ENTROPIA E MINIMALISMO: APROXIMAÇÕES ENTRE RAYMOND CARVER E ANDRÉ SANT'ANNA

ENTROPIA E MINIMALISMO: APROXIMAÇÕES ENTRE RAYMOND CARVER E ANDRÉ SANT'ANNA

ENTROPY AND MINIMALISM: APPROACHES BETWEEN RAYMOND CARVER AND ANDRÉ SANT'ANNA

Ângela Maria Dias


RESUMO:

objetivo do presente texto é delinear uma comparação entre um conto de Raymond Carver, o fundador do minimalismo literário americano, e a experiência minimalista do escritor brasileiro André Sant'Anna, na coletânea de histórias curtas O Brasil é bom. O estudo dos procedimentos estilísticos de ambos os autores vai privilegiar, entre outros elementos, a redundância no uso de determinados efeitos e a entropia.

PALAVRAS-CHAVE: minimalism; entropia; redundância; André Sant´Anna; Raymond Carver


ABSTRACT:

The aim of the present text is to outline a comparison between a short-story by Raymond Carver, the founder of the literary American Minimalism, and the minimalist experience of the Brazilian writer André Sant'Anna, in some tales of O Brasil é bom. The examination of stylistic procedures of the both authors will favour, besides other elements, the redundancy in the utilization of certain effects and the entropy.

KEYWORDS: minimalism; entropy; redundance; André Sant´Anna; Raymond Carver


O cotejo entre Carver, o ícone do minimalismo literário norte-americano, tido como fundador do movimento, e o escritor brasileiro André Sant'Anna, talvez possa ser feito de maneira mais pontual, uma vez que suas obras, afora o genérico do estilo, podem ser comparadas em relação a questões bem específicas.

Por exemplo, os tipos de personagens tematizados por ambos certamente possuem afinidades. Em Carver, o protagonismo pertence aos "blue-collars", ou seja, aos trabalhadores proletarizados e incultos, dos anos 1970 e 1980, espremidos entre o desemprego e o desalento de uma visão de mundo restrita e condenados à mesquinhez de perspectivas existenciais.

Em Sant'Anna, ganha voz o enorme contingente brasileiro de ignorantes, representantes da classe média baixa, de anos mais recentes, investidos das ambições mais tacanhas e de um simplismo desconcertante, na absorção de estereótipos rasteiros e de uma visão de mundo maniqueísta. Do mesmo modo que os personagens de Carver, imersos na ciranda de imagens e apelos consumistas, eles igualmente se comportam como autômatos, sem entenderem o mundo em que circulam; atônitos diante do que vivem e defensivos nas atitudes e preconceitos obtusos.

Por outro lado, a falta de profundidade desses agentes se combina a um arranjo narrativo meio literal no qual a omissão de detalhes se soma à força dos fatos, que, no caso de Carver, podem ser, segundo Lehman (2006, p. 2), confiáveis guias para o leitor. O autor do ensaio Symbolic Significance in the stories of Raymond Carver argumenta a esse respeito que, ao contrário do que alegam outros críticos, os personagens do autor podem debater-se diante da incerteza de sentido dos acontecimentos em que se envolvem, mas a estratégia de seu criador, ao contrário, desvela uma ordem simbólica engendrada para oferecer pistas ao leitor, numa direção contrária à ambiguidade.

Nesse sentido, a força dos recursos narrativos de Carver, ao contrário do que pensam muitos dos seus analistas, não se compraz na criação de um clima de indeterminação, mas deixa a incerteza para seus personagens vacilantes, e fornece à recepção uma bússola confiável.

Em reforço à sua tese, Lehman (2006, p. 46) comenta o conto "Preservação" como um exemplo de linguagem minimalista voltada para a exploração do tema da entropia. No aproveitamento das indicações do crítico, pretendemos desdobrar uma maior exploração do texto de Carver, que, pela natureza das ocorrências, poderão servir à abordagem de aspectos semelhantes nas histórias da obra O Brasil é bom de André Sant'Anna.

A entropia constitui um conceito da termodinâmica destinado à "medida da dispersão de energia" que designa a passagem de uma situação de maior ordem para uma situação mais desordenada, uma "tendência ao caos" (Cavalcanti et al. 2018, p.170). Por conta dessa compreensão mais genérica, os autores consideram que, embora indesejadamente, o termo passou a ser utilizado na explicação de fenômenos das ciências sociais. Assim, vinculado à desordem e à aleatoriedade, o conceito, nas ciências humanas, passou a indicar a recorrência da intervenção do acaso na deriva do universo e da civilização (Campos; Menezes. Folha de São Paulo, 22/06/1995).

Ainda de acordo com as sugestões de Lehman (2006, p. 2), no conto em questão, as imagens simbólicas são mais que símiles ocasionais, funcionam como estruturas metafóricas que reforçam os padrões temáticos do pântano e da entropia. O conto apresenta o recorte da vida de um casal de trabalhadores, no momento em que o marido perde o emprego e resolve afundar-se no sofá da sala, de onde não sai, há três meses. Seus únicos derivativos passam a ser a televisão e a repetida leitura de um livro com que, acidentalmente se depara na casa, intitulado Mistérios do passado.

Sua mulher, Sandy, observa que, na realidade, o marido, apesar de fixado na obra, não desenvolve a leitura, mas repetidamente contempla a fotografia de "um homem que fora descoberto depois de passar dois mil anos enterrado num pântano de turfa na Holanda" (Carver, 2010, p. 489). A rotina do casal permanece nessa pauta, até que Sandy chega em casa, após o trabalho e surpreende a geladeira paralisada, com todos os alimentos derretidos e escorridos. A reação passiva e queixosa do marido se contrapõe à iniciativa da mulher em buscar meios de adquirir outra geladeira. Antes de sair, Sandy resolve fritar costeletas. Ao oferecer um prato ao marido, ela observa "poças de água na mesa" e no chão, quando surpreende-se com "os pés descalços do marido, próximos à água que pingava, sem conseguir desviar-se dessa visão "tão fora do comum" (Carver, 2010, p. 496).

Este enredo insignificante e cifrado merece de Lehman uma interpretação baseada sobretudo nos signos da dissolvência e da inundação que, à maneira entrópica, absorve a vida do casal, ainda que o nome da esposa seja Sandy (que significa da natureza ou da cor de areia), para diferenciá-la, mesmo que temporariamente, do mundo encharcado no qual submerge seu marido. Esta contraposição, entretanto, não impede que ambos os personagens se mantenham alheios à força simbólica do mundo gotejante que os cerca. O contraponto entre a cena doméstica banal e a figura do livro que obseda o marido, por outro lado, pode ser visto como mais um signo do que o crítico considera a consistência e o potencial significante das estruturas simbólicas, inerentes ao minimalismo de Carver.

Por esse ângulo, o ensaísta chega a postular que, no autor, "a ambiguidade ao nível simbólico resulta resolvida, já que, se as histórias podem ser entrópicas, as estruturas narrativas não o são" (Lehman, 2006, p. 3). A esse respeito, um dos procedimentos estilísticos enfáticos no minimalismo de "Preservação" é a redundância. No seu universo restrito, as reiterações referem-se insistentemente ao sofá em que se afunda o marido e a seus pés esquálidos, em meio a poças. Além destes elementos cruciais para sugerir a estagnação reinante, há também a repetição dos argumentos do marido, diante da geladeira quebrada, que convergem, do ponto de vista de Sandy, com a combinação de sua surpresa diante das inundações que presencia, à reminiscência da morte paterna, também em decorrência de "um vazamento de monóxido de carbono no piso" (Carver, 2010, p. 495) do automóvel que comprara. Em suma, um universo de poças e pequenas inundações que se combinam com o pântano figurado no livro emblemático, espelho no qual se mirava o marido de Sandy.

O fenômeno da entropia também se refere, no caso dos corpos físicos, à impossibilidade de retorno de um estado a outro. Ou seja, entre o sólido, o líquido e o gasoso, a desordem das moléculas da água aumenta e se torna irreversível; já que é impossível o retorno ao gelo, depois que a água derrete, ou ainda ao líquido, após a sua transformação em vapor.

Nessa perspectiva, o progressivo amolecimento das forças vitais do casal, apesar da resistência de Sandy, se torna inescapável. O final do conto é, a esse respeito, sentencioso. Ainda que movida pelo desejo de buscar a renovação da geladeira, a mulher não consegue desviar-se dos pés do marido que, no último parágrafo, são reiteradamente mencionados: "Achou que o melhor era passar batom, vestir um casaco e ir ao leilão. Mas não conseguia desviar os olhos dos pés do marido. Pôs o prato na mesa e ficou olhando, até que os pés saíram da cozinha e voltaram para a sala" (Carver, 2010, p. 496).

No caso de O Brasil é bom de André Sant'Anna, sobretudo em suas histórias iniciais, diretamente referidas à mitologia ufanista e acrítica, própria a um certo vinco de patriotismo conservador, duas questões similares se impõem. Inicialmente a redundância, na medida em que, por conta da platitude dos atores e de sua pobreza mental, os mesmos emblemas simplistas e suas equivalentes certezas dogmáticas são insistentemente invocados. Em seguida, a entropia que se configura na flagrante imbecilidade maniqueísta dos argumentos, que, mesmo incoerentes e desconchavados, tendem a uma repetição espiralada, numa deriva textual absurda e sem sentido.

Por outro lado, tais procedimentos e climas recorrentes, no minimalismo da dicção dos dois autores, podem ser aproximados por um insuspeito parentesco, no que tange aos seus respectivos modos de elaboração de enredo, tais como são entendidos por Northrop Frye, no seu Anatomy of criticism.

Hayden White, em sua obra Meta-História, vai debruçar-se sobre o problema dos estilos historiográficos, ao aproximar sua natureza à dos modos literários, na medida em que compreende um estilo como "uma combinação particular de modos de elaboração de enredo, argumentação e implicação ideológica". Partindo de Northrop Frye, o historiador assume que existem quatro modos de elaboração de enredo ― a estória romanesca, a tragédia, a comédia e a sátira ― e que eles não podem ser indiscriminadamente combinados numa obra com os modos de argumentação e implicação ideológica (White, 1992, p. 43). Ainda de acordo com o teórico, White reconhece que o "por em enredo" o conjunto de episódios que compõem uma narrativa dá a ela uma compleição abrangente ou arquetípica, o que influi na forma com a qual se relaciona com os demais modos de argumentação formal e de implicação ideológica (White, 1992, p. 23).

Assim, "um enredo cômico não é compatível com um argumento mecanicista, assim como uma ideologia radical não é compatível com um enredo satírico" (White, 1992, p. 44). E isto porque uma ideologia radical "prefigura a possibilidade de transformações cataclísmicas" (White, 1992, p. 44) na sociedade enquanto que a sátira constitui a forma ficcional vazada no modo irônico e "representa uma espécie diferente de restrição às esperanças, possibilidades e verdades da existência humana reveladas na estória romanesca, na comédia e na tragédia respectivamente" (White, 1992, p. 23, 25).

O enredo satírico "é de fato um drama da disjunção, drama dominado pelo teor de que o homem é essencialmente um cativo do mundo, e não seu senhor" (White, 1992, p. 24) e pela assertiva de que a espécie é impotente para enfrentar as inúmeras vicissitudes da vida e evitar a morte. Ainda assim, a sátira, como a tragédia, aposta numa "continuidade estrutural" da sociedade ou "num eterno retorno do mesmo no diferente" (White, 1992, p. 26).

Em termos de argumentação formal, os satíricos adotam o contextualismo, ou seja, um tipo de explicação do passado desenvolvida como um conjunto de "inter-relações funcionais entre os agentes e agências que ocupavam o campo" (White, 1992, p. 33). Finalmente, no que tange à implicação ideológica compatível com a formatação do relato e a argumentação, o posicionamento adotado pelos autores satíricos, em termos gerais, tende a ser o liberal. Tal combinação se efetiva porque, segundo White, toda ideologia se acompanha por uma "ideia específica da história e seus processos" (White, 1992, p. 38). O teórico também ressalva que os termos que escolhe, de acordo com Mannheim ― anarquista, conservador, radical e liberal ― simbolizam "designadores de posição ideológica geral", muitas vezes não estritamente assumida de forma consciente e igualmente não emblemática de posição partidária específica (White, 1992, p. 38).

As narrativas literárias, por sua complexidade, não se inscrevem necessariamente na tipologia de Frye para gêneros literários, como os contos de fadas ou a novela policial, e nem mesmo as obras dos grandes historiadores, como o reconhece White, limitam-se a combinar estritamente tipos de enredo, com seus respectivos modos de argumentação formal e de implicação ideológica, já que se caracterizam por uma tensão dialética resultante de conjugações problemáticas, mais ou menos resolvidas por uma visão ampla e coerente do campo histórico (White, 1992, p. 44).

Os respectivos textos abordados, tanto do escritor americano, quanto do brasileiro, certamente enquadram-se, com diferenças, no que Frye denomina de mythos do inverno, ou seja, a ironia e a sátira, voltadas para as "configurações míticas da experiência", que dão forma "às ambiguidades e complexidades mutáveis da existência não idealizada" (Frye, 1983, p. 219).

Segundo o eminente teórico, "a principal distinção entre ironia e sátira é que a sátira é a ironia militante", que se vale do grotesco e do absurdo; ao passo que "o princípio básico do mito irônico" é considerado "como uma paródia da estória romanesca", ou seja, como "a aplicação de formas míticas romanescas a um conteúdo mais realístico, que as amolda em direções imprevistas" (Frye, 1983, p. 219).

Por esse ângulo, evidentemente, pode-se compreender a narrativa minimalista de Carver como uma "paródia romanesca", ou ainda, na linguagem de Hayden, como uma narrativa satírica "conservadora", porque vazada "num tom resignado" (White, 1992, p. 43). Segundo o historiador, o "contextualismo" compreendido como argumentação formal inerente ao modo satírico de enredo, corresponde ao corte sincrônico de um evento ⸺ grande ou pequeno, singular ou coletivo ⸺ para estudo da significação de seu campo histórico, destinado a representar um mundo, por meio da criação de vínculos formadores de um determinado contexto. Nesse sentido, contenta-se com uma "cadeia de caracterizações provisórias e restritas de províncias finitas" no tempo (White, 1992, p. 33, 34).

Ou seja, a sátira, nessa perspectiva, tem raízes históricas e contextuais bem marcadas. O que se combina com o convencionalismo de convicções, indispensável à sua validação, tanto no aspecto humorístico, quanto no aspecto crítico. Por isso mesmo, Frye aponta o seu aspecto "rigidamente estilizado", em que novos contratos não são bem-vindos (Frye, 1983, p. 221).

A sátira no estilo de André Sant'Anna é bem desabrida, e diverge da paródia romanesca "resignada" de Carver, na medida em que tem um tom abertamente cômico, porque exagerado e frequentemente absurdo. Além disso, no caso desse último livro, os enredos mínguam e, em suas Histórias do Brasil, os personagens manifestam em solilóquios obstinados, obsessões e ideias rasas.

Este empenho de esboço ficcional de uma esfera pública de vozes, tanto em sua dimensão de algaravia confusa de falas socializadas, como na apresentação de um aporte pessoal a este arsenal coletivo de registros e pontos de vista, foi considerado por Flora Sussekind como responsável por "uma série de experiências corais, marcadas por operações de escuta, e pela constituição de uma espécie de câmara de ecos" (O Globo, 21/09/2013).

O livro, em seu conjunto, dramatiza bem esse tipo de preocupação, já que, mesmo nos últimos contos-depoimentos, o autor conjumina depoimentos e recordações pessoais a memórias de época, numa espécie de peculiar painel do imaginário social dos anos brasileiros de 1960 e 1970. Entretanto, em toda a primeira parte da obra, os pequenos relatos dedicam-se exclusivamente à montagem de um patchwork crítico sobre os estereótipos consagrados da autoestima nacional.

Em O Brasil não é ruim, desfilam, pela reiterada negativa, todas as mazelas mais debatidas na atualidade do nosso espaço público:

Deputados, senadores, governadores, prefeitos, vereadores, empresários, sindicalistas, policiais, juízes brasileiros não são criminosos, já que foram filmados em flagrante recebendo dinheiro, colocando dinheiro na meia, na cueca, na mala-preta.

(...)

O povo brasileiro não tem orgulho da própria ignorância, não está acometido de um excesso de autoestima, já que nos últimos anos de governo, (...) locutores esportivos da televisão não ficam o tempo todo lançando mensagens subliminares ou diretas mesmo, não dizendo que o brasileiro é um ser superior, que basta ser brasileiro para conseguir superar qualquer obstáculo através do seu fabuloso jogo de cintura (Sant'Anna, 2014, p. 11, 12).

Na contrapartida a isso, ou seja, numa fala afirmativa, um outro personagem anônimo reporta os signos mais surrados de um nacionalismo clicherizado e desnaturado pelo desgaste.

Sim, são. Os brasileiros são bons. Os brasileiros usam a criatividade para superar obstáculos. Gosto dos brasileiros. Gosto dos brasileiros porque os brasileiros são bons. Eu sou bom. Eu sou bom porque eu sou brasileiro. Os brasileiros não desistem nunca. Os brasileiros sabem viver com alegria, mesmo tendo que enfrentar extremas dificuldades. Os brasileiros são bonitos. A mulher brasileira é a melhor mulher que existe. (...) Gosto de Deus. Deus é bom. Deus é bom porque é brasileiro. E os brasileiros são bons. Os brasileiros são bons porque sabem fazer de cada momento da vida, até mesmo dos momentos de vicissitude, um espetáculo da alegria de viver, um exemplo é a nossa, dos brasileiros, música popular brasileira, a internacional MPB. (...) Os brasileiros, que são bons, não foram bem na última Copa do Mundo, mas o brasileiro que não foi bem é bom assim mesmo (Sant'Anna, 2014, p. 38-40).

Nessa linha ainda, há uma outra história curta de título bem semelhante, "Nós somos bons", que, aos olhos do leitor brasileiro de 2019, soa como premonição, se pensarmos em determinadas declarações oficiais correntes na contemporaneidade:

Nós é que achamos que bom era no tempo da ditadura. Nós achamos que tortura não tem nada a ver (...) mas que apesar disso na época da ditadura a economia ia bem, não havia essa corja de corruptos que há hoje, quer dizer, até havia, (...) mas pelo menos os militares governavam bem, desenvolviam o país, geravam emprego, geravam renda (Sant'Anna, 2014, p.27).

É impressionante como uma ficção de 2014 consegue antecipar um tipo de discurso mais conservador cuja preponderância, na sua época, não era ainda previsível. Num outro texto também sobre espaço público, "Comentário na rede sobre tudo o que está acontecendo por aí", o mesmo tipo de posicionamento sócio-político emerge com semelhante argumentação.

A culpa é toda do direitos humanos, que vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos problemas deles mesmos, desses países que se acha. Porque lá todo mundo faz o que quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda pelado com os seios de fora e até faz sexo com homens do mesmo sexo.

(...)

O direitos humanos tem que ser prá nós também, que somos cidadãos de bem, que nunca fizemos pedofilia.

(...)

Eu sou igual o velho lobo Zagallo, totalmente verde e amarelo
(Sant'Anna, 2014, p. 21, 22, 23).

A desqualificação da linguagem pelos comentários chulos e referências preconceituosas de um dogmatismo pedestre, recupera a reativação de uma tendência de pensamento e de conduta bastante reativa e hoje dominante.

A obra, apesar de todas estas alusões mais ou menos diretas à esfera político-social do país e ao acervo de suas idiossincrasias, acrescenta, na contracapa, a advertência padrão a muitas peças preocupadas em sublinhar o seu caráter de criação e eliminar vínculos concretos com o contexto social: "Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles". Entretanto, é bem pouco provável que qualquer leitor desses contos-depoimento se deixe impressionar por essa divisa estereotipada.

Por outro lado, por mais que as correlações entre o universo da obra e o contexto exterior estejam meio óbvias, a começar pelo seu título irônico, o fato é que o componente ficcional não pode ser, em hipótese alguma, esquivado. Aqui, é oportuno lembrar que, citado por Lehman, em seu artigo sobre Carver, um outro crítico se reporta ao conceito híbrido de fato-ficção, aparentado aos experimentos jornalísticos dos anos de 1960, nos Estados Unidos, para caracterizar a obra do minimalista como criador de um mundo "fictual," capaz de "exterminar o quanto possível a mente criadora-padrão do artista" (Zavarzadeh apud Lehman, 2016, p. 2).

Evidentemente, tal proposição, apesar bem fundamentada no contexto a que se refere e do seu potencial instigante, me parece exagerada e fruto de uma concepção idealizante em relação ao trabalho de criação artística, já que sua validação quase pressuporia que toda produção artística digna do nome devesse partir ex nihilo e abster-se de qualquer tipo de influência ou material proveniente do mundo onde foi gestada.

De qualquer forma, tanto a ficção de Sant'Anna, quanto a de Carver, em suas diferenças de objeto e de dicção, aproveitam-se sobejamente dos espaços referenciais onde se situam e mesclam estes estímulos e materiais sócioculturais, a um viés decididamente pessoal. No caso do americano, a modulação e o campo são de ordem mais restrita, na medida em que apresenta universos privados e problemas afetivos, que aludem, com melancolia e moderação, ao painel mais amplo da vida de americanos brancos das classes médias pouco aquinhoadas e mal remuneradas, e frequentemente envolvidas em situações difíceis, das quais não suspeitam a saída.

Por sua vez, o minimalista brasileiro opta pela via mais explícita da sátira extremada, por meio da galeria de tipos limítrofes que apresenta. São também de um segmento social de baixa classe média, inculta e ávida em afirmar-se por opiniões esdrúxulas e agressivas, que dramatizam a temperatura pobre em lucidez e maniqueísta que, infelizmente, caracteriza a convivência sóciopolítica contemporânea no país.

Frequentemente, tal espécie de personagem encarna emblemas como obsessões maníacas e é capaz de adotá-las e desfraldá-las, nas combinações mais estapafúrdias com outras inclinações aberrantes, de maneira a encarnar comportamentos ou falas absurdas.

Este é o caso, por exemplo, da história curta "Use sempre camisinha", onde o lema da precaução sexual passa a sublinhar as mais alucinadas recomendações a um suposto interlocutor, nas quais se conjugam violência, crueza e falta de escrúpulos, braços dados com a recomendação pedagógica do cuidado preventivo, como a pedra de toque de cada exortação:

Faça sexo, muito sexo, sexo sempre. Mas use sempre camisinha.

(...)

Se você é forte, bata. Se você é fraco, apanhe. São apenas os dois lados da mesma moeda. Mas use sempre a camisinha.
É isso mesmo que você entendeu: pratique o sadomasoquismo. Mas use sempre a camisinha.

(...)

Exceda os limites de velocidade, não respeite a faixa de pedestres nem os semáforos. Se você é motorista de ônibus ou caminhão, passe por cima dos menores, dos mais fracos. Qualquer coisa, suborne o guarda. Mas use sempre a camisinha.
Suborne e seja subornado.
Mas use sempre a camisinha.
Minta, sempre usando a camisinha.

(...)

Vá se foder. Mas use sempre a camisinha.
(Sant'Anna, 2014, p. 24, 25, 26).

O non sense do locutor meio desindividualizado reporta falas genéricas e inescrupulosas, numa espécie de termômetro social da descrença em códigos de conduta coletivos e/ou de sua desagregação.

Evidentemente, uma peça desta categoria suscita uma recepção de hilária perplexidade. Seu convívio com as outras pequenas histórias já citadas talvez sugira e insinue a existência de uma subjacente atmosfera de surrealidade, que o conjunto deixa entrever, caso o leitor tente montar as partes numa espécie de insensato quebra-cabeças.

Interessante seria divagarmos como um autor brasileiro, cujo primeiro livro é de 1998, forja um estilo que, além de altamente peculiar e criativo, tem fortes afinidades com um estilo norte-americano dos anos de 1970 e 1980, surgido em outras circunstâncias sócio-culturais. A esse respeito, pode-se esboçar uma aproximação um pouco mais detida do que seria o minimalismo literário. O estilo minimalista, também considerado por alguns teóricos como "modernismo redutivo" ou ainda "realismo minimal", também pode desdobrar-se num "minimalismo enfadonho ou prolixo", como, por exemplo na trilogia de Beckett (Barth, 1986 apud Leypoldt, 2000, p. 20).

Segundo Barth, poderiam existir, pelo menos, três tipos de minimalismo: os minimalismos de forma e escala (compostos com formas reduzidas, ou seja, pequenas sentenças ou parágrafos); os minimalismos de estilo (vocabulário pouco diversificado, sintaxe pobre, tom antiemocional) e, por fim, os minimalismos de material (personagens mínimos, cenas reduzidas, enredo mínimo).

Em termos gerais, a obra de André Sant'Anna combina as variações das três modalidades: os minimalismos de forma, de estilo e de material. Inclusive mesmo, como é o caso de O paraíso é bem bacana (2006), pode empregar o minimalismo prolixo. Em quase todos os seus diversos relatos, uma constante se impõe, com regularidade quase total: o tom antiemocional ou enfadonho da dicção, inerente aos minimalismos de estilo.

Certamente tal tom enfatiza, pela platitude, a certeza imbecil com que a maioria dos personagens de Sant'Anna se afirma e se revela na exposição das próprias ideias e declarações abstrusas. No que tange às histórias aqui comentadas, a assertividade tediosa do tom, além de ser característica marcante de todas as elocuções, certamente se soma a outros recursos do arsenal minimalista.

Podemos apontar, por exemplo, como procedimento inerente ao minimalismo de forma, as sentenças simples, paratáticas, a redundância de palavras e impressões repetidas sistematicamente e a previsibilidade da elocução. Por outro lado, no minimalismo de estilo, sobressaem, além da qualidade fastidiosa do tom, a banalidade das palavras e o primarismo da sintaxe, não afeita a sentenças complexas e à linguagem figurativa. Por sua vez, o minimalismo de material é responsável, na maioria da obra, e nas peças ficcionais em exame, pelo caráter plano e previsível dos personagens, unívocos e transparentes, e pela quase (no que se refere à obra) absoluta ausência de enredo e mise-en-scène.

Acresce que os esquetes literários aqui apresentados primam por serem simples preleções a um possível interlocutor ou auditório, sem qualquer outra ambição de caráter narrativo. Nesse sentido, a propalada intrusão do silêncio, bem como a ausência de conclusão narrativa, compatíveis com o minimalismo clássico, têm a ver com a exclusiva platitude das falas que se impõem, olímpicas, ou seja, na absoluta impermeabilidade ao mundo no qual supostamente estão inseridas, pelas próprias e magras referências, ou a qualquer tipo de argumento que lhe possa ser interposto. Em síntese, tais "prédicas" são inteiramente intransitivas ao que não sejam elas mesmas e as supostas "verdades" que enunciam.

Assim, dramatizam de maneira bastante satisfatória o que Leopoldt denomina de "realismo minimal" (minimal realism) ou ainda "realismo minimalizado" ou "miniaturizado" (minimalized realism), ou seja um realismo incompleto, muito fragmentário, que é incapaz de cumprir as promessas implicadas na sua aparência representacional; como enredo, construção de personagens, fechamento narrativo e mensagem autoral implícita (Leopoldt, 2000, p. 23). E, sobretudo se propõem apenas a recriar componentes minimais, como, simplesmente, a elocução que, mesmo na artificialidade de sua exibicionista exposição de certezas, consegue soar, apesar das aberrações e da perplexidade inicial produzida, com uma estranha familiaridade...

REFERÊNCIAS

BARTH, John. "A few words about minimalism". Sunday, Late City Final Edition Section 7; Page 1, Column 1; Book Review Desk, december 28, 1986. https://www.nytimes.com/1986/12/28/books/a-few-words-about-minimalism.html . Consultado em abril/2015.

CAMPOS, Haroldo; MENEZES, Luis Carlos. "Física e literatura se encontram no acaso". Folha de São Paulo, Ilustrada, 22/06/1995.

CARVER, Raymond. 68 contos de Raymond Carver. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

CAVALCANTI et al. "As Muitas Interpretações da Entropia e a Criação de Um Material Didático Para o Ensino da Interpretação Probabilística da Entropia". http://qnesc.sbq.org.br/online/artigos/06-CCD-71-17.pdf . Consultado em 08/08/2019.

DIAS, Ângela Maria. "A "pornografia terrorista" de André Sant'Anna". In:__________. Cruéis paisagens. Niterói: EdUFF, 2007. p. 43-66.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica Quatro ensaios. Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.

LEHMAN, Daniel W. "Symbolic Significance in the stories of Raymond Carver". Journal of the Short Story in English. 46, Spring 2006, p.75-88. https://journals.openedition.org/jsse/493 . Consultado em 04/08/2019.

LEYOPOLDT, Günter. Casual silences The poetics of minimal realism from Raymond Carver and New Yorker School to Bret Easton Ellis. Tübingen: WVT Wissenschaftlicher Verlag Trier, 2001.

SANT'ANNA, André. O Brasil é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

SUSSEKIND, Flora. "Objetos verbais não identificados: um ensaio de Flora Sussekind". O Globo Prosa, 21/09/2013. https://blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/objetos-verbais-nao-identificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.html. Consultado em 10/12/2018.

WHITE, Hayden. Meta-história A imaginação histórica do século XX. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992.

ZAVARZADEH, Mas'ud. The mythopoeic reality. Urbana: University of Illinois Press, 1976.

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