IFIGÊNIA TRANSCULTURAL: UM CASO DE TRADUÇÃO CULTURAL

IFIGÊNIA TRANSCULTURAL: UM CASO DE TRADUÇÃO CULTURAL

Carlinda Fragale Pate Nuñez[1]

[1] Graduada em Letras (Universidade Santa Úrsula-RJ), Mestre e Doutora em Literatura Comparada (UFRJ). Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especializada em Letras Clássicas. Contato: carlindanunez@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-7080-4667


RESUMO:

Este ensaio aborda "pervivências" do humanismo greco-romano, no filme O Sacrifício do cervo sagrado, de Yorgos Lanthimos (2017), que reinventa o mito grego de Ifigênia, a partir do peculiar processo de transferência de ideias, valores, símbolos etc. via tradução cultural. Para discutir o filme de Lanthimos, selecionamos dois dados culturais: (1) o signo artemisiano, introdutor da presença de Ártemis na organização da narrativa fílmica e dos novos papéis cinematográticos, e (2) o paradoxo do sacrifício filial que sustenta a trama.

Palavras-chave: Ifigênia; Teatro grego; Yorgos Lanthimos; Ártemis; sacrifício filial.


ABSTRACT:

This essay focuses on the "survival" of greek-roman humanism, in the film The Killing of a Sacred Deer, directed by Yorgos Lanthimos (2017), which reinvents the greek myth of Iphigenia, benefiting from a particular process of transference (of ideas, values, symbol etc.) via cultural translation. To discuss Lanthimos´ film, we selected two cultural elements: (1) the artemisian sign, introducing the presence of Artemis in the film´s plot and in the new roles created in it; and (2) the paradox of the child sacrifice behind the scenes.

Keywords: Iphigenia; Greek Theater; Yorgos Lanthimos; Artemis; Child Sacrifice.


Na filmografia de extração clássica que conquistou reconhecimento da crítica, Ifigênia comparece com apenas duas realizações expressivas: a de Michael Cacoyannis (Iphigenia, Grécia, 1977) e, mais recentemente, a de Yorgos Lanthimos (The Killing of a Sacred Deer, Irlanda/Reino Unido, 2017), cujo título, em português, foi quase literalmente traduzido (O Sacrifício do cervo sagrado). As nuances na transposição do título em inglês para o português são indiciais de outros nuançamentos que ocorrem nos processos tradutórios, mormente em traduções culturais.

Vamo-nos ater ao filme de Lanthimos[2], que aborda a ruína de uma família americana nos tempos atuais, mas remonta à mitológica maldição dos Atridas. O cineasta grego se baseia na tragédia Ifigênia em Áulis de Eurípides, encenada em 405 a.C., parte central da trilogia que assegurou postumamente ao dramaturgo o primeiro lugar, no festival das Grandes Dionisíacas, apesar da aspereza do tema[3] e dos defeitos técnico-poéticos tardiamente identificados na peça (Kitto: 1972, p.312-324). Estes fatos externos ao drama pouca importância têm, em face da representatividade dos aspectos culturais que a tragédia euripidiana contém e, exatamente por isso, da sua regular ressurgência, desde o teatro renascentista até o cinema contemporâneo[4]. Que fique claro: não nos mobiliza o prestígio da "herança clássica", como patrimônio de todas as épocas e "capital cultural" socialmente incorporado (Bourdieu: 1999) que promoveu a hegemonia da tradição europeia, no cenário mundial. Interessam-nos as projeções, interferências, articulações interculturais, enfim, efeitos de longa duração do humanismo greco-romano, abordados pela perspectiva da "literatura mundo". Por este viés, tais fenômenos podem ser vistos como agenciadores de um peculiar processo de mobilidade temática, de circulação literária e cultural, do trânsito de identidades (Créon, 2016, p. 272), de compartilhamento cultural e de "difusão de significantes de dimensão planetária" (Amselle, 2001, p. 49) via tradução cultural. Está claro que se trata, aqui, de trocas e articulações culturais sui generis, nas quais não se verificam ações recíprocas (mas sim "ramificações" - os branchements de Amselle...- e remanufatura de um legado em tempos e espaços pósteros), nem simultaneidade (senão descontinuidade temporal, um tipo de troca entre temporalidades distantes, não exatamente um anacronismo, mas a voz do não-contemporâneo [Moser, 1989] que se impõe). Nosso alvo é, pois, o choque do novo que temas longevos (no caso, tragédias gregas retomadas no cinema[5]), transculturalizados, continuam a produzir.

A conexão entre a obra atual e a peça antiga, em foco, é de pronto sugerida pela menção ao cervo, animal sagrado de Ártemis, no título do filme. Mas a esta fonte consagrada mesclam-se outras fontes de matriz clássica, sobretudo o párodo do Agamemnon (v. 40-257) de Ésquilo, considerado a realização insuperável do tema, além de materiais do imaginário arcaico e repercussões posteriores, o que torna o filme um experimento estético onde o "antigo" e o "novo", o estrangeiro e o familiar se imbricam[6].

O enredo transposto para a atualidade se conecta com o teatro ateniense da Antiguidade obliquamente, por alusões e estratégias estéticas. Certa estranheza contamina o enredo e os recursos expressivos do filme. As interpretações são técnicas; os gestos, hieráticos; as vozes, inflexíveis, como se os atores usassem máscaras. O filme é a autópsia da morte de um paciente de Steven Murphy, o protagonista, numa cirurgia. O evento fatídico tornará sua família refém de um destino trágico: dois anos depois do óbito, o filho do paciente se reaproxima do médico e passa a persegui-lo. O rapaz, em poucos meses de convivência com Steven, entende que tem de vingar a morte do pai. Assume o papel do Destino. Misteriosamente, os membros da família adoecem em etapas – sofrem de paralisia das pernas; depois, de inanição; sangram pelos olhos e, finalmente, morrem.

Mais que explorar diferenças e afinidades em relação aos trágicos, Lanthimos segue o caminho da concordia discordans, a dialética da complementaridade entre os materiais com que os dramaturgos exploravam os mitos antigos, e sobretudo a forma de tratá-los como enigmas. O cineasta enfatiza artefatos culturais que, em obras emblemáticas, estabelecem vínculos interculturais, acionam micromecanismos de transferência cultural.

Com base nestes dois pilares, pensamento mítico e signos culturais, o cineasta criou um enredo totalmente novo, com dicção à grega, soturnidade trágica e tensão crescente, até alcançar o paroxismo nas cenas patéticas que consumam a catástrofe familiar. Selecionamos para discutir o filme de Lanthimos: (I) a proeminência de Ártemis na organização da narrativa fílmica e (II) o paradoxo do sacrifício filial, que sustenta a trama.

O signo artemisiano

Forças ocultas e fantasmagorias se infiltram na obra de Lanthimos por palavras, atitudes, imagens, sonoridades que inseminam o regime noturno do imaginário ligado a Ártemis (Durand, 1984). Este nome não é jamais pronunciado no filme, porém a sombra da divindade age através do artemisianismo de atitudes, desejos e modos de ser das personagens. Apesar de figurar na religião olímpica desde fases remotas, pelo temperamento arisco e intempestivo, era vista como estrangeira. A deusa caçadora era a figura mais estranha do panteão grego.

Para entender Ártemis, é preciso perceber suas dualidades: curótrofa e violenta, fecundante e hermafrodita (eternamente virgem e combativa); como deusa das margens, fiscaliza ações liminares, mas é também capaz de integrar, assimilar, estabelecer relações com o Outro, seja ele visível ou oculto. A gêmea de Apolo é a sua contraparte: os ritos da deusa agrolunar (Durand, 1984, p. 358) são a um só tempo sanguinários e soteriológicos; ela é a patronesse do canto coral (Calame, 2001, p. 32 e 142), principalmente dos coros femininos, e adota a caça como paidéia. A mira exata faz da visão seu sentido por excelência. Pode se metamorfosear em cervo ou urso.

Desta complexidade emerge o signo artemisiano, com funcionalidade heurística, no filme de Lanthimos, desde a primeira sequência, um prólogo constituído pela pulsação de um coração humano em tela cheia, ao som do solene Stabat "Jesus Cristo paira na cruz" de Schubert. Esta cena inicial (com duração de 2 minutos) enlaça uma teia semiótica marcada pela devolução do significado propriamente cardíaco ao órgão vital e pela ressimbolização da vida como pulso, ritmo, ação movida a sangue.

A Ifigênia do filme é a adolescente de 14 anos, Kim, nome que significa "ouro", pelo étimo coreano, ou "realeza", como variante anglo-saxônica de king. O percurso simbólico da jovem é, todavia, contrário ao de Ifigênia: se a grega é uma jovem que descobre na iminência da morte o altruísmo, em Kim é o erotismo que irrompe como resposta ao controle familiar. Ela preserva, entretanto, os traços eupátridas de sua ancestral: o cultivo do canto e a afinidade com o pai. Já seu irmão, o correspondente ao Orestes grego, é Bob, de 10 anos. O pré-adolescente do filme tem talento para matemática e física, além de aptidão para o piano, mas gosta mesmo de heavy metal e é totalmente ligado à mãe. O pai é Steven Murphy. Não por acaso, Murphy é a versão em inglês do sobrenome irlandês O'Murchadh, que significa "guerreiro do mar". O médico é o preposto de Agamemnon, rei micênico e comandante da esquadra que cruzou o Egeu até Troia. Steven é um renomado cirurgião, tão prepotente, ambicioso e autocentrado quanto Agamemnon, mas o que o põe a perder é a mentira. Ele é alvo da vingança de Martin pela morte do pai, provavelmente por negligência – bebera dois drinks antes da cirurgia, segundo Matthew, o anestesista da equipe médica. Este tem um caráter dútil, negocista e lascivo, como o Menelau grego, marido da famosa Helena. Ao contrário da vulgata antiga, entretanto, é Matthew/Menelau (e não Páris) quem tem uma atração mal disfarçada por Anna, esposa de Steven, encarnação da déspoina ("senhora") grega, também tamía, administradora da vida doméstica. Anna tem uma autoridade oposta e complementar à do marido, seja porque representa a civilização em todos os seus aspectos (limpeza, beleza e organização), para o bem e para o mal, como o descreveu Freud, seja pelo papel estruturador do oikos ("lar"), onde se habita e se formam hábitos, crenças, volições, repressões e resistências. Ela é a legatária de Clitemnestra, mãe capaz de tornar-se amante de um parente de Agamemnon para vingar o sacrifício de Ifigênia. No filme, Anna cederá aos olhares gulosos de Matthew, para obter informações sobre a cirurgia em que morreu o pai de Martin. As correspondências com a família mítica de referência terminam aqui, já que, no filme, as figuras humanas se parecem com as do tempo atual, mas se movimentam, falam e pensam como personagens tradicionais encenando suas próprias vidas; os acontecimentos são surpreendentes, inesperados, incomuns, apesar de remeterem ao oculto, que espreita e interfere o tempo todo, na vida positiva.

Martin, de 16 anos, é um esquisitão. Seria forçado supor uma correspondência entre ele e Aquiles, que foi envolvido na trama ancestral contra Ifigênia sem consentimento próprio, e dela saiu como o único grego decente – mas não transitou da condição de personagem secundária, manipulada ora por outra personagem, ora pelo destino. No filme, Martin rouba a cena e só a divide com Anna, a "Grande Mãe", deusa arcaica creto-micênica, no grand écran. É ele o grande manipulador. As intenções do jovem, a princípio, não são claras nem para ele mesmo, o que contamina o ritmo, inicialmente lento do filme. A família, que parece entronizada em estabilidade total, já está sob a mira ressentida de Martin. O alvo do rapaz obsessivo, com ar de psicopata ou, no mínimo, com distúrbios psicológicos, é Steven. Mas todos compartilham certa estranheza.

Tudo é antinatural, naquela casa: o casal de médicos, no início do filme, acerta a modalidade de relação sexual pretendida, de acordo com um código referido por procedimentos cirúrgicos: ao optarem por "anestesia geral", Anna se oferece estática ao marido, numa cena próxima à necrofilia.

Na primeira parte do filme, os signos do imaginário artemisiano de cuidado e selvageria aparecem discretamente. A reviravolta acontece quando Martin declara a Steven que pretende levá-lo a matar a mulher e os filhos, Da verdadeira caçada de Martin às suas presas derivam duas cenas primorosas. A primeira, na garagem do hospital: uma sombra cruza veloz, como o salto de um cervo à frente da câmera, enquanto Steven tira o carro da vaga; em seguida, a câmara, de dentro do carro, permite que vejamos o vulto de Martin espreitando a saída do carro, escorado numa parede. Steven não tem a visão que nós, em grande angular, alcançamos, mas ele tem a sensação de que está sendo mirado. Em outra situação, num passeio a pé com Martin, Kim solta os cabelos. Já está apaixonada pelo rapaz. Numa paisagem dominada por uma árvore frondosa, vê-se Martin sentado na relva (em enquadramento plongée, de cima para baixo, apequenado); Kim, de pé (em contraplongée, agigantada), recostada na árvore (uma nogueira, árvore sagrada de Ártemis), canta uma música sensual (Burn[7]), cujo refrão exalta a liberdade: "We'll be raising our hands, shining up to the sky / Cause we got the fire, fire, fire, yeah we got the fire fire fire// And we gonna let it burn burn burn burn...". Kim, fusionada à árvore e ao horizonte, é quase uma sacerdotisa táurica, uma deidade, o homem vitruviano, a proporção áurea dos corpos. Esta cena opera uma guinada na narrativa: Martin conquistara uma aliada no campo adversário.

A precisão com que o imaginário de Ártemis alinhava as sequências fílmicas fornece outras situações de fina inspiração cinematográfica. Destacamos apenas mais uma, certa voz sutil que ressoa no jantar na casa de Martin em que mãe e filho armam uma cilada para Steven. Insere-se aí um episódio de metacinema, em que a sedução explícita tramada por mãe e filho faz contraponto com a cena do filme Feitiço do tempo (Groundhog Day, EUA, Harold Ramis, 1993) a que Martin, a mãe e Steven assistem, na TV da sala de jantar de Martin. Nos poucos segundos em que o protagonista do filme (Bill Murray) pergunta à produtora do programa de meteorologia: "Como você pode saber se sou ou não um deus?", a dialética da complementaridade entra em ação. Os dois filmes, aquele ao qual estamos assistindo e aquele no qual os olhos das personagens estão fixados, em tensão dialética, ratificam-se um ao outro: no filme de Lanthimos, a paralisia dos filhos e o bloqueio emocional das demais personagens perante a inexorabilidade dos acontecimentos impulsiona o drama ao desfecho trágico; na produção de 1993, é o eterno retorno do dia da marmota, permitindo pequenas, porém decisivas, mudanças no comportamento do protagonista arrogante que desbloqueia o congelamento do tempo ficcional, resultando numa animada comédia romântica. Em SCS[8], determinações sobrenaturais, ocultas e indiscerníveis agenciam situações concretas e convincentes, o "impossível crível" a que Aristóteles se refere na Poética (1461b 11-12). Já no rocambolesco Feitiço do tempo, a situação é apresentada como o possível incrível desde o início. Tanto Phil quanto Steven ficam retidos numa espécie de túnel do tempo, condenados a esperar o dia em que a normalidade retorne, em função da mudança de suas atitudes. Ambos estão à mercê da Moîra (Destino) pela hýbris (erro, falta) praticada. Através da estratégia metacinematográfica, a lógica arcaica, punitiva e inclemente, dialetiza com a contemporânea, tecnológica e descontraída, com base em códigos simetricamente inversos, o trágico e o cômico.

A definitiva prova da força de Ártemis na concepção do enredo é a brilhante redação escrita por Kim sobre a tragédia Ifigênia em Áulis. A identificação da adolescente norte-americana com a grega permite-nos dizer, apoiados em Kerényi (1998, p. 268), que ambas estão a serviço de Ártemis, são seu alter ego. Georges Devereux (1990, pp. 38 e 45) vai além: Ártemis, na tragédia de Eurípides, substituiu a Ifigênia real por uma réplica da própria deusa (em forma de corça). O rito se potencializa como sacrifício de Ártemis a si mesma "de uma forma quase eucarística". Tal construção semiótica é a chave do filme. Por isso a revelação do entusiasmo de Kim por Ifigênia foi deixado para o final do filme.

Está claro que tragédia e filme se correlacionam por sinais que consignam dados culturais muito específicos, somente reconhecidos pela confrontação de objetos distantes.

O paradoxo do sacríficio

Em SCS, o sentimento de vingança sobrepuja a intenção piedosa de qualquer sacrifício. O caráter totalmente metafórico do título ressignifica o ato sacrificial, já que o filme apresenta um assassinato planejado por uma mente perturbada, com um método sórdido (perseguição e tortura) e meio incognoscível, não um sacrifício. Além disso, não há cervo algum, mas uma vítima bem humana, uma criança. A nomeação metafórica deste roteiro como 'sacrifício', todavia, resgata o caráter arcaico da imolação de animais e, principalmente, de seres humanos. O título cria um anacronismo produtivo, com vistas a abordar instintos ferozes, forças incontroláveis do inconsciente que irrompem com primitivismo cruento, no apogeu da civilização, pondo a nu a bestialidade humana.

Pensando antropologicamente, todo sacrifício é uma troca, na qual quita-se uma dívida por um favor já obtido, ou paga-se antecipadamente por algo que se pretende obter. Este mecanismo aciona também um jogo de equivalências (Durand, 1984, p. 356), que permite a substituição das vítimas humanas por animais, como é o caso de Ifigênia (substituída pelo cervo) ou de Isaac (por um carneiro). Na história sagrada do Cristianismo, Jesus é o "cordeiro de Deus".

Para compreender a prática do sacrifício, muito se recorreu à comparação entre Ifigênia e Isaac. A mais célebre abordagem do tema se deve a Kierkegaard, baseada no sacrifício bíblico de Isaac (Gên 22). O filósofo dinamarquês o liga ao fenômeno da fé, que se manifesta como paradoxo "capaz de fazer de um crime um ato santo e agradável a Deus; que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão" (Kierkegaard: 1979, p. 238). O filósofo empatiza com o sacrificador, ele próprio uma vítima do "tremendo paradoxo da fé", pois Deus exige o crime, e a tentação consiste em agir eticamente, segundo o credo que se abraçou.

Reconhecemos a enorme diferença entre os dois sacrifícios, o grego e o judaico. Interessa-nos, entretanto, salientar que o primogênito, no mundo páleo-oriental, era considerado filho de deus, razão pela qual era sacrificado, num rito que restitui à divindade algo que lhe pertencia. Ao mesmo tempo, o sangue da vítima realimentava a potência divina, que se exauria para fertilizar a natureza, assegurar a opulência do cosmo e mantê-lo em equilíbrio. A circulação de energia sagrada entre natureza, homem e divindade se mantinha através de sacrifícios com vítimas humanas. A era histórica os substituiu por "provações" como a de Abraão e mostras de submissão como a de Agamemnon. A execução das vítimas deixa, então, de se consumar.

Para especialistas da tópica sacrificial (De Maistre, 1921, p. 24, 32 sgs.), a filosofia do sacrifício é a da dominação do tempo e do esclarecimento da história. Acrescentamos que a sublimação do ato sacrificial, dentro do próprio rito, é a finesse suprema da cultura antrópica, que sempre endossa os demais acordos vigentes no ambiente em que o rito é celebrado.

Com isto em mente, é preciso levar em conta que as crianças são as vítimas sacrificiais prioritárias, por sua imagem de vigor pleno, pureza corporal, sangue incontaminado etc... mas, fundamentalmente, porque ocupavam um lugar social secundário, na sociedade grega. A fragilidade infantil era tida como debilidade em relação à força e ao poder do adulto. No mundo antigo, os adultos gostavam das "gracinhas" das crianças pequenas, assim como nós, mas tão logo as crianças cresciam, eram confrontadas pelos adultos. Esperava-se que elas crescessem logo.

A situação é outra, em relação às crianças precoces: a sociedade antiga as valorizava, porque elas não se comportavam exatamente como crianças. Nelas se combinavam a espontaneidade e vitalidade da juventude à sabedoria e experiência da idade madura. Os gregos chamavam paîs téleios (crianças prontas, acabadas) aos precocemente "maduros" ou superdotados; em latim, a mesma noção gerou o termo puer-senex (criança idosa).

Já assinalamos que as duas personagens convocadas ao sacrifício, em SCS, são os irmãos bem dotados, seja pelo dom musical, seja por outros talentos. Ambos estão qualificados, quanto às determinações do imaginário arcaico, para a imolação estipulada por Martin, o adolescente perverso. Bob é sacrificado de acordo com o plano macabro de Martin, situação muito diferente da versão euripidiana do mito, em que é a primogênita quem deve morrer, rapidamente, sob o cutelo.

Entrecruzados os quadros culturais antigo e atual no projeto ficcional de Lanthimos, é nítida a diferença entre Bob, o "efebo", e Martin, o ísos (igual perante a lei), mas diáphoros pelo destino. A constelação vocabular que descreve a situação da menina-moça, na Grécia dos trágicos, é mais complexa. A situação é definida em função da vigência ou não de vida sexual. Este importante item da vida social nos tempos antigos não é deprezado pelo cineasta. Em três momentos do filme, repete-se a notícia de que a jovem Kim recém-menstruara, como se o fato tivesse algum impacto social. Na verdade, isto não significa nada, no contexto atual: há anos, métodos contraceptivos incluem a suspensão total da menstruação, da adolescência à menopausa. Mas, lendo das bordas (da tradição arcaica já metabolizada na cultura democrática ateniense) para o centro, na correlação do mundo de Eurípides com o nosso e à produção cinematográfica, algum sentido se encontra. Kim está com os hormônios à flor da pele. Seria anacronismo designá-la como hiéreia (sacerdotisa), nýmphe (prometida), parthénos (virgem, pura). Talvez se pudesse, por via negativa, chamá-la atauroté ("sem touro", casta, que jamais conheceu homem). Porém certamente lhe conviria o termo ádmete, cuja primeira significação é "não domada" (a segunda, "virgem"). Ou seja, Kim mantém-se virgem apenas porque Martin não cedeu à sedução da ninfeta. Como se percebe, há um ponto "G" no filme: a vida sexual de Kim, na iminência de ser inaugurada, justamente com o pior candidato.

É, entretanto, porque Kim sobrevive e permanece virgem, pelo menos até o epílogo do filme, que podemos dizer que a dialética da sexualidade feminina subjaz à tônica do sacrifício, na segunda parte da narrativa. Como assinalamos, Kim se enquadra no perfil transitivo da parthénos antiga, nas palavras de Nicole Loraux (1990, p. 174), "menos um estado físico do que um status social". Nesta acepção, tanto Kim quanto Ifigênia são parthénoi, pois se insurgem contra o controle exercido sobre seus destinos e corpos, ainda que por motivos diferentes: a primeira (Kim) não quer morrer virgem; a segunda (Ifigênia) quer que sua morte signifique a glorificação da Grécia, não a solução de um pacto entre generais, todos gregos! Não por outra razão, em Ésquilo (Ag., v. 244), Ifigênia é chamada atauroté, no sentido de virgem a serviço de Ártemis Braurônia, uma das figurações mais antigas da deusa, apoiada no culto a ursos (que sequer existem na Ática), oriundo de ritos xamânicos e totêmicos que faziam parte do grande culto ao animal em outras culturas indoeuropeias. Ou seja, a Ifigênia de Eurípides sublima a imagem da vítima sacrificial, ao assumir o status de modelo cívico pelo qual se pautam as mulheres atenienses. A guinada semântica que a peça empreende na genealogia do mito é tremenda, pois, do serviço às deusas virgens, as adolescentes "prontas" passariam ao casamento, ao serviço de Afrodite. Ifigênia sabota a ambos os programas. Assumindo voluntariamente o sacrifício, torna-se a grande heroína de Troia. Kim, desviando-se do sacrifício para o qual o irmão foi eleito às cegas, permanece com a morte nos olhos: vive o drama maior da civilização, segundo Freud, pois ama a quem não deseja (ao pai), deseja a quem não pode amar, Martin.

Como foi retorcido o enredo da tragédia euripidiana no filme de Lanthimos, depois de Eurípides ter remodelado a tradição mítica! Em vez da filha, o filho menor foi sacrificado. O sacrifício da filha, se não postergado, foi suspenso pelo cineasta, um deus invisível que paira no firmamento das produções estetizadas.

Unindo as pontas

Os elementos culturais enfatizados pela tragédia de Eurípides – a astúcia de Ártemis (na verdade, a medida autopreservativa de um culto estrangeiro no seio da religião olímpica) e o sacrifício de Ifigênia (de fato, a revanche que lhe foi imposta, com o resgate da vítima) – permitem compreender aspectos culturais importantes para a época em que o espetáculo teatral aconteceu. Ao mesmo tempo eles promanam de uma determinada tradição, hoje ativa apenas no plano artístico. Por outro lado, este mesmo sistema dramático, iluminado pelos conhecimentos que o cineasta grego detém por sua origem e formação, mas também decantado pela leitura especializada, fornece pontos de referência para a compreensão da recriação fílmica de Lanthimos.

Como tradução temática, o filme transforma o roteiro de base e propõe uma leitura crítica para as plateias atuais, em primeira instância. Como tradução cultural, empreende uma reapropriação contemporânea que desloca, desapropria o arcaico de seu lugar de origem, assegurando, desta forma, a heterogeneidade do produto intersemiótico e transcultural. Por meio da tradução cultural se dá a Atrida de tempos remotos e transculturaliza na Kim contemporânea.

Enfim, o tema, ressignificado e investido de significantes compatíveis com a nova temporalidade em que ele se insere, reanima a circulação literária de Ifigênia, bem como o dinamismo transcultural, que vence quaisquer fronteiras.

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Submetido em 20/07/2019; Aceito em 11/08/2019


Notas

[2] Atuam, nos principais papéis, Collin Farrell (como Steven Murphy, o pai), Nicole Kidmann (Anna Murphy, a mãe), Raffey Cassidy (Kim, a filha), Sunny Sulijc (Bob, o filho), Barry Koegham (Martin, o intruso), Alicia Silverstome (mãe de Martin) e Bill Camp (Matthew, o anestesista).

[3] Àquela altura, os atenienses já não aprovavam as tragédias puras e violentas. O gosto pelo trágico se incompatibilizava com os sofrimentos impostos pela guerra do Peloponeso, já nos seus estertores.

[4] Sobre o rendimento artístico do tema, até 1985, cf. HUNGER, Herbert. Lexikon der griechischen und römischen Mythologie. Hamburg: Rowohlt, 1985. Pp. 195-198.

[5] Cf. GOLDER (1996, pp. 175-209); MACHINNSON (1986); MCDONNALD: (1983); COELHO(2009), que se dedicaram à relação entre tragédia e cinema.

[6] É próprio de toda cultura uma abertura ao outro, uma propensão à interculturalidade. Para Créon (2016, p. 269), esta orientação ao exterior faculta que o íntimo de uma cultura se exprima em outra.

[7] Composição de Raffey Cassidy interpretada por Ellie Goulding, no álbum Halcyon Days (2012).

[8] A partir daqui, o título do filme será referido pelas iniciais maiúsculas SCS.

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Revista Brasileira de Literatura Comparada, ISSN 0103-6963, ISSN 2596-304X (on line)

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