sperber tenta contrapor duas narrativas de diferente extensão, tema, estrutura e propósitos, com o fito de demonstrar a superioridade de Rosa sobre Valdomiro em quesitos como o aproveitamento da oralidade, a composição do texto e a infusão de um sentido universal à estória narrada. Conclui, assim, que “os contos de Valdomiro Silveira procuram menos explicar o mundo que apresentar um registro provisório e fugaz do que seria a realidade. Por isso correspondem antes a uma cena do cotidiano, fragmentária, do que ao sentido de uma vida” (SPERBER, 1996, p. 107). Guimarães Rosa, por outro lado, “consegue representar o caipira como homem de primeira categoria – e não simplório e limitado, como acostumou acontecer na produção regionalista e especificamente no conto analisado de Valdomiro Silveira” (SPERBER, 1996, p. 119).

Do que se apresentou até agora, não fica exatamente demonstrada uma presença intertextual de Valdomiro Silveira na literatura de Guimarães Rosa. Ao colocá-los lado a lado, os críticos ora tendem a “rebaixar” Rosa ao nível de Valdomiro, ora a valorizar este último por tratar de temas que estariam igualmente presentes no autor de Sagarana, ou, por último, a aumentar o abismo que separa esses escritores, enfatizando a maior qualidade da obra de Guimarães Rosa. Os procedimentos narrativos que são compartilhados por ambos os autores e que, possivelmente, sugeririam algum “reflexo” de Valdomiro sobre Rosa, são algo genéricos demais, especialmente no âmbito da literatura regionalista, e podem ser encontrados em vários escritores, como é o caso do monólogo dialogado, também empregado por Afonso Arinos e Simões Lopes Neto, por exemplo.

A busca por “evidências” de uma suposta adoção de técnicas e temas valdomirianos por parte de Guimarães Rosa, portanto, não é capaz, pelo menos no estado atual das pesquisas acadêmicas sobre esses autores, de extrair algum fato conclusivo dos estudos críticos pretéritos. Em contrapartida, uma fonte potencialmente promissora de informações sobre o assunto passa a ser, então, o acervo literário de João Guimarães Rosa, composto de biblioteca e arquivo, conservado desde 1974 pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP).

Uma listagem dos livros que pertenciam a Guimarães Rosa à época de sua morte foi compilada por Suzi Frankl Sperber e publicada em livro, em 1976 (SPERBER, 1976). Esse inventário não contém livro de Valdomiro Silveira, o que posterga a possibilidade de tirarmos qualquer conclusão ou de encontrarmos marginália em exemplar eventualmente compulsado por Rosa. O arquivo do escritor, por sua vez, ainda que de forma muito econômica, vem trazer uma prova cabal do contato de Guimarães Rosa com os textos de Valdomiro Silveira. Entre notas de pesquisa de sua série de manuscritos, Rosa registrou a leitura de Nas serras e nas furnas:

O primeiro conto (“AMOR”) termina assim:
“E como o cavalo começasse a passar-lhe testa pela testa fria, botou o Sigismundo uma ternura final, em troca:
– Assim! Mais um pouco! Dês que Mamãe morreu, nunca eu tive, neste mundão de mundo, quem me fizesse um carinho tão amoroso assim!”

2) Também (no mesmo livro) – no conto “TRAMA” = o negócio da barganha dos cavalos (o cigano pede primeiro volta de 100, depois de 50, depois “ao menos cinco notas p’ra mim beber uma garrafa de mulatinha na saída do arraial?!![3]

Interessado nas histórias sobre cavalos (que também permeiam a sua obra), Guimarães Rosa só transcreve essas duas passagens do volume de contos. Mais interessante, na verdade, é a observação que acompanha os apontamentos. Anota o escritor mineiro: “Só li em 6 de janeiro de 1954”. Esse tipo de datação é bastante incomum nas notas de leitura que são encontradas em seu arquivo, impondo a esse comentário um sentido preciso: Guimarães Rosa deseja que não se atribua a Sagarana, de 1946, a influência dos textos valdomirianos. Por outro lado, em 1954, Rosa está em pleno trabalho de composição de Corpo de baile e Grande sertão: veredas, dados a público em 1956. Assim, se quisermos investigar uma eventual contribuição direta de Valdomiro Silveira à literatura rosiana, o corpus terá que se ater às obras desse ano ou às subsequentes.

Não é esse, entretanto, o nosso foco de interesse, pelo menos não como argumento central. O fato literário que motivou este artigo foi a identificação de um paralelo sobremaneira significativo entre narrativas de Rosa e Valdomiro: o primeiro conto de Os caboclos (1920), “Cena de amor”, e o antepenúltimo conto de Primeiras estórias (1962), “Substância”. Muito embora não seja possível pleitear conclusivamente uma relação genealógica e intencional entre os textos (do tipo “estímulo-resposta”), uma gama de semelhanças, nos níveis temático e estrutural, torna não inteiramente desprezível a hipótese de Guimarães Rosa ter moldado seu conto como uma espécie de reescrita da composição de Valdomiro Silveira[4]. Em último caso, estamos diante daquele fenômeno literário não infrequente de reaproveitamento de topoi e de situações narrativas.

A equivalência mais saliente entre as duas narrativas procede do desenvolvimento de um mesmo conjunto de motivos ou fábula: a emergência da paixão, seguida da declaração de amor e do imediato entendimento do casal. Em “Substância”, Sionésio, senhor da fazenda, enamora-se de Maria Exita, órfã destacada para trabalhar na quebra do polvilho; em “Cena de amor”, Chico Luís afeiçoa-se a Candoca, ele e ela trabalhadores rurais desprovidos de riqueza e beleza física. Ambos os contos finalizam com o pedido da união matrimonial efetuado pelo personagem masculino e a pronta aceitação da proposta pela personagem feminina.

Descartadas provisoriamente as diferenças de superfície, uma série de elementos suplementares faz avolumar uma quantidade apreciável de coincidências entre os textos. O próprio movimento narrativo dos contos, da descoberta do amor à aproximação da amada, é análogo, arregimentando uma soma de lugares-comuns a configurar um verdadeiro “périplo do homem apaixonado”. Tanto Sionésio quanto Chico Luís, de saída, pouco cuidavam de suas futuras paixões ou por elas nutriam qualquer interesse pronunciado, mesmo já as conhecendo previamente. Será por acaso e repentinamente que a existência e a figura delas irá tocá-los, quase como uma revelação epifânica. Em “Cena de amor”, o nome de Candoca surge acidentalmente numa conversa, momento a partir do qual Chico Luís fica por ela enfeitiçado:

Mas, de então por diante, como quem traz canseira antiga e para à beira do caminho, não cuida em mais nada, assenta-se para adormecer e logo sonha lindas coisas, o Chico Luís não tirou o sentido dali: estava bem nos casos de ser querido da filha do Quim Garcia (...) (SILVEIRA, 1962, p. 3)

Em “Substância”, um dia, sem maior justificativa, depois de notar Maria Exita numa festa, crescida e bela, Sionésio resolve visitá-la em seu local de trabalho. Sensibilizado pela rusticidade da tarefa suportada pela moça, a primeira reação do rapaz é a comiseração. Mas a imagem dela provoca-lhe um certo hipnotismo e transforma-lhe o sentimento: “E a beleza. Tão linda, clara, certa – de avivada carnação airosa – uma iazinha, moça feita em cachoeira. Viu que, sem querer, lhe fazia cortesia (ROSA, 2005, p. 187).”

Notemos o mútuo aproveitamento desse topos romântico, ligeiramente modificado, do “amor à primeira vista” (ou à primeira “lembrança”) a ocasionar paixão instantânea, ideia aparentada da lenda mítica da “flechada do Cupido”. Como já sugerimos, em ambos os autores fica insinuado que o nascimento do amor é um fenômeno súbito, espontâneo e inconsciente que toma o indivíduo de surpresa, numa sedução sutil a que não se é capaz de oferecer resistência.

Na esteira desse primeiro alumbramento, Valdomiro Silveira e Guimarães Rosa, de forma similar, colocam seus personagens numa espécie de limbo – uma travessia íntima de reflexões e dúvidas sobre como dar vazão a e concretizar esse amor nascido. Esse estado suspensivo e hesitante se manifesta no procedimento da “tocaia”, isto é, na vigilância constante e dissimulada da pessoa amada, temperada no texto por notas cômicas, seja pelos recantos impróprios escolhidos para a observação, seja pelo léxico e imagística utilizados pelos narradores para pintar as cenas. Em “Cena de amor”, Chico Luís “pegou a rodear-lhe a casa [de Candoca], de longe e acauteladamente” e “deu em trepar a uma urucurana cheia de barbas-de-velho”, para “observá-la melhor e mais regaladamente” (SILVEIRA, 1962, p. 3). Em “Substância”, Sinonésio, para se avizinhar de Maria Exita, “passara a frequentar as festas, princípios a fins” e “[f]icava de lá, de olhos postos em, feito o urubu tomador de conta”. Além disso, ia com frequência espreitá-la obrar o serviço com o polvilho, “sem paz de vê-la” e com “um modo mordido de a admirar, mais ou menos de longe” (ROSA, 2005, p. 188).

O próximo ingrediente dessa recôndita tortura masculina são os ciúmes. No conto valdomiriano, o protagonista cogita enviar uma carta para Candoca, mas, dado o seu analfabetismo, deve valer-se do irmão do compadre, “muito estudado e sabido”. Abandona o estratagema, no entanto, ao lembrar-se de que “o notador, ao menos enquanto escrevesse, diria amores e doçuras à filha do Quim Gracia – e teve rebates de ciúme...” (SILVEIRA, 1962, p. 3). Sionésio, de supetão, também se perturba: “‘Se outros a quisessem, se ela já gostasse de alguém?’ – as asas dessa cisma o saltearam. Tantos, na faina, na Samburá, namoristas; e às festas – a idéia lhe doía” (ROSA, 2005, p. 188, grifos do autor). Fica exposto, portanto, em ambos os contos, esse período de insegurança e indecisão, de “consumição de paixão” (ROSA, 2005, p. 189), menos alongado em “Cena de amor”, devido à menor extensão da narrativa, mais derramado em “Substância”, ao gosto rosiano de facultar amplitude reflexiva a seus personagens.

Compartilham indisfarçadas semelhanças, ainda, as personagens femininas, Candoca e Maria Exita. Na base de seu ethos está a vocação para o trabalho duro, atributo de certo modo inseparável das mulheres pobres da zona rural. A primeira, na visão do próprio Chico Luís, é “uma pobrezinha, uma coitadinha, tão pobre e coitada, que levava dia áfios (sic) a lidar no córrego, e até que horas da noite a cerzir e remendar, junto à cadeia de azeite” (SILVEIRA, 1962, p. 3). A segunda, já dissemos, assume a mais custosa atividade no ciclo da produção do polvilho, “o de quebrar à mão, o polvilho, nas lajes” (ROSA, 2005, p. 186). Assim mesmo, isso não a avexa, antes a compraz: “(...) nem enrugava o rosto, nem espremia os olhos, mas oferecidos bem abertos (...). Não parecia padecer, antes tirar segurança e folguedo, do triste, sinistro polvilho, portentoso, mais a maldade do sol” (ROSA, 2005, p. 186). Aliás, alegria e jovialidade, são qualidades intrínsecas nas duas moças, a despeito das adversidades que as cercam, sendo devidamente enfatizadas pelos narradores: “De boniteza, nada; de herança ou dote, a mesma coisa – e vivia alegre a mais não poder, brincando e cantando, recebendo a noite e o dia como eles vinham, sem raiva nem murmuração” (SILVEIRA, 1962, p. 2), diz-se de Candoca. Já Maria Exita, menos expansiva, está sempre serena e, quando focalizada, sorrindo: “Só o mal-e-mal, o boquinãoabrir, o sorriso devagar. Não se perturbava” (ROSA, 2005, p. 187). Por último, são ambas mulheres seguras e determinadas, como veremos na cena da declaração do amor.

Na progressão narrativa dos contos, a cena da confissão amorosa acompanhada do pedido de união matrimonial é introduzida da mesma maneira: uma decisão abrupta dos personagens masculinos, que se fartam do sofrimento de amor e da incerteza da situação, e precipitam-se ao encontro de suas amadas, como dois suicidas lançando-se ao abismo. Em “Cena de amor”, lemos: “Ora, um belo dia, não podendo mais consigo, [Chico Luís] apontou no córrego de supetão, e foi rasgando logo o pinho” (SILVEIRA, 1962, p. 3); o mesmo em “Substância”: “A hora era de nada e tanto; e ela [Maria Exita] era sempre a espera. Afoito, ele lhe perguntou (...)” (ROSA, 2005, p. 190).

Chico Luís é mais prolixo, consequência de sua ansiedade e do minguado domínio de tal procedimento discursivo. Pergunta da família de Candoca, diz-lhe do tempo que a persegue de longe, hesita, faz uma proposta genérica de casamento aludindo a uma terceira pessoa e, finalmente, revela-se o próprio proponente. Sionésio também se vale de uma pergunta genérica introdutória – “‘Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?’” (ROSA, 2005, p. 190, grifos do autor) – para só mais tarde, depois de certa vacilação, arrematar, evitando o uso do verbo “casar”: “‘Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você, comigo, vem e vai?’” (ROSA, 2005, p. 190, grifos do autor).

Nesse momento climático das narrativas, mais impressionante que o (esperado) comportamento embaraçado dos homens é a perfeita condução das mulheres, porquanto pegas de surpresa. Candoca, sem pejos ou perturbação exagerada, estimula uma maior objetividade de Chico Luís: “Fale agora”; “Querendo o quê?”. Ainda que sua reação seja adjetivada pelo narrador como “admirada” e “enleada e confusa”, no instante exato em que dela se espera a resposta definitiva, sua postura se altera e Candoca é toda solidez e convicção quando aceita o pedido: “Compondo um pouco a trança, desarranjada no bater da roupa, ela ergueu a cabeça e olhou-o nos olhos, com segurança e firmeza” (SILVEIRA, 1962, p. 4, grifos meus). Maria Exita, por sua vez, permanece tranquila e algo brejeira, e suas respostas para as duas perguntas de Sionésio são econômicas, imediatas e diretas: “‘Só se for já...’”, diz logo; “‘Vou, demais’”, confirma ao final (ROSA, 2005, p. 190, grifos do autor).

Cumpre observar um detalhe não anódino, mas que se camufla em função da expectativa do leitor com o sucesso dos heróis. Em nenhum momento dos contos somos brindados com a perspectiva das personagens femininas: no máximo, temos reproduzidas algumas de suas falas. Logo, enquanto acompanhamos a eclosão e o incremento das paixões de Chico Luís e Sionésio, permanecemos ínscios do que vai por dentro de Candoca e Maria Exita, isto é, daquilo que efetivamente elas sentem ou pensam sobre os homens que subitamente as interpelam com propostas tão graves. A configuração dos contos faz com que seja natural presumirmos que nenhuma das duas mulheres podia cultivar amor ou interesse de união prévios por esses homens, uma vez que nunca foram por eles cortejadas seriamente antes da declaração inopinada. Donde sermos obrigados a concluir que o assentimento das moças foi menos determinado por um arroubo romântico do que por uma disposição pragmática. As vantagens do casamento com Sionésio são óbvias: a ascensão social imediata; e, mesmo para Chico Luís, o narrador se esforça por fazê-lo sério e trabalhador, o que acaba se impondo como um dado positivo para Candoca e um ganho futuro potencial no interior da realidade em que vive.

Por último, para completar o rol de correspondências entre “Cena de amor” e “Substância”, resta o parágrafo derradeiro. Concertados os amantes, Rosa e Valdomiro recorrem a expedientes similares. Primeiro, a aproximação física, traduzida, no primeiro casal, pelo contato mútuo com as pedras de polvilho. No conto de Os caboclos, em trecho literário dos mais delicados, Chico Luís roça uma das mãos na trança de Candoca, toma-a para si e a beija. Então, a luminosidade e as cores do ambiente, num aspecto que beira o sobrenatural, eleva a cena a um nível místico e transcendente, como se a natureza abençoasse o enlace dos casais:

E foi então que a tarde se fez cor de fogo no poente, muito azul para o alto do céu, e as nhançanãs, cantaram de rijo no meio das taboas agitadas. (SILVEIRA, 1962, p. 5)

Sinésio e Maria Exita – a meios-olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não tempo, silêncio em sua imaginação. (...) Avançavam parados, dentro da luz, como se fosse no dia de Todos os Pássaros. (ROSA, 2005, p. 190) [5]

Verificamos, assim, tanto na estrutura e sequência narrativa quanto em pormenores da caracterização de cenas e personagens, identidades várias entre “Cena de amor” e “Substância”. Desvestidas do arcabouço linguístico marcado, e, particularmente em Rosa, de um investimento simbólico pouco discreto[6], ambos os textos são, ao final, não mais do que narrativas ingênuo-sentimentais que recortam um momento específico na vida de dois casais: aquele em que eles encontram, sem qualquer obstáculo de monta, a felicidade pela união afetiva.

Essa abstração aguda da ossatura dos contos, com o propósito de fazer vir ao primeiro plano, de forma destacada, os seus profusos traços em comum, não pode, por fim, acobertar importantes diferenças. Deliberadamente, até agora, temos evitado empreender comparações estilísticas entre Valdomiro Silveira e Guimarães Rosa, cientes de que o trabalho de ourivesaria linguística do autor mineiro tende a superar, e muito, a relativa simplicidade de texto valdomiriano. Afirmação essa que não tenciona, de modo algum, minimizar a qualidade da escrita de Valdomiro Silveira. Embora não seja nosso objetivo desviar para esse tipo de análise, devemos reconhecer o amplo domínio da construção narrativa e da linguagem pelo autor paulista, e notar que a sua dicção, enriquecida pelo emprego da oralidade típica da região focalizada por sua literatura, desprende uma sonoridade e fluência bastante prazerosas à leitura; ademais, a tonalidade do texto, que beira o cômico-paternal, cria para a narrativa uma atmosfera álacre e terna. No puro quesito “saber contar uma história”, portanto, Valdomiro Silveira, deve pouco a Guimarães Rosa.

Reenceto, todavia: que tipo de ganho podemos lograr equiparando dois autores cujo valor literário constituído na história da literatura brasileira é tão díspar, e textos que, para além de seus pontos de contato, são, no seu grau de rebuscamento linguístico, estilístico e simbólico, igualmente desnivelados? Quero argumentar que deve fazer parte da missão dos estudos literários esse desafio constante de saber fazer circular e dialogar, no âmbito das atividades da leitura e da crítica, autores e criações de maior e menor envergadura. Nos dias de hoje, não somente sabemos que, em todo momento histórico, vigora uma complexa interação entre escritores mais e menos renomados, como, além disso, consolida-se progressivamente a noção de que, mesmo os textos menos bem realizados segundo um repertório de parâmetros críticos vigentes ou persistentes podem trazer informações, questões ou implicações relevantes tanto para o público de sua primeira recepção quanto para os leitores retardatários. Todo texto literário reserva um potencial imprevisível de uso e fruição: abandoná-lo à marginalidade e ao esquecimento será sempre um desserviço que o mediador cultural presta à sociedade.

Destarte, no caso específico de que nos ocupamos, haverá proveito reduzido em destrincharmos e evidenciarmos a constelação de características e qualidades literárias de “Substância”, conto já generosamente abordado e discutido por mais de duas dezenas de estudos. Da mesma forma, não nos serve a eventual conclusão mecânica e prototípica de que Guimarães Rosa, de fato, é melhor escritor que Valdomiro Silveira e soube instilar nas suas narrativas uma universalidade que supera o dado regional, enquanto Valdomiro se limitou à descrição documental e anedótica dos fatos e costumes pitorescos do homem caipira. Essa comparação que pusemos em marcha só poderá granjear alguma utilidade, caso, ao contrário, formos capazes de entender o papel de “Cena de amor” e de Valdomiro Silveira, estética e ideologicamente, no campo literário pretérito e presente. Meu itinerário, nesse sentido, será assinalar, a partir de agora algumas distinções essenciais de enfoque e tratamento do tema, que podem ser inferidas do cotejo entre os contos.

A principal diferença se dá no enquadramento narrativo, ou, dito de outra maneira, nas condições de entorno e pressupostos (o contexto) a partir dos quais a fábula é inserta. Em “Cena de amor”, o problema de base ou ponto de partida é o sentimento de inadequação de Chico Luís, o qual, em razão de seu rosto manchado, “moreno pela testa e no queixo, alvo nas faces até nas orelhas” (SILVEIRA, 1962, p. 1), receia nunca achar casamento. Em “Substância”, inversamente, é a personagem feminina que carrega “marcas” e máculas, que não são de natureza física e nem oriundas de seus próprios atos, mas assomam como uma espécie de herança familiar de cunho quase determinístico: o pai leproso, a mãe prostituta, os irmãos criminosos. Em larga medida, de volta ao reino dos paralelos concordantes, as narrativas promovem o resgate desses personagens estigmatizados, ao fazê-los bem-sucedidos em despertar a afetividade de outro ser humano. Assim, em última análise, os dois contos acabam por trazer como “mensagem” a ideia positiva e euforizante de que deficiências de ordem física ou social não constituem empecilhos para que alguém possa encontrar a realização conjugal.

Ainda nessa perspectiva do enquadramento (ou do contexto), uma dissimilitude fundamental entre “Cena de amor” e “Substância” patenteia-se na relação econômica e social dos casais em cada narrativa. No primeiro, reiteremos, Chico Luís e Candoca são dois trabalhadores rurais pobres. No segundo, Sionésio é o dono da fazenda (recém-herdada) e, Maria Exita, uma órfã desamparada acolhida de favor como mais um elemento da força de produção. Enquanto, por conseguinte, em Valdomiro Silveira se consuma uma aliança entre “iguais”, no texto rosiano se reelabora o motivo clássico do casamento interclasses, em que o rapaz de posses (de classe alta) apaixona-se pela moça desvalida (de classe baixa). É por isso que, em larga medida, “Substância” notabiliza-se como uma reescrita sertaneja da história de Cinderela, fato bem acorde ao gosto de Rosa pelos contos de fadas, traço manifesto de Primeiras estórias.

A rigor, a igualdade ou desigualdade socioeconômica dos casais não respalda, por si só, um juízo do maior ou menor valor estético de uma ou outra composição, embora esse fino detalhe tenha o potencial de incitar reações (conscientes ou inconscientes) diferenciadas no imaginário do leitor. O esquema rosiano, no entanto, abre a porta para um questionamento mais aprofundado: quais são essas condições especiais em que um homem rico decide ligar-se, de forma oficial, a uma mulher pobre, desarranjando o “rumo natural” das coisas? Passemos, assim, a Maria Exita.

Sem rodeios: Guimarães Rosa esmera-se na construção de uma personagem apta a ser cortejada por um senhor abastado. Maria Exita não é uma mulher comum, ela tem muito de notável e invulgar. Antes de tudo, ela é bela, característica assinalada logo no primeiro parágrafo do conto e depois repetida em cada entrada da personagem em cena: “E a beleza. Tão linda, clara, certa – de avivada carnação e airosa – uma ilhazinha, moça feita em cachoeira”; “Sua beleza, donde vinha?”; “Ainda que em graça para os amores, tão formosa, ela parava a cobro de qualquer deles [outros homens], de más ou melhores tenções”; “Nem aguentou de mirar, no momento, sua preciosa formosura, traiçoeira” (ROSA, 2005, p. 187, 188 e 190, todos os grifos são meus). Adicionalmente, ela é discreta, recatada e pura, “a alma do jeito e ser, dela, diversa dos outros”: “Não a teria acreditado tão exata em todas essas instâncias [das festas] (...). Se dançava, era bem; mas as muito poucas vezes (...) Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida; e de ninguém” (ROSA, 2005, p. 187 e 188).

Mas o artifício rosiano crucial para a caracterização de Maria Exita é a associação dela com a matéria clara e límpida do polvilho. Desde as primeiras linhas do conto, falar de Maria Exita é falar do polvilho e vice-versa, de modo que as qualidades de um e outro se embaralham e a personagem vive sob o influxo benfazejo dessa substância impoluta e desconcertante. No momento decisivo da declaração de amor, inclusive, a hesitação de Sionésio, após a primeira resposta de Maria Exita – “‘Seria ela igual à mãe? (...) Será a beleza dela – a frútice da pele tão fresca, viçosa – só fosse por um tempo, mas depois condenada a engrossar e se escamar, nos tortos roxos, da estragada doença?’” –, só é reprimida devido à presença adjacente do polvilho, que magnetiza o personagem e o desembaraça dos pensamentos negativos: “Mesmo, sem querer, entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na vez do sol. Ainda que por instante, achava ali um poder, contemplado, de grandeza, dilatado repouso, que desmanchava em branco os rebuliços do pensamento da gente, atormentantes” (ROSA, 2005, p. 190, grifos do autor). Da maneira como “Substância” é arquitetado, sem a ação hipnótica do polvilho, o final feliz de Maria Exita provavelmente não teria tido um curso tão facilitado.

Podemos sustentar, assim, que no mundo rural de Guimarães Rosa, o casamento interclasses, a despeito de todo o encanto e delicadeza da atmosfera narrativa, só pode ocorrer numa circunstância excepcionalmente singular, em que a mulher pobre é provida de um grau de perfeição física e moral que a habilite a se destacar entre as outras mulheres, do mesmo ou de maior estrato social. E isso somente com a concorrência de um objeto mágico (adotando a terminologia dos contos de fadas) que lhe sirva de mediador. Se, por um lado, visto pelo avesso, isso se plasma como um traço realista e de denúncia de uma configuração social marcada, por outro, olhado sem inversão, esse quadro vem manifestar um aspecto algo conformista e pouco progressista de uma literatura que não se deixa fabular uma sociedade que não seja regida pelas determinações patriarcais em uso, repondo no imaginário do leitor a surrada história da donzela salva pelo cavaleiro valoroso[7].

Esse excurso por “Substância” deve servir para uma melhor avaliação global de “Cena de amor”. Para isso, permita-se-nos, de maneira bastante sintética, propor três critérios de qualidade, entre outros possíveis, da boa conformação de um texto literário ficcional: (i) o potencial de comoção (emocional) do leitor ou promoção do prazer de leitura; (ii) o potencial de estímulo cognitivo (pela forma, muitas vezes um efeito subconsciente); e (iii) o potencial de veiculação de conhecimento ou intervenção disruptiva no imaginário do leitor. Todos esses critérios têm dimensões subjetivas, sobretudo o primeiro (o efetivo prazer da leitura), que é, substancialmente, uma reação pessoal e variável. Como leitor individual, confesso que a simplicidade e a leveza de “Cena de amor” me causam deleite, e, mesmo, um enternecimento pela doçura da cena final. O estímulo cognitivo, provocado pela organização específica do texto, também é satisfeito pela narrativa valdomiriana, tecnicamente construída de forma tradicional e competente, e não isenta de achados linguístico-estilísticos expressivos ou hábeis escolhas técnicas de introdução e construção de cenas e situações. (Veja-se o modo como o conto se abre, colocando de chofre o problema central; veja-se o andamento do enredo, econômico na justaposição das cenas essenciais para desaguar no desfecho climático.) Mas é no modo como a história demonstra a faculdade de encenar uma anedota diferenciada, capaz de interferir no nosso modo tradicional e inteiriço de ver as coisas do mundo, que “Cena de amor” pode ombrear-se de maneira mais incisiva com “Substância”. Ao contrário desta última, em que o homem rico e “ilustrado” é cativado pela moça pobre, bela e virtuosa, o conto de Valdomiro Silveira dá relevância a um par de personagens pelos os quais nós, leitores “cultos”, em geral, pouco teríamos interesse ou, até, empatia.

Para além do prejuízo da localização geográfica marginalizada, da carência material e da obrigatoriedade do trabalho manual pesado e diário, Valdomiro Silveira faz de Candoca e Chico Luís seres pouco favorecidos de atributos físicos – ou, pior, sujeitos afligidos por defeitos de aparência. Chico Luís, já vimos, é “sarapintado e horrível”; Candoca, por sua vez, era “chimbeva e cambêta” (SILVEIRA, 1962, p. 1 e 2). Se existe ao menos um mérito de “Cena de amor” é esse movimento admirável de fazer superar a exterioridade dos personagens para mostrá-los nos seus modos de ser e sentimentos[8]. Chico Luís ganha em estatura “heroica”, ao revelar sua índole afetuosa e íntegra; Candoca, já mencionamos, é alegre e decidida. A união dos dois independe de um terceiro elemento – o polvilho, em “Substância” –, sendo resultado exclusivo da vontade íntima e da disposição de relevar deficiências de superfície para intuir no outro o valor devido, tudo isso aliado a uma certa visão prática de desprivilegiados que vislumbram uma vida menos dura quando o peso dela pode ser compartilhado. Nesse sentido, Valdomiro Silveira dá o direito a dois indivíduos pobres e humildes de terem representada ficcionalmente a sua versão possível de uma “história de amor”.

Como declaramos antes, um paralelo entre Guimarães Rosa e Valdomiro Silveira só pode ter algum préstimo caso, em vez de louvar a maestria do escritor mineiro ou a inferioridade e eventuais limitações da literatura do autor paulista, for capaz de achar meios de aventar a relevância dos escritos deste último na nossa história literária, mesmo se eles não sejam aquinhoados do virtuosismo composicional da literatura do primeiro. Devemos, naturalmente, continuar a ler os “contos de fadas” rosianos, mas o mais singelo contraponto valdomiriano pode, muitas vezes, trazer para a nossa existência uma perspectiva distinta de importância equivalente para a constituição de nosso conhecimento de mundo e a configuração do nosso imaginário. Quanto mais restritas forem nossas opções de leitura, mais sujeitos estaremos ao perigo da ressedimentação das mesmas experiências reiteradas.

REFERÊNCIAS

DIAS, Carmen Lydia de Souza. Paixão de raiz: Valdomiro Silveira e o Regionalismo. São Paulo: Ática, 1984.

ÉLIS, Bernardo. Valdomiro Silveira. In: SILVEIRA, Valdomiro. O mundo caboclo de Valdomiro Silveira. Rio de Janeiro: José Olympio; Instituto Nacional do Livro; São Paulo: Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo, 1974, p. 14-21.

GALVÃO, Walnice. Sobre o Regionalismo. In: ______, Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 91-118.

MARTINS, Wilson. Um novo Valdomiro Silveira. In: ______. Pontos de vista, v. 2. São Paulo: T. A. Queiroz, 1991, p. 171-182.

PACHECO, Ana Paula. Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias de Guimarães Rosa. São Paulo: Nankin, 2006.

ROSA, João Guimarães. Substância. In: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 185-190.

SPERBER, Suzi Frankl. Caos e cosmos: leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Livraria Duas Cidades; Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.

______. Amor, medo e salvação: aproximações entre Valdomiro Silveira e Guimarães Rosa. Revista do IEB, São Paulo, n. 41, p. 97-120, 1996.

SILVEIRA, Valdomiro. Cena de amor. In: Os caboclos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, , p. 1-5.

 

Submetido em 03/01/2019; Aceito em 15/04/2019


Notas

[2] Empresto essa categorização de Walnice Nogueira Galvão, que circunscreve o "primeiro" regionalismo a partir das produções românticas de José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora e Visconde de Taunay, e reconhece nos romances de José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e outros um "terceiro" regionalismo (GALVÃO, 2008).

[3] Fundo João Guimarães Rosa, Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, código do documento: JGR-M-21,32.

[4] A prática não é incomum em Rosa. O exemplo mais célebre se dá com o conto "O espelho", de Primeiras estórias, composto deliberadamente como resposta a'"O espelho" machadiano. Ainda em diálogo com Machado, achamos outra narrativa, "Cartas na mesa", de Ave, palavra, inspirada em "A cartomante". Numa outra esfera, podemos lembrar a relação intertextual de Grande sertão: veredas com o Fausto de Goethe e o Doutor Fausto, de Thomas Mann, por meio da reatualização do pacto com o diabo.

[5] Notar ainda, a menção a aves nos dois trechos: as nhançanãs (variante de jaçanã), em Valdomiro, e o "dia de Todos os Pássaros", em Rosa.

[6] Segundo Ana Paula Pacheco, "[das] narrativas simbólicas de Primeiras estórias, esta ["Substância"] talvez seja a que mais evidencia o procedimento" (PACHECO, 2006, p. 168).

[7] De fato, faltou sublinhar o caráter de exceção de Sionésio. Entre todos os homens da região, ricos e pobres, ele foi o único capaz de reconhecer as qualidades de Maria Exita sob os estigmas familiares que a cercavam. Também é preciso assinalar que essa sujeição a uma expectativa tradicional, presente em "Substância", nem sempre encontra eco no restante da literatura de Rosa. Em "A estória de Lélio e Lina", por exemplo, vigora um tratamento bastante positivo e incomum das personagens prostitutas, assim como Rosalina, senhora velha e viúva, tem um comportamento intelectual e social descolados do protótipo esperado.

[8] Carmen Lydia de Souza Dias ressalta: "Em contos como 'Cena de amor' (L, p. 1), amplia-se o espaço psicológico, em estreita correlação com o lugar físico. (...) O autor tem, por isso, o espaço necessário para detalhar as reações comportamentais internas e externas, de Chico Luís, o protagonista. Não só lhe desvenda a intimidade como reproduz cuidadosamente os gestos que, no plano exterior, responderiam aos seus sobressaltos e temores, ou aos momentos de maturidade e autoconsciência" (DIAS, 1984, p. 157).

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